Prefácio - 7
Rua Quinze - 11
João Morais, Meu Avô - 14
Lembranças da Rua Quinze - 17
Meu Pai, José Arruda - 20
Dona Anália Morais, Minha Mãe - 24
Silvina Melana, Segunda Mãe - 28
Tia Honorina - 32
A Alegria do Monsenhor - 35
Tio Abílio Morais - 38
A Voz Gostosa de Edite Piaf - 41
Adélia Miranda, 45 Anos de Fafil - 44
Aventura Antes do Natal - 47
De Lisboa - 51
Dez Anos de Tintas e Pincéis - 54
É Bom Falar de Marília - 57
Fernão Capelo Gaivota -
Fundação Burarama - 63
Hermes de Paula e o Foclore - 66
Haroldo, Barão de Grão-Mogol - 69
Hotel São José - 72
Manoel Quatrocentos - 75
Memórias de Adriano - 79
Mestre Doutor João - 82
Momentos de Luiz de Paula - 85
Dona Dina Paulino - 87
Na Venda do Meu Pai - 90
O Bar Guarani de Vadinho - 94
O Dia em que Chiquinho Sumiu - 97
O Professor Pedro Sant’ana - 100
O Mulo Darcy Ribeiro - 103
Onde o Amor é Maior - 106
Por que São Tomé? - 109
Primeiros Passos - 112
Professor Zeca - 115
Reivaldo e os Arquitetos - 118
Rotary Clube Montes Claros-Norte - 120
Roubaram de Novo o meu Toco - 122
Saudades da Irmã de Lourdes - 125
Saudades do Mercadão - 128
Tempos de Cassino - 131
Tio Armindo Morais - 134
Um Presente para o Coração - 136
Um Sonho na Madrugada - 139
Fernanda Ramos - 142
Meu Professor Joaquim Rolla - 145
Viagem para Salinas - 149
Humberto Souto - 152
Ivan Guedes, o Grande Brasileiro - 155
A Majestosa Feira de Caruaru - 158
Faculdade de Filosofia - 160
25 de Novembro de 2021 - 163
Chega uma época em que nos damos conta de que
tudo o que fazemos se transformará em lembrança
um dia. É a maturidade. Para alcançá-la,
é preciso justa mente já ter lembranças.
- Cesare Pavese.
Prefaciar é falar antes, dando ao leitor uma noção
conceitual do que vai ler. Na reunião de congraçamento
da Academia Montes-clarense de Letras, realizada no dia 28
de dezembro de 2024, o acadêmico Wanderlino Arruda entregou-me
os originais de sua nova obra literária, “Doces
Lembranças”, um livro de crônicas, com
uma solicitação de apresentá-lo aos leitores.
Uma responsabilidade, que se duplica, por ser o autor um dos
expoentes máximos da literatura mineira contemporânea,
cujos méritos literários estão consagrados.
É
escritor, palestrante, advogado e professor. Tem curso de
Con
tabilidade, Letras e Direito, com pós-graduação
em Linguística, Semântica e Literatura Brasileira,
com especialização em Comunicação
Social e Metodologia de Ensino Superior. Duas vezes presidente
da Academia Montes-clarense de Letras, é vitalício
no cargo de presidente de honra. Foi presidente da Câmara
Municipal de Montes Claros (1966); secretário municipal
de Cultura (1996) e presidente do Patrimônio Histórico
e Cultural de Montes Claros. Sua biografia é rica.
Muito teria que ser escrito sobre ele.
Na
altura dos meus 96 anos de idade, a fruição
verbal está necessariamente reduzida. O tempo é
ingrato. Passa despercebido, mas deixa marcas. O imortal Luiz
de Paula Ferreira definiu o tempo como “um estranho
pássaro que voa de asas leves, as penas da cor do vento”.
A solicitação, por si mesma, renovou minhas
disposições, apagou as marcas do tempo predispondo-me
a atender ao pedido. É o que faço. As lembranças
de tempos pretéritos nos trazem a reprodução
de fases da vida, que muitas vezes estão esquecidas,
congeladas nos esca ninhos da memória.
Lembranças são aves em revoada. Já no
dia seguinte, de pois do café da manhã, comecei
a ler as lembranças de Wanderlino. Ele veio para Montes
Claros na força de sua juventude e guarda recordações,
que são um patrimônio seu. Começa por
nos levar de volta ao romantismo do footing da Rua Quinze,
nas primeiras horas da noite. O pensamento é insubstancial,
ele é uma evocação mental interna e silenciosa.
Wanderlino, como uma necessidade de dizer o passado, faz um
retrospecto e fala, em uma sequência natural, de passado
ainda mais remoto, em São João do Paraiso. Levado
pela força do pensamento, informa seu pai José
Arruda e sua mãe Anália Morais, nos dando conhecimento
de que sua mãe era “neta de índio”,
mostrando a presença do caldeamento racial, presente
na formação do povo brasileiro. Fez-me lembrar
que minha avó materna era negra. Ele traz à
lembrança pessoas outras, que integraram seus primeiros
anos de vida.
Em presença da autonomia das crônicas, ele retornou
no tempo, na evolução de seus pensamentos, e
revive o período de estudante no Colégio Diocesano,
em Montes Claros.
Mas
o pensamento voa e logo ele está de volta à
sua infância e relata viagens a cavalo de São
João do Paraiso a Salinas. Uma aventura descrita com
perfeição literária.
As
recordações de Wanderlino não trazem
uma sequência temporal. Ele vai e volta resgatando suas
memórias, as boas lembranças que trazem saudade,
ou, como ele mesmo afirma: “fala mais ao coração,
transubstancia sentimentos, vale pela carga ou sobrecarga
de afetividade.”
Ele não traz apenas lembranças, mas também
afirmação de suas atividades artísticas
como pintor. Essa afirmação vem em forma de
lembrança de como tudo começou. O passado afirmando
o presente. “Quando estou pintando, as horas passam
como verdadeiros sonhos, interessantes. Cheios de gratificação
mental, gostosas mesmo.”
As lembranças de Wanderlino são histórias
de vida. Ele lembra Hermes de Paula e afirma: Creio que falar
de Hermes de Paula, sua vivência, seus costumes, suas
gentes, é o melhor caminho para a construção
do edifício histórico de Montes Claros.”
Nas suas lembranças, ele comenta livros e fala de escritores
outros, entre eles Luiz de Paula, lembrando do livro “Momentos”.
Uma recordação valiosa. Nos traz à lembrança
Darcy Ribeiro.
Quando ele fala do prof. Pedro Sant’ana veio-me à
lembrança que ele foi meu professor no curso de História
da CADES, para formação de professores, no início
dos anos 60 do século passado.
Não passou despercebida a recordação,
que é de todos nós, maiores de 30 anos, do Velho
Mercado da Praça Dr. Carlos.
Enfim,
tenho certeza de que os leitores irão se incorporar
em
muitas de suas “Doces Lembranças”.
Ele conclui com um sentimento melancólico, com uma
lembrança, que nunca se apagará de sua memória.
Encerra o livro com um “até logo” à
sua esposa e nossa amiga Olímpia.
Petrônio Braz (*)
RUA
QUINZE
Era a gente mais bonita e mais falante que havia na cidade,
nos anos cinquenta, a gente da Rua Quinze, naquele trecho
que ia do antigo Clube Montes Claros, hoje Conserva tório
Lorenzo Fernandez, até a esquina da Rua Doutor. Santos,
no bar de Manoel Cândido, e Hotel São Luís,
transformado em Caixa Econômica e, depois, em Copasa.
Pela única pista calçada da cidade, andavam
as moças mais atraentes e os rapazes mais bem vestidos,
mais bem postos na vida, seguros candidatos ao namoro, ao
noivado e ao casamento. Assim como uma sala de visitas ao
ar livre, a Rua Quinze era uma eterna passarela, principalmente
ali pertinho do Clube dos Bancários, em frente à
Casa Ramos, à Casa Alves, onde as esquinas eram muito
mais claras, iluminadas pelas vitrines de luz branca, naquele
tempo um grande luxo. Lá pertinho estavam o Cine São
Luís, os bares, os salões de sinuca, as sorveterias.
os melhores salões de bar beiros, os bancos, as lojas
mais ricas.
Quando cheguei, em meados de janeiro de cinquenta e um, só
se falava no Capitão Enéas, o novo prefeito
que ia tomar posse, e os alto-falantes não gritavam
outra coisa. O Colégio Diocesano já estava quase
terminando o curso de admissão,
Restaurante Valério marcava uma época de grande
fama, e as lojas de discos da Praça Dr. Carlos já
faziam grande estar dalhaço com o baião “Delicado”
tocado dia e noite. Destinado a trabalhar como engraxate no
Salão Rex, Antônio Guedes não me aceitou
porque eu já não era tão menino como
ele espera va e, além disso, já falava um pouco
de inglês e - segundo ele - não ficava bem em
serviço tão humilde. A segunda possibilidade
era trabalhar na Casa Leda, de Marcelo Alcântara, mas
como Marcelo ia viajar uma semana inteira, não pude
esperar, porque também podia não dar certo.
Aí, o Dr. Carlyle Teixeira me levou para apresentar
a J. F. Rodrigues Correia, dono da Imperial, loja mais grã-fina
da rua e da cidade, onde, já no dia seguinte, engravatado,
camisa branca e calça azul, iniciei um período
de aprendizagem sob as ordens do gerente Antônio Chamone.
Na frente da Imperial, as lojas de José Alves e de
Artur e Antônio Loureiro Ramos. Do outro lado da esquina,
a Pernambucana, na Rua Camilo Prates, por onde passaram várias
farmácias. Vizinha, de lado, a Gazeta do Norte, de
Jair Oliveira, a Rádio Sociedade, de Zezinho Fonseca.
Chamone começou me ensinando que balconista não
podia ficar sentado, não podia encostar nas prateleiras
ou no balcão, não podia parar tempo nenhum,
todo momento deveria ser de trabalho, arrumando, limpando,
quando não houvesse fregueses. Na loja de louças
e de vidros, se quebrasse alguma coisa teria de pagar. Fumar,
só se fosse no banheiro. Perfume, só usar se
fosse do vidro de amostras. No primeiro dia, bati o pé
em uma bateria de cozinha, que ficava na porta, e as panelas
e caldeirões foram para o meio da rua. Nunca me esqueço
do grito de “bota na minha conta” que o Afonso
André Rodrigues gritou de lá de Casa Luso-Brasileira,
e do pessoal da Gazeta que saiu para ver o que acontecia.
Foi uma aventura maluca. . .
Gozado, que por ter eu só duas calças, duas
camisas e uma gravata, a Rua Quinze para mim só valia
pelo que tinha nas horas do dia. A noite, na verdade pertencia
aos bem vestidos, a quem tinha dinheiro para passar pela sorveteria,
bancários, comerciários mais velhos, filhos
de comerciantes, estudantes ricos, sócios dos clubes.
É que o brilho da noite nunca pertenceu aos deserdados
e iniciantes. Para o pobre, a noite foi sempre hora de dormir,
ou de ler bons livros, como eu fazia. E ainda bem...
JOÃO MORAIS, MEU AVÔ
De todas as pessoas que tenho conhecido mais de perto, o
velho João Morais, meu avô, parece ter sido o único
homem a viver oitenta e muitos anos de alegria em tempo integral.
Era assim como se tivesse carteira assinada numa firma de felicidade,
com todos os direitos, menos o de ficar triste e de deixar de
ser alegre. Era, não tenho dúvida, como um Papai
Noel de ano inteiro, a distribuir presentes de fraternidade
a todas as criaturas. Fazia ele da convivência de todos
os dias um painel harmonioso e de rica sabedoria.
Conheci-o desde os meus primeiros anos, em sua fazenda perto
de Salinas, numa casa-sede que ficava rodeada de pomar e jardim,
entre o “Ribeirão”, de águas cristalinas,
e a estrada principal, onde ninguém tinha direito de
passar sem uma visita ainda que ligeira. Ali, cada visitante
era recebido prazerosamente e, depois dos cumprimentos de praxe,
levado para lavar a poeira do rosto, tomar café-com-leite
e biscoitos
de tapioca e participar de uma gostosa conversa. Sabendo divi
dir bem as horas de trabalho nas pastagens e na lavoura, vivia
animadamente para o trato com as pessoas, contando estórias,
relatando casos, recriando-os com enternecedora vontade de transmitir
felicidade.
Vovô foi, acima de tudo, um homem bom, o leme para muita
gente neste mundo, que aprendeu com ele a andar no caminho certo,
pois conselheiro melhor não havia naquele pequeno grande
sertão entre Rio Pardo e Salinas. Era um velho forte
e musculoso, vermelho como um europeu, e tinha os cabelos brancos
e fartos, que lhe davam um ar de juventude bem conservada e
um enorme halo de simpatia. Quando eu era pequeno, pensava que
sua cabeça havia embranquecido pelo rigor do sol dos
canaviais, onde trabalhou até poucos dias antes de morrer.
Eu achava que ele tinha vindo aprimorar o mundo e as criaturas,
num esforço de nunca parar, pois nem a doença
que o acompanhou anos a fio o modificou em seus hábitos
de homem feliz. Vi-o, muitas vezes, voltando à tardinha,
enxada ao ombro, embornal pendurado no pescoço, sorriso
de ponta a ponta, a cantarolar algumas de nossas modinhas prediletas.
Todas as noites, após o jantar com toda a família
- ninguém podia faltar - deitava-se numa rede amarelecida
de tanto uso, e o antigo violão passava a centralizar
as atenções, numa suave evocação
de lembranças e saudades, que só terminava bem
tarde, quando o cansaço vencia e todos iam dormir. João
Morais, meu avô, nasceu bem longe, na velha Bahia, pelas
ban
das de Caetité, creio, num dia de festa até da
natureza. Desde rapaz, tropeiro de profissão, viveu a
vida dos campos e das estradas, dormindo ao relento, comendo
feijoadas com rapadura e farinha de mandioca, e respirando o
sereno de todas as madrugadas. Ele mesmo contava que foi naquele
tempo que conheceu uma moça morena e bonita chamada Ritinha,
neta de índios, de quem, seis meses depois do primeiro
encontro, ficou noivo, e com quem, um ano mais tarde, se casou.
E foi vendo a casa cada vez mais cheia de filhos e netos, fazendo
e refazendo festas, que viveram mais de meio século em
harmo nia muito perfeita.
Não assisti, mas dizem que ele morreu conversando e sorrindo,
como costumava fazer durante todos os dias da vida, pedindo
a todos para não chorar ou sentir tristeza. Embora sertanejo
e de poucas letras, foi um romancista verbal, narrador inigualável
desenhista de perfeitos quadrinhos existenciais de humanismo
puro e sincero. Na verdade, meu avô tinha uma experiência
de vida, uma habilidade diplomática, uma riqueza de inteligência
e bondade, dignas de muita admiração.
Ninguém que o conheceu deixa de dizer que ele era um
velho
alegre e agradável, verdadeiro construtor de amizade,
sempre
ouvido com interesse e prazer.
LEMBRANÇAS DA RUA QUINZE
Dentro do possível, tenho procurado escrever sobre pessoas
e fatos ligados à recente história de Montes Claros,
com os acontecimentos e os lugares de alguma forma jungidos
à minha própria experiência. Isso, nos últimos
quase trinta e seis anos, desde a noite em que cheguei de Taiobeiras
numa carroceria do caminhão de Dudu Cunha e fiquei hospedado
na Pensão de Dona Ismênia, ali pertinho de onde
fica hoje o posto de Antônio Barreto, na Praça
de Esportes. A primeira aventura foi exatamente no dia da chegada,
quando, para marcar o terreno, percorri cautelosamente alguns
pedaços de ruas, indo e voltando atrás para não
correr o perigo de me perder e ficar, depois, envergonhado.
Nesse vai-e-vem, o mais longe que fui foi até o Restaurante
do Valério, na Simeão Ribeiro, onde paguei vinte
e cinco cruzeiros por um jantar, um preço tão
caro para aquela época, que me expulsou por muitos anos
de qualquer casa de pasto mais grã-fina.
À Rua Quinze não consegui chegar, naturalmente
intimidado pela clareza das luzes, pelo pessoal desinibido,
bem-vestido, gesticulante, demasiadamente alegre, que eu podia
reparar de longe. Passear por lá, no primeiro dia de
Montes Claros, seria uma
façanha fora de pretensão para quem chegava com
rou pas feitas por alfaiate de província pobre e sapatos
com exces
so de meias-solas. Não dava, não dava mesmo! Por
isso, deixei
para o dia seguinte, no horário de trabalho, que aí
a cidade é de todo mundo e a beleza das pessoas causa
menos impacto, sem os perfumes, sem a performance dos momentos
de ócio, sem o burburinho das horas de passeio grã-fino.
A Rua Quinze que eu vi, pela manhã, era uma rua bem diferente,
bem mais vazia, embora ainda tivesse muita gente despreocupada
a discutir política e futebol, a seguir, com olhos cobiçosos,
uniformizadas donzelas de longas saias azuis e cabelos de tranças.
Foi depois de contar estórias da vida na Rua Quinze,
que tive a grata alegria de receber uma carta do meu colega
e amigo Nicomedes Almeida Teixeira, ministro-chefe da Secretaria
da Fadec, companheiro de muitas lutas na Fafil, em quatro longos
anos do Curso de Letras, quando frequentou minhas aulas de português
e de linguística. Se a lembrança dos meus dias
de Rua Quinze era um gostoso desfiar de saudades, a carta do
Nicó me veio trazer uma suave afirmação
de compromisso com o passado, uma certeza de que nenhum ato
de nossa vida, simples ou sem importância, passa esquecido
ou desfigurado de valor, sem o mérito do ter acontecido.
Não vou interpretar a correspondência do meu intérprete.
Passo-a ao leitor assim como chegou às minhas mãos.
Tem o gosto de um grande amor a Montes Claros e ao tempo de
nossa mocidade.
“Amigo Wanderlino, ao ler o seu artigo publicado, no domingo
último, intitulado “Rua Quinze”, não
pude deixar de me envolver em uma onde nostálgica, pois
ali passei boa parte de minha infância. Em fins de 1951,
meu pai comprou, em sociedade
com mais dois irmãos, o Big-Bar, ponto de encontro obrigatório
para os boêmios da época. Ali passei momentos marcantes
em minha vida, discutindo futebol, convivendo com os artistas
de rádio trazidos à cidade pelo Airton Serpa,
vendo os cartazes de cinema colocados na calçada da loja
de “seu” Ramos. Embora criança, vivia o movimento
noturno da Rua Quinze, auxiliando meu pai no bar, ou frequentando
o salão de sinuca do Tio Hélio (não havia
ainda rigor no policiamento a menores).
Tempo bom que me voltou à memória graças
a você. Você se lembra do Bolo Esportivo, do Serpa?
Dos bailes de carnaval do “Clube dos Bancários?”
Quando o “footing” da Rua Quinze acabou, foi como
se apagassem as luzes de uma parte da cidade. Os outros “footings”
nunca foram os mesmos (ou será que foram as luzes de
minha infância que se apagaram, em parte?). De toda forma,
o seu artigo me fez reviver esse tempo, tempo bom! Obrigado”.
E você, leitor, está com saudades também?
Nunca houve tempo melhor!
MEU
PAI, JOSÉ ARRUDA
Faço contas nos minutos e horas da minha vida, revejo
esmaecidas ou vivas imagens, tento magnificar pequenos acontecimentos
e, pronto, a figura de José Arruda, meu pai, se põe
sonora e colorida à minha frente. Convivência de
várias décadas, disciplina rígida no início,
amenos conselhos em meio e fim de vida, sempre marcante influência.
Mais do que tudo um rigoroso exemplo de honestidade a qualquer
tempo, seja em temporada de quase opulência, seja nas
dobras do passar de tempos em adversidade. Era um viajante faminto
de estradas, sempre saindo e chegando: a cavalo, em fordinhos,
em caminhonetes e caminhões, em velhas jardineiras ou
em ônibus já quase modernos.
Lembranças mais antigas? Ele com um bule esmaltado azul,
despejando o café num copo grandão, também
esmaltado e de asa. Com o café, comia alegremente biscoito
fofão, rosca caseira e o cuscuz que Silvina tinha de
levantar bem cedo para fazer. Nos dias de frio ou de chuva,
saia do quarto já com uma capa colonial pesadona, tão
comprida que passava dos joelhos.
Aos sábados, atrás do balcão da loja sortida
de tudo, atendia os fregueses, vestindo um casaco de pijama,
que achava a coisa mais
chique do mundo. Lembro-me até da cor, um cinza esverdeado
com desenhos em relevo, um bolso para caneta e lápis
e dois outros para as tesouras. Nem no horário do almoço
pa rava de vender. De cada amigo que atendia havia estórias
para ouvir e contar. Aprendi ali as minhas primeiras lições
de vida. Como morávamos em frente ao mercado, dava para
ver até o fim da tarde, a feira cheia de carros de bois
e de cavalos com cangalhas sem bruacas, segundo se dizia a mais
rica da região.
Homem em tudo avançado no tempo, minerador de pedras
e pepitas de ouro nos garimpos da redondeza, descobria também
todas as novidades que São João do Paraíso
nem podia sonhar. Já em 1938, meu pai tinha máquina
de escrever, geladeira a querosene, lampião Aladim, aparelhos
de gilete, uísque Cavalo Branco, casimira Aurora, camisa
de colarinho trubenizado, barbeadores com gilete já cortando
dos dois la dos. Quando de folga, lia em voz alta um livro de
geografia com perguntas e respostas e ouvia um rádio
de bateria, que fazia mais ruído que uma noite de tempestade.
Em 1942, quando fui para a escola do professor Joaquim Rolla,
todo o meu material escolar, inclusive a ardósia, era
importado, com o “made in Germany” ou “made
in England” me dando agradável sensação
de importância, compensando até a minha pouca habilidade
no mergulho no rio e nas bolinhas de gude.
Claro que as invenções do senhor José Arruda
não ficavam só nos objetos de consumo e exibição.
Era comprador e vendedor de peças de ouro, pedras preciosas,
moedas, velhos relógios de parede, desenhos de nanquim,
todo tipo de relíquias e quinquilharias, incluindo aí
punhais de bronze e de prata. Foi minucioso o seu planejamento
e realização da nossa primeira
viagem de turismo: preparou, com absoluto conforto e decoração,
um enorme carro de bois, com um guia andando a pé, que
nos levou – ele, minha mãe, Nair, Dercy e eu –
para uma visita a Condeúba, na Bahia, onde ficamos hospedados
numa casa de três moças muito bonitas e de fino
trato. Foi lá
que minhas irmãs e eu experimentamos pela primeira vez
o gosto de azeitona e leite condensado… Pelo menos duas
vezes
por ano, fazíamos viagens às fazendas dos velhos
Vicente Ar ruda e João Morais, quando nossas avós
Senhorinha e Ritinha se desdobravam em ordens para o capricho
das cozinheiras no fogão a lenha e no forno. Para as
visitas a melhor galinha ao molho pardo e o melhor bolo de farinha
de trigo ou de mandioca puba, coco ralado por cima.
Quando moramos em Coqueiros, foi grande a sua luta para que
eu aprendesse a tocar cavaquinho. Chegou a contra tar um professor
particular com várias horas de aula por dia. Mas não
passei da primeira posição, aquela em que a gente
firma as cordas com os dedos da mão esquerda e sacode
os da direita para tirar os sons do “besta-é-tu”.
Valeu, porque aprendio do, ré, mi, fá, sol, lá,
si, tornando-me quase um intelectual em música. Foi voltando
de Coqueiros para o São João, em 1941, que vimos
e ouvimos passar o primeiro avião, um barulho de assombrar
todo tipo de viventes. A notícia que correu depois é
que haviam morrido duas pessoas: um rapaz correndo de medo,
caiu numa cisterna, e uma velhinha que, assando biscoitos, resolveu
se esconder dentro do forno em brasa. Duas vítimas do
progresso dos tempos de guerra…
Agradeço muito a meu pai por todo tempo de convivência
direta e indireta: das jabuticabeiras que ele arrematava para
a gente chupar jabuticabas até ficar entupidos, dos balaios
de marmelo maduros e cheirosos que trazia das viagens ou comprava
na feira, das casas com quintais grandes que ele comprava para
vivermos divertindo. Agradeço mais ainda dos seus sonhos
de conhecer mundos distantes, tão bem transmi tidos aos
filhos que hoje realizam o que ele não pôde realizar!
DONA ANÁLIA MORAIS,
MINHA MÃE
Filha de João Morais e Ritinha, que era neta de índia,
era natural do vale do Rio Pardo e crescida em travessias, tão
boa em natação que carregava os filhos nas costas
sem qualquer sacrifício. Os filhos e a cesta do almoço
que ela levada, com rodilha na cabeça, para os trabalhadores
do outro lado do rio. Sempre jovial, de menina a moça,
considerava-se campeã de danças para qualquer
toque, a exemplos das cinco irmãs e quatro irmãos,
só gente entusiasmada, porque viver é demonstrar
alegria no descanso e no trabalho. O pai, homem de músicas
e cantorias, a mãe, gerente em todas as ações,
da
cozinha ao pomar, do bater roupas no rio ao cuidar das hortas,
tudo escola para futuros administradores dos negócios
e das
famílias.
Nunca vi minha mãe parada, a não ser nas de horas
de rezar com o terço azul esmeralda, as contas passando
devagarinho pelos dedos acredito até calejados. Cada
dia de vida começava com a fumaça do cuscuz e
o crepitar da lenha no fogão do café e o forno
com os biscoitos. Chegado o leite do curral, era parte para
a leiteira, parte para a despensa, destinado aos queijos, aos
requeijões, aos doces caramelados com a maior gostosura
do mundo, que só mineiro sabe fazer e guardar.
Dona Anália sabia cozinhar, assar, costurar, bordar,
fazer
rendas para qualquer tipo de enfeites, mestra de belezas em
enxovais ou coisas do dia a dia. Lindas as suas toalhas, boni
tonas as colchas, importantes as blusas e os chales. Para as
horas da missa de domingo, até as fitas que ela ajeitava
eram
chamativas, maravilhosas de causar inveja.
Dona Anália sabia ser amiga em todas as horas, cuidando
de visitar e receber visitas, de amar e ser amada, admirar e
ser admirada. Muita a sua simplicidade, sorrisos contidos, fala
moderada, o olhar sempre direto nos olhos das pessoas, nunca
muito alto por não ser arrogante, nunca tão baixo,
porque jamais tímida. A forma que ela tinha mais no ser
gentil era dar às pessoas alguma coisa de comer, principalmente
aos filhos e netos. Era chegar a sua casa e só esperar
um pouquinho, lá vinha um biscoito cozido e assado, um
beiju, um pedaço de bolo, uma canjica, um manuê,
um pão sovado, tudo feito por suas habilidosas mãos.
Parece até que ela achava que a gente mastigando e engolindo,
realizava a alegria da vida e do amor. Tudo parecia que era
feito só para nós, presente especial guardado
para marcar presença.
Nunca ouvi minha mãe cantando, que cantar nunca foi vocação
da família. Jamais a vi solfejando ou assoviando. Jamais
a vi em riso alto ou solto, pois de satisfação
contida, educada, nos bons costumes. Sua alegria, sem tocar
nas pessoas, era marcada só por um leve sorriso, um brilho
intenso
nos olhos e no jeito de olhar. Nunca a ouvi dizer que alguém
não prestava, que era ruim, pois sabia encontrar qualidades
em todas as criaturas. Assim, não me consta ter tido
qualquer
inimigo, alguém contrário aos seus interesses.
Desejo de ser rica? Não e não, queria apenas ter
o necessário para viver com certa fartura e segurança,
o apropriado para criar bem a sua dúzia de filhos, muito
embora só nove sobreviventes. Enfim, Dona Anália,
uma grande, legítima e importante mulher mineira e brasileira!
Minha querida, Dona Anália Morais, quero dizer-lhe o
que honestamente todos os filhos e filhas deveriam pensar e
dizer de suas mães, mulheres criadas por Deus para dar
sentido à vida e à luz do Amor, a verdadeira poesia
da Criação. Os parágrafos seguintes, escrevi-os
em forma poesia, agora trans formados em prosa. Acho que são
perfeitamente válidos para um amor de mãe. Ei-los:
Amarás e servirás incessantemente, todos os dias
da tua vida, eis o teu poder, a tua convicção,
o teu trabalho santificado. Os teus gestos serão sempre
movimentos de encanto, busca de paz, homenagens sinceras a Deus
por ter permitido a vida a ti mesma e a teu filho, a tua filha,
a todos os teus filhos, pedaços ou amplitudes do teu
corpo e da tua alma... Amarás, mãe, os minutos
e os segundos e tempo jamais te faltará em busca dos
mais santos carinhos com que envolverás o fruto do teu
amor. E maternidade, mãe, não precisa que seja
do teu próprio ventre, célula da tua célula,
porque ser mãe é passar pelo caminho da vida,
oferecendo dádivas do amor e da fé, o melhor que
exista no coração.
Ser mãe é passar com rastro fulgurante em cendal
de estrelas, envolvendo em luz as trajetórias dos seres
que lhes são entregues para cuidado e burilamento. Ser
mãe é sofrer amorosamente, é sorrir na
complacência, é sonhar com a esperança.
Nenhuma tarefa é mais dignificante do que a de mãe,
pois, em sua vida, dificuldade é ensino, problema é
lição, sofrimento é bênção,
tudo é alicerce divino na construção do
bem. Ser mãe é transmudar-se em bálsamo
de bom entendimento, é ter a vida dos anjos, é
esparzir misericórdia em nome do que há de mais
sagrado no amor. Ser mãe é curar o cansaço,
é ame nizar a própria existência.
Filhos de todo o mundo reverenciai, hoje, as vossas mães.
Elas são seres insubstituíveis, tesouros inestimáveis,
maravilhas da criação. A elas, joias do mais fino
labor de Deus, o nosso amor!
Há um bom tempo no Mundo Espiritual, desejo-lhe, querida
e amada Dona Anália, todas as luzes mais bonitas e coloridas
da Criação Divina. Pelo muito merecimento!
SILVINA MELANA, SEGUNDA MÃE
Já na minha experiência de cinco dias de vida,
na praça do Mercado em São João do Paraíso,
Silvina chegou para ficar e fazer parte da família até
que deixou este mundo. Uma vida inteira de verdadeiro amor e
dedicação a todos. Tratava minha mãe de
Anália, meu pai de Compadre Zeca, a todos pelo nome:
Alaíde, Nilza, que morreram criancinhas, e depois Nair,
Dercy, Jurandi, Vilmar, Zildete, Deldi, Dalvany e Olwanda, Os
outros, pelo apelido de criança ou da vida toda: Wandinho,
que sou eu, Diquinha, Dalva, Dica, Deda, Wandinha. Nair, às
vezes era Nai, e Jurandi, Jura. Meu nome para ela só
passou do de batismo depois da minha matrícula na escola,
mesmo com algumas mudanças, porque em Salinas, eu era
Wander; e em Taiobeiras, Arrudinha. O nome dela sempre Silvina
para todos,
só Diquinha e Dalvany a chamavam Silva.
Silvina foi fazer parte da nossa família quando desistiu
do marido que fora para São Paulo e nunca mais deu notícia.
Tendo só uma filha, deixou-a com uma parenta, e aceitou
o convite de Dona Anália, que tinha na época dezoito
anos, número da minha diferença de idade com ela.
Casou-se com treze, e eu só vim nascer cinco anos depois,
ela praticamente sem experiência
de lavar e limpar menino. Aí, Silvina chegou para cuidar
de tudo, da casa e do filho. Começando por mim, toda
a filharada dormia no mesmo quarto que Silvina. Ela carregava
e lavava os urinóis, dava banho, vestia as roupas, penteava
os cabelos, dava os remédios, ensinava a rezar, dava
verdadeiras aulas de religião, pois sabia quase tudo
de bíblia. Aprendemos a comer pelas mãos dela,
que adorava fazer capitão e colocar na boca de cada um.
Nunca nos deixou esconder carne debaixo do angu, nem comer com
uma colher maior do que as dos outros, porque saber viver honestamente
era coisa séria. Sabia muito da história hebraica
e cristã, porque, criancinha na casa de um parente (Clemente
Batista), ele lia a Bíblia em voz alta e gostava de comentar
tudo para que todos guardassem na memória. E Silvina
guardou tudo na consciência e no coração,
tornando-se assim uma competente professora de fé, de
uma didática que nunca esquecemos, principalmente Nair
e eu, os mais velhos.
As roupas dela foram sempre diferentes, preferindo um tipo de
saia comprida com franzidos e pregas, além de um babado
na barra. A blusa sempre branca, que ela chamava de camisa de
morim ou de americano, conforme o tecido. As saias podiam ser
de qualquer cor, quase sempre escuras, de um só tom,
que podiam ser pintadas com tintol em água fervendo.
As blusas, com gola arredondada, eram embelezadas com rendas
de vários modelos, que ela mesma fazia na almofada de
bilros. Para ir às missas, aos domingos, só serviam
as saias e camisas consideradas novas, pois tinha que ser roupa
de ver Deus. Depois de lavadas com sabão feito por ela
mesma, com óleo de mamona, passava tudo com o ferro de
brasas, soprado
de tempo em tempo. A verdadeira festa era fazer as rendas, quando
ela batia os bilros uns nos outros, como se fosse uma dança
mágica, enquanto cantava músicas da igreja. Claro,
que
a meninada ficava toda ao redor, acompanhando e admirando
tanta habilidade. Um encanto quase divino e inesquecível!
Silvina
sabia também muitas histórias de reis e rainhas,
príncipes e princesas, capitães valentes que defendiam
os palácios com espadas e bengalas, todos vestidos com
muitos enfeites, engalanados para dar mais força e autoridade.
Os banquetes, nos palácios, eram sempre com carne de
caças ou peixes que vinham de longe, um mar tão
distante que ela nem sabia onde ficava.
As maiores autoridades eram sempre os bispos e cardeais, cada
qual mais cheio de pompa, de forma a representar Deus Nosso
Senhor e impor mais fé e disciplina. Em verdade, Silvina
consciente da própria humildade e de muito respeito religioso,
não tinha qualquer dúvida de não ir diretamente
para o céu e ver São Pedro guardando a porta,
deixando entrar só as almas boas. Dizia ela que nem precisava
passar para o lado de dentro, bastando só ficar atrás
da porta, vendo os anjos cantarem e os santos rezando terços
e rosários. Lá de vez em quando, uma alma boa
e caridosa passaria pela peneira fina de São Pedro. No
céu, a reza era a água e o alimento de todos,
fosse dia ou fosse noite.
Todos os filhos da casa consideravam ter duas mães, a
que permitiu a vida, Dona Anália, e a que conservava
a vida com o maior carinho, Silvina Melana. Dona Anália
sempre presente, quase uma santa; Silvina, uma santa de verdade,
com todos os direitos e privilégios de inquilina celeste.
Um lindo paraíso, colorido e cheio de fitas de seda,
plenitude de luzes e suaves músicas apropriadas para
a eternidade. Grande Silvina!
Foi em homenagem a Silvina que Patrícia minha sobrinha,
filha de Nair e Manoel, teve na pia de batismo e no cartório
o nome de Patrícia Melana, o que muito agradecemos e
pelo que nos sentimos soberanamente honrados. Para Silvina,
o lugar mais bonito da criação divina tem que
ser o céu. O ver dadeiro lugar dela!
TIA HONORINA
Voltando bons anos na linha do tempo, todos os passos possíveis
da lembrança de menino, vejo com enorme alegria a bonita
e charmosa moça Honorina Morais, princesa de encantos
da fazenda do meu avô, numa beira de estrada de Salinas.
A casa sempre cheia e movimentada de conversas, gente entrando
e gente saindo, meu avô contando estórias na varanda,
vovó Ritinha comandando a cozinha e o pessoal do trabalho
da casa. No terreiro, entre o curral e a entrada, o jardim com
plantas em jiraus e canteiros; no quintal, uma riqueza só:
galos, galinhas, capãos, cocás, perus, um pavão
com ares de senador chefiando tudo; no pomar, a algaravia dos
pássaros, meninos armando quebras e arapucas, o chão
coalhado de frutas caídas. Um paraíso de doçuras,
um mundo encantado!
A família do meu avô João Morais era bem
grandinha, muitos filhos e muitas filhas, filhos de criação,
filhos dos agregados, entre eles o mais temido era o meu primo
Preto e o mais querido era Zé Pequeno, pau pra toda obra.
Dos homens, tio Armindo e tio Agenor já casados; das
mulheres, casadas eram tia Diolina, tia Maria, tia Ormezinda
e Anália, minha mãe.
No
time de solteiros, tio Abílio, tio Agenor, Tio Argemiro,
tia Nininha e tia Honorina, tia Honorina sempre a mais ativa,
a mais bonita, a dona das festas. Com ela e por ela, saía
do forno um universo de gostosura: biscoito fofão, biscoito
espremido, biscoito cozido-e-assado, manuê, bolo de fubá,
pão sovado, além de broas e roscas; do fogão
à lenha, goiabadas, marmela das, doce de leite, de manga,
de mamão enroladinho, doces de casca de laranja, suspiros,
sonhos e quindins. Eita mão boa! Se era tia Honorina
que tinha feito, todo mundo queria, principal mente quando vovó
mandava a gente pegar leite na despensa, aquele leite grossão,
cheio de nata, tão espesso que vovó não
dizia “tomar leite”, falava “comer leite”.
Em todo o universo da casa de vovô João Morais
e vovó Ritinha, o nome sempre mais falado era o de tia
Honorina e tio
Armindo, ele porque era quem sabia ganhar dinheiro, muito dinheiro,
rico desde rapazinho; ela porque era a mais prendada, a mais
admirada por ser portadora de todas as habilidades que uma fazenda
exigia. Precisávamos assar uma codorna, limpar um peixe,
fazer uma gemada?! - era sempre ela que dava encaminhamento.
Boa ouvinte, ficava ao lado de vovô, quando todos se sentavam
para ouvir os causos de Lampião, da Princesa Magalona,
dos Doze Pares de França e dos revoltosos que passaram
por lá e obrigaram todos a se esconder no mato por mais
de um mês. Tia Honorina era quem dava conselhos, pregava
botões, serzia meias, escrevia cartas, fazia remendos,
quando a gente rasgava a roupa. Moça inventiva e prática
que não podia faltar hora nenhuma.
Lembro-me de tia Honorina viajando de cilhão, com chapéu
de camurça, calça largona quase atrapalhando as
esporas.
Era boa cavaleira e chegava a carregar a meninada no cabeçote,
como faziam tio Abílio e tio Agenor. Lembro-me de tia
Honorina rezando rosário, embora preferisse o terço
porque era mais curto e a reza não demorava tanto. Na
hora de dormir, ela mandava os meninos lavarem os pés
e rezar para os anjos de guarda. Ninguém podia dormir
nu, porque senão o bicho aparecia. Quem tivesse medo
do escuro, podia dormir com uma lamparina de azeite ou um fifó
que tinha de bem longe da cama, para não correr perigo
de fogo. Assim, era ela que distribuía sorrisos dia e
noite, de manhã e de tarde. Quando a
gente acordava, era a primeira a perguntar se já tinha
rezado
para que o dia pudesse ser tranquilo e cheio de coisas boas.
Falei de tia Honorina em horas do almoço e de janta?
Falei do casamento, do nascimento de Edes, de quando ficou viúva?
Falei não, são causos que ficam para outra crônica,
com muitas novidades.
Agora que tia Honorina completa bonitos oitenta anos de vida,
com amorável comportamento no que ela é e em tudo
que faz, com incondicional multidão de amigos, os abraços
meu, da Olímpia, dos sobrinhos e netos e... do mundo
todo. Feliz aniversário, tia Nora, melhor tia do mundo
A ALEGRIA DO MONSENHOR
Não me canso de ter saudades do tempo bom e gostoso das
aulas do Colégio Diocesano, de quando podíamos,
todos os dias, sentir e ouvir a alegria do Monsenhor Os mar,
a braveza do Padre Agostinho e a terna amizade do Monsenhor
Gustavo. É de fato um momento inesquecível, de
quando cada gesto era uma lição, cada atitude
uma experiência de seres em luta e em paz com a vida.
Os três juntos, ou cada um em particular, eram para nós,
meninos-rapazes, o grau mais alto da sabedoria, a fonte inesgotável
de conhecimento, os degraus por onde alcançar a segurança
do futuro. É claro que, particularmente, um por um tinha
o seu séquito de seguido res, dependendo da esperteza
ou do grau de inteligência de cada aluno, ou mesmo da
maturidade ou falta de juízo, como podíamos encontrar
nos mais sérios como Geraldo Miranda e Nivaldo Neves,
ou nos mais afoitos como Pai da Mata e João Doido. Em
órbita havia gente de todo jeito, tipo Tereziano Dupin,
Renato Pobre, Renato Almeida, Dezinho Dias, Ivan Guedes, Lazinho
Pimenta, Raimundo Santana, José Maravilha, perso nalidades
marcantes que iam do folclore à poesia, do trabalho sério
à justa compenetração.
Cada
dia era um novo esquema de novidades, de surpresas, uma sensação
de estarmos construindo o mundo, preparando-o para a nossa geração
e para todas as outras que poderiam vir depois de nós.
Ninguém fugia da luta, tirar o corpo de banda, em qualquer
tarefa, era um sacrilégio. Matar aulas era pecado capital.
Durante a semana não valia nem cinema nem namoro. A ordem
era estudar! Uma única transgressão era permitida
e só ao Miranda, porque ele havia inovado o sistema,
inventado uma saída, namorando com a professora Lourdes,
inteligentão que era. O Dezinho Dias, já mais
velho um pouco, falava de fazendas, de vez em quando. O Raimun
do Santana era um importante, pois tinha bicicleta e tomava
uísque antes das provas de matemática. Ivan impunha
grande respeito: de vez em quando jantava em restaurante, sábado
à noite depois do grêmio. A maioria, como eu, não
tinha dinheiro nem para picolé ou quebra-queixo, e quando
muito, bebíamos caldo de cana. Cafezinho era luxo!
Professor bom mesmo era o Pedro Santana, vibrante, grã-fino,
dominante nas cadeiras de História, Ciências e
Inglês, um terror para quem não tivesse as matérias
na ponta da língua, a capacidade de responder, falando
ou escrevendo, sem gírias. Pedro era tão imponente,
que não repetia ternos e gravatas durante um mês,
cada dia uma nova cor, hoje um três-botões, amanhã
um jaquetão, tudo dentro do melhor figurino de Vavá
ou Wilson Drumond. O cabelo, ah! O cabelo era que merecia o
maior cuidado! A barba, de um barbear diário na barbearia
de Antônio Guedes, com massagem facial, na mes ma hora
em que também estavam sentados os grã-finos Júlio
de Melo Franco e Nelson Vianna, fregueses de manhã cedinho.
Errar com Pedro ou com o Padre Agostinho – outro elegante
– era
imperdoável. A nota menor que um bom aluno podia tirar
era dez. O nove era um feito vergonhoso!
Havia outros professores famosos e entre eles o Tabajara, a
Terezinha Pimenta, Doutor Carlyle, Maria Inês, D. Rosita
Aquino e o Belizário, que falava latim e tinha o cabelo
parecido com o de Castro Alves. Em certas ocasiões, o
Bispo D. Antônio chegava a assistir a algumas aulas, sentado
conosco, perguntando e participando, como se não soubesse
de tudo! Foi a maior inteligência que conheci, uma cultura
universal, um
poder oratório que Montes Claros nunca teve igual, nem
com
o Simeão Ribeiro... Era um admirável mundo novo,
principal mente para mim, que sem ternos e sem paletós
– o primeiro foi o Vadiolano Moreira que me deu - achava
tudo aquilo um sonho em realização. Maravilhosamente
encantado, sedento de aprender, nunca cedendo o primeiro lugar
a ninguém, uma coisa marcou-me profundamente a diretiva
na vida e me tem servido constantemente de bom exemplo: a alegria
de viver de
Monsenhor Osmar Novais de Lima, nosso diretor!
TIO
ABÍLIO MORAIS
Sempre fico imaginando no jeito de ser das pessoas que foram
as mais importantes na minha longa vida. De como elas eram e
como se comportavam quando sozinhas ou no convívio com
a gente de casa e as pessoas da rua e do mundo. Penso na postura
em geral, na forma de falar e conversar, na posição
de ficar quando em pé ou quando senta das. Sempre alegres?
Tristes, preocupadas, ansiosas, cheias de cuidados? De bem ou
de mal com a vida? Chegadas às rotinas, cheias de aventuras?
Pensativas, falantes, sensíveis à aprova ção
das pessoas? Tenho um mundo de ideias de como eram ou poderiam
ser.
E é pensando assim, no todo e em geral, que imagino meu
tio Abílio Morais, irmão de minha mãe e
de quase uma dúzia de irmãos, homens e mulheres
que tiveram excelente criação por parte do meu
avô João Morais e minha avó Ritinha, mulher
de todas as prendas, principalmente para fazer requeijão
e doce de leite. Só em ser filho de João Morais,
marca uma grande vitória, porque ninguém melhor
do que o meu avô, que foi príncipe da alegria e
do bom viver, seja com o embornal na roça, seja, à
noite, deitado na rede, a contar estórias e narrar sonhos,
multidão de gente ao redor, ouvindo cada palavra, sen
tindo cada pausa.
Aí é que viveu meu simpático Tio Abílio,
de boa altura, nem alto nem baixo, tamanho de que pode pegar
peso e andar com pressa ou com calma. Sempre fazendeiro bem
de vida, dos primeiros a acordar, pela manhã, o lugar
certo de encontrá-lo era no curral, vacas já apartadas
para tirar o leite. Uma acerta
da tarefa chefiada por ele, todos respeitando sua competência
diante dos latões que tinham que estar cheios. Na vasilha
de apara, aquela brancura maravilhosa, o mundão de espuma
a cada puxada no peito da vaca. Falo com muita autoridade so
bre esses momentos, porque era lá que eu chegava, acredito
em primeiro lugar, já com o copo esmaltado limpinho,
para receber a minha cota de cada manhã. Quentinho o
leite que espirrava no copo, era só a gente ficar sorvendo
e lambendo os beiços. De gostosura maior não me
lembro. Encantador tempo de infância!
Muitas e muitas vezes viajei com o calmo e otimista, Tio Abílio,
saindo de São João do Paraíso para Salinas,
ou de Salinas, de volta para casa no São João.
Mula bem arreada, Tio Abílio, para me dar tranquilidade,
colocava um pano acolcho ado no cabeçote, onde eu me
assentava com todo conforto, as costas apoiando em seus braços,
rédeas do lado direito ou do lado esquerdo. Ele, de esporas
prateadas, usava um cabrestinho leve para animar o cavalgar,
quando preciso. Atrás da cela, os alforges com a matula,
o cantil de água e alguma fruta para a sobremesa nos
intervalos da viagem. A partida era sempre bem cedinho, depois
de um fornido café com leite, bolos de puba e biscoitos
cozidos e assados e espremidos, além da broa e
do biscoito fofão, este entre o sabor doce e o salgado,
uma delícia que mamãe colocava quentinho na mesa,
em cima de uma toalha bordada. A viagem era mais gostosa que
uma de carro de bois, de fordinho ou de caminhão. Além
de tranquila, integrava a natureza, a gente vibrando com cada
pedaço de estrada, vendo e sentindo os verdes da paisagem.
Paradas, só para dar água aos animais ou mesmo
para nos confortar, quando em momentos de sede.
Nas chegadas em Salinas ou em João do Paraíso
eram sempre uma festança, com muita comida e muito café
com leite. Bem melhores do que as passagens por Coqueiros e
Taiobeiras, mesmo havendo muito o que comer e beber, além
das prosas, dos casos e dos comentários sobre política
e acontecimentos da vida diária. Nas chegadas, a primeira
coisa que Tio Abílio fazia era desarrear os animais e
colocá-los na sombra, para o mereci do descanso. Tio
Abílio era, de natureza, um homem bom, sempre pensando
no bem, das pessoas e dos bichos.
Para os meus leitores, principalmente os de Montes Claros, a
melhor forma de identificar o meu Tio Abílio é
dizer, que temos como nossos amigos, dois filhos queridos que
ele criou e educou com todo cuidado: o doutor Oswaldo Morais,
oftalmologista, e nossa querida professora Maria Inês
Morais Ferreira, mãe das sempre meninas, Maíra
e Talita, minhas primas, que coloquei como centro material e
espiritual do meu poema “Quinze anos, menina-moça”.
Bom concluir, reafirmando minha admiração pelo
sem pre calmo e importante fazendeiro, tio Abílio Morais,
de ines quecíveis olhos claros. Declaro-me feliz e agradecido
por ter participado por bom tempo da sua vida. Valeu!
A VOZ GOSTOSA DE EDITE PIAF
É preciso saber descobrir sempre o lado gostoso e nobre
de cada momento de nossa vida. Buscar a felicidade é
uma obrigação e a própria busca deve ser
um motivo de ser feliz. É o que acontece comigo todas
as vezes que entro no foyer do Teatro Nacional de Brasília,
que desço a rampa aveludada e bonita e vejo aquela majestade
de auditório, aquele conjunto monumental que só
Niemeyer poderia imaginar e realizar. Ir ao Teatro Nacional
de Brasília me oferece um gratificante prazer, um bom
motivo de alegria. Foi assim a sensação que tive
quando Dagmar, Anderson e eu tomamos o primeiro contato com
a nossa turma, antes e durante a apresentação
de Bibi Ferreira, na peça Piaf, um sonho de interpretação.
Foi as sim quando nos sentamos, bem em frente, ao palco, num
bom grupo composto por lasbek, Riza, Carlos Hetch, e Carmen,
ven
do do outro lado bons colegas de trabalho, tendo como desta
que em mais de meio auditório o charme de Ângela
Momm.
Curioso que tenha prevalecido em grande parte a cor vermelha,
um vermelho forte, vivo, flamejante. Entre nós, e muito
feliz, de vestido, bolsa e sapatos vermelhos, a Ivone. Íria,
mais feliz ainda, com um rosa choque que, à luz da noite,
ninguém diria que não era vermelho. Valquíria,
Daniel, Eduardo,
Roberto, Cardenas, todos de camisas vermelhas. O Carlos, não
sei se menos ou mais, também com vários detalhes
de verme lho. Quando acende a iluminação do palco,
o fundo espouca em vermelhidão intensa, vivíssima
como um campo de luta, formando conjunto com o foco avermelhado
que iluminou Bibi durante todo o tempo. Em contraste, como num
romance francês, o negro das roupas do luxo e da pobreza
que, de início, apavoram a consciência e a visão
do espectador. Para compor, de nosso lado, a negritude da camisa
do muito mineiro Moacir. De lá e de cá sempre
o negro e o vermelho.
A voz de Bibi Ferreira, a presença, os gestos, o pessimismo,
o lado difícil da vida que ela faz explodir a todo instante,
o minúsculo físico sem nenhum traço de
beleza, tudo marca a alma de Edite Piaf. É Piaf purinha
com a visão de contempora neidade, é realmente
como se estivéssemos em presença dela.
Aliás, mais do que isso: as duas, se parecem, quase uma
mes ma pessoa, todas duas famosas, marcadas visivelmente pela
muita idade, com desgaste que a própria vida artística
impõe e provoca. A voz, a princípio, miudinha,
pedindo desculpas por existir, de repente enche e preenche o
ambiente e vai tomando volume, ganhando corpo, envolvendo, límpida,
num crescendo admirável como se representasse toda a
força da sonoridade da eterna França. É
como se estivesse no espírito dos cabarés de Paris,
no Olimpia, o máximo da glória de toda a arte,
muito mais do que o Carnegie Hall ou qualquer outro teatro do
mundo, inclusive o Nacional de Brasília, em que estamos
presentes.
Ouço e vejo Piaf e me transporto numa doce saudade para
as ruas parisienses, as praças, os monumentos, os «bou-levards”,
os museus. Sinto no acordeom, na harmonia do fun do musical,
e atmosfera de cultura, do gosto de sensibilidade que os franceses
sabem cultivar com tanto amor. Vejo-me no alto da Torre Eiffel,
no Arco do Triunfo, na Place de la Concor de na Pigale, no Sena,
dentro de um bateau mouche, na Nôtre Dame, nos teatros
de revistas, no Louvre, no meu modesto ho tel de viajante solitário
e muito feliz. Vejo-me correndo do frio, embevecido com o colorido
das luzes, das bancas de jornais e revistas, das bancas de frutas
vermelhinhas, com os brilhos dos restaurantes e cafés,
ah! os cafés! Vejo me envolvido com a alegria das crianças
e a beleza magra das mulheres, com a di
versidade de tipos, com as roupas que estrangeiros e franceses
desfilam nos passeios e jardins. Sonho e vejo!
E depois de tudo, emocionado, agradeço à arte
de Bibi e a oportunidade de estar em Brasília. Nada melhor
do que matar uma saudosa saudade!
ADÉLIA
MIRANDA:
25
ANOS DE FAFIL
Quase fim de 1988, vejo hoje Adélia Miranda, doce e querida
amiga, como a vejo e tenho visto desde os dias em que, quase
menino, cheguei a Montes Claros. Ela, também garota,
novinha, estudante não me lembro se do Colégio
ou do Instituto, era colega de Mary, filha de Dona To nica,
proprietária da pensão onde fiquei morando. Adélia
fazia parte de um lindo grupo de Tiana Osório, Belvinda
e Lola Chaves, amigas da Mary, tudo gente fina, do melhor trato,
um re sumo social do melhor que havia. Não demorou muito
e todas se viram ligadas a mim, acredito mais pelo inglês
que eu sabia e lhes era útil do que propriamente pela
minha alegria de viver e pelo meu espírito brincalhão
que as fazia rir o tempo todo. Elas grã-finas, elegantes,
bem postas na vida. Eu, pobre estudante e balconista de duas
mudas de roupa, um só par de sapatos, provinciano, salvando-me
apenas pela garra de traba lho e estudos e pela confiança
no destino que poucos jovens do mundo poderiam ter.
Mentalmente, escrevendo esta crônica, vejo Adélia
ainda em nossa sala de estudos da casa de Mary, janela para
a Rua Afonso Pena, esquina com a Padre Marcos, aquele bequinho
que saia do Colégio. Fugindo das horas movimentadas do
almoço e do jantar, o ambiente fazia silêncio para
as almas jo vens, interessadas e estudiosas. Pouco se falava
de namoros, de cinemas, de “footing”, mas muito
de gramática, de história, de geografia, de latim,
territórios em que eu, mesmo nos primeiros dias, já
circulava com a maior desenvoltura, inclusive com experiência
de redação. Tempo gostoso e bom, quando eu me
sentia importante, bem-visto, cortejado por uma admiração
que podia ser notada facilmente nos olhos de cada uma. Afinal,
como po dia aquele garoto de São João do Paraíso
saber tanta coisa que a escola não lhes ensinara? Adélia,
então, chegava a fazer-me confidências do quanto
os nossos encontros eram agradáveis e proveitosos. Ninguém
faltava. Ninguém atrasava. Era satisfação
que transitava em todas as direções!
Muitos anos depois, já longe das escolas secundárias,
se parados pelo trabalho e pela própria dinâmica
da vida, vejo-me, de novo, junto a Adélia nos primeiros
dias de Faculdade de Filosofia, quase no mesmo espaço
geográfico da Pensão da mãe de Mary, uma
vez que a FAFIL se instalou exatamente no prédio do Colégio
das irmãs. Lá estava Adélia, secretária
de todas as horas, doçura de amizade, consideração
sem igual, sempre presente em alma jovem e sincera, raro privilégio
da vida. Adélia da mesma simpatia, sabor de mel no convívio
ameno e prazeroso, suave em todos os momentos! “Quem não
gosta de Adélia, de quem gostará?”, eterna
pergunta que a beleza de sua própria voz apresenta nos
cantos das serestas tão vivas de Montes Claros! Doce
Adélia, que agora completa vinte e cinco anos de FAFIL,
tão amada quanto no início! Estimada, admirada,
querida de todos, linda presença de uma eficiência
sem igual. Adélia, a própria FAFIL! Se não
existisse, teria de ser inventada!
De
todos estes anos de FAFIL, também com Belvinda, com Lola,
com tantos e notáveis companheiros e companheiras de
estudo e de trabalho, jamais será esquecida a figura
quase santa de Adélia Miranda, grande secretária!
Para este primeiro quarto de século, muitos tributos
ainda serão cobra dos em favor da importância do
trabalho de muitos dirigentes, de centenas de professores, de
funcionários estimadíssimos, até de um
punhado de bons alunos. Nenhuma figura, entre tanto, em nenhuma
época, será tão importante como a de nos
sa doce Adélia, grande Adélia Miranda amada e
protegida de Deus e de todos os deuses da amizade e do amor!
Que o futuro lhe seja sempre luminoso e cheio de sono ridades.
Tão lindo como as suas melodias na seresta de nossa Minas
Gerais!
AVENTURA ANTES DO NATAL
Eu havia chegado de uma viagem de férias, começada
em meados de dezembro, quando me entregaram aviso e um convite
para receber um prêmio em Goiânia. A Segunda Semana
de Artes de Goiás tinha escolhido um quadro meu - “Estrada
em Movimento” - com premiação em dinheiro
e diploma, e queria a comissão que eu fosse pessoalmente
participar da festa. Como não estava em período
de serviço ainda, nem pensei duas vezes e tomei o primeiro
ônibus para Brasília, aonde cheguei numa manhã
linda, com um sol de rara
beleza nascendo multicolorido no meio dos dois blocos do Congresso
Nacional, coisa de muito agradar a quem pinte ou escreva qualquer
pedacinho de vida ou de natureza. E foi aí em Brasília
que descobri o aperto em que me metera, um sério
envolvimento de dificuldades em véspera de Natal. Não
havia passagem para voltar a Montes Claros, a tempo de participar
das festas da família. Tudo, além de difícil,
impossível.
Quando as coisas não ficam fáceis, o pior que
pode acontecer é esquentarmos o juízo, mas um
pouco de calma será sempre o melhor caminho, já
que cautela não faz mal a ninguém. Não
ir para Goiânia, naquela hora, seria colocar a alegria
e
o sacrifício em total prejuízo. Ficar na capital
não era bem o meu destino. Ir para outra cidade também
não tinha graça. E o que fazer? Examinar todas
as possibilidades, uai! E foi aí que achei a solução
melhor. Rapidamente, vi que um velho sonho poderia ser concretizado,
já que conhecer o grande sertão era meu mais velho
desejo, principalmente se pudesse passar pela Serra das Araras
e ver todas as matarias descritas por Guima rães Rosa
nos seus livros. Comprei a última passagem, do dia
23, para São Francisco, previsão de saída
às 7 e chegada às 5
da tarde, e nem mais pensei em prêmio de pintura, muitíssimo
mais interessado em torno da nova aventura.
De volta de Goiânia, pouco antes das 7, em Brasília,
uma multidão diante da tabuleta de nosso ônibus,
gente que dava para quase três viagens. Faltando 5 minutos,
o motorista avisou ao pessoal sem passagens que todos deveriam
ir, a pé, até a W-3, aguardando lá por
um tempinho, pois, só poderia sair da Rodoviária
com viajantes sentados. Ficou na fila pouco mais de um terço,
e uns sessenta saíram para obedecer à ordem.
O que vimos, em seguida, debaixo do primeiro viaduto, era para
qualquer pessoa normal duvidar, pois não seria possível
aquele carro suportar nem peso nem o volume de tão numerosa
clientela. Foram seis longos minutos de acomodação,
ajeito aqui, ajeito ali, gente mais nova sentada no colo de
gen
te mais velha, namorados e recém-casados bem juntinhos,
os
mais afoitos sentados no encosto dos braços, uma verdadeira
lata de sardinha humana.
Antes de Unaí, umas duas paradas para mais passageiros.
Não adianta dizer que não dava, não podia,
porque sempre era encontrado um recurso, um aperto mais e tudo
bem!
No
ponto de café onde o motorista disse que era apenas um
minutinho, só para sair gastamos um quarto de hora. Para
en trar todo mundo de novo, aí já com mais seis
passageiros, pelo
relógio não foi menos de quarenta minutos. Houve
horário de almoço, mais três companheiros
de aventura e mais demora
de entrar e sair, porque estômago cheio dá sempre
preguiça.
Quando paramos à tarde para o café, não
precisou ninguém descer, porque as laranjas, bananas,
melancias, pastéis e brevidades, assim como rodelas de
cana tudo foi comprado pelas janelas. Uma grande novidade e
um milagre de salvação foi o aparecimento de água
mineral, creio nada mais importante num dia de tanto calor.
Na Serra das Araras, um lugarzinho bem bonito, arborizado, com
praça toda verdinha de grama, apareceu uma se nhora para
viajar, com três meninos lourinhos e um engrada do com
dois perus fazendo glu-glu-glu. De início, o motorista
não concordou, dizendo ser impossível, pois, se
houvesse lugar para ela e para os garotos, onde é que
iria colocar os perus? Foi uma curiosidade geral, gente e mais
gente botando a cabeça para fora da janela, querendo
dar palpites e ajudar na situação. Realmente,
onde colocar os perus? Problema para nós e para o condutor,
porque, para ela, tudo normal. A dona chamou o trocador, mandou-o
tirar três ou quatro malas e alguns sacos e embrulhos,
olhou e reolhou o bagageiro e, como
velha viajante, enfiou seu caixote no meio dos tarecos do povo.
Foi um alívio geral. De cabeça erguida, importante,
ela pegou os meninos, sorriu, limpou o suor da testa, e com
eles ocupou o primeiro degrau depois da entrada.
Quando
chegamos a São Francisco, não às 5 da tarde,
mas às 8 da noite, o ambiente interno estava tão
carregado e tão cheio que a porta só podia ser
fechada ou aberta por alguém do lado de fora. Ninguém
precisava ter medo de cair ou escorregar, porque para isso não
havia nenhum espaço vago.
Embora não fosse minha obrigação, julguei
importante fazer estatística para o DER ou para quem
interessar possa. Com motorista, ajudante e todos nós,
cento e vinte e três passagei
ros desceram: 121 humanos e 2 perus. Só nós sobrevivemos
até o Natal. Os perus devem ter sido argumento de bom
apetite durante as festas. Ou antes, porque sabemos que peru
morre na véspera...
DE LISBOA
Minha crônica sobre a viagem a Portugal, quando Wladênia
nasceu, há dezoito anos, foi muito gratificante. Muitas
foram as palavras de carinho recebidas em casa, na escola, de
amigos. Quando um assunto versa sobre alguma coisa de mais pessoal,
fala mais ao coração, transubstancia sentimentos,
vale pela carga ou sobrecarga de afetividade, diz o que muitas
pessoas gostariam de dizer. Agrada e sensibiliza, graças
a Deus! E o mundo está precisando muito de vibrações
mais positivas, de alegria, de amizade sincera e franca. Assim,
dou-me por satisfeito e volto ao assunto de Lisboa, o que estava
mesmo nos meus planos ao falar das andanças pela pátria-mãe.
É possível que a parte maior da minha felicidade
em Lisboa tenha sido pela companhia de bons companheiros de
viagem, entre eles duas pessoas do mais alto valor, duas personalidades
admiráveis e inesquecíveis, gente que engrandece
o ato de viver. Dulce Sarmento e Antônio Loureiro Ramos.
Que bons colegas e quanta jovial sinceridade naqueles dois!
Como amavam a vida! Fazia gosto vê-los quedado diante
da beleza, emudecidos de emoção diante do bem.
Antônio Ramos era homem
de conhecer o que havia de melhor no mundo e por isso, era viajante
incansável ao lado de D. Flora, sua mulher. Dulce Sarmento,
a arte personificada, uma fé que beirava à santida
de, tinha na balança do belo a leveza dos anjos!
Foi assim no meio de um grupo admirável que vi Lisboa,
a cidade que mais encanta os brasileiros e conosco se encanta
também. Não posso calcular quanto a “revolução
dos cravos vermelhos” tenha modificado a capital e o povo
da nação por tuguesa, depois da descolonização
da África e das enchentes de retornados com diferentes
costumes e muita revolta nos corações. Mas, por
mais que tenham feito, acredito que Lis boa ainda é uma
cidade muito interessante e para nunca se esquecer! Por lá,
passei também duas vezes sozinho, solitário, ruminando
emoções no Castelo de São João,
nas ruas estreitas
de Alfama, nas margens do Tejo, na Estufa Fria, às margens
da Avenida da Liberdade e até no barulho da Praça
dos Restaura dores.
É preciso tempo e coração para descobrir
Lisboa, eterna menina e moça, linda e encantadora. Como
é gostoso ouvir falar do povo, principalmente os mais
novos, os que, namorando, falam com a melodia do amor! Como
é bonita a língua por tuguesa falada nas tascas,
onde os bebedores ainda não bêba dos soltam a língua
com a musicalidade que só os libertos pelo torpor do
vinho conseguem! Tudo é bonito quando estamos felizes:
o barulho das crianças, o anúncio dos vendedores,
a algazarra dos desocupados! Sons, cores, movimentos, gestos,
tudo é alegria!
É preciso saber viver cada momento, tirar da vida os
encantos que a vida tem, agradecer a Deus cada momento bom que
a existência nos oferece, nos proporciona, nos permite.
Merecedores ou não, é gratificante aproveitarmos,
fruirmos cada instante feliz. Não importa onde nem quando.
Se for em Lisboa, leitor, então nem é preciso
pensar: a realidade é mais do que o sonho!
DEZ
ANOS DE TINTAS E PINCÉIS
Lembro-me como se fosse ainda hoje o dia em que, na casa de
Samuel Figueira, eu dera palpites, mais do que o usual, na sua
forma de pintar, no uso das cores, na escolha dos temas e creio
que até na evolução dos seus quadros. Devo
ter exagerado na função de crítico, e foi
daí que veio o desafio: Por que eu, que queria saber
tanto de pintura, não tentava fa zer um quadro ali mesmo,
diante dele, de Mila, sua mulher, e de Shirley Durães,
que os visitava naquela tarde de domingo? Insulto ou convite,
chamamento ou convocação, fosse o que fosse, não
me fiz de rogado e lancei-me ao trabalho, imedia tamente, pintando
a minha primeira paisagem azul, branca e verde, chapada, lisinha
e até com um pouco de transparência. Para começo,
creio que foi até um sucesso, em pouco mais de duas horas,
com ele Samuel orientando aqui, orientando ali, e até
ajudando dar uns retoques nos coqueiros, porque me fal tava
naquela hora uma certa leveza que, aliás, falta até
hoje.
Há poucos dias, em Mirabela, Shirley me lembrou da façanha
e perguntou-me se valeu a pena todos estes anos de aventura
no mundo dos tubos de tinta, de pincéis, de espátulas
e de telas. Quis saber também se eu me considerava mais
feliz com a atividade de pintor, metiê que sofre tanta
crítica de quem entende do assunto e até muito
mais de quem não entende nada. E qual seria minha resposta?
Claro que tudo vai bem, a pintura tem sido um grande passatempo,
um exercício de paciência realmente maravilho so,
uma nova fonte de estudos, um encontro e reencontro com a arte
que tem atravessado séculos de admiração
e encanta mento. Quando estou pintando, as horas passam como
ver dadeiros sonhos, interessantes, cheias de gratificação
mental, gostosas mesmo. E quanto às críticas,
principalmente as desfavoráveis, têm-me ajudado
muito, contribuem para mudanças e busca de melhor desempenho.
Na verdade, não sei como ando, porque há muito
tempo não me encontro com Samuel e com Konstantin, meus
dois orientadores mais exigentes que, elogiando, ainda fazem
repa ros, dão sugestões, nunca se mostram totalmente
satisfeitos. Não falo de Godofredo, porque este nunca
acha boa a pintura de ninguém e só raramente dá
uma palavra de incentivo, tanto
faz para velho como para novos. É que o bom GG acha a
profis
são muito sofrida, trabalhosa, difícil. E também
para ele, pintura só vale a clássica – acadêmica
- a real nas cores e na forma. Essas invenções
nossas são coisas de gente que acha que sabe, mas, não
sabe... Cristina, há poucos dias, olhou quase tudo que
preparei para a minha exposição do dia 3 de julho,
no Centro Cultural, disse que gostou, mas, perguntou por que
eu havia abandonado a pintura de flores... Os críticos
da família, a Olímpia, a Wladênia, a Rízzia,
a Nádia, estas seguem cada trabalho e servem de “feedback”
no exato minuto de cada pedido de avaliação. Wlader,
Danilo, Denílson, Wanderlino Filho andam meio ausentes
no momento.
É
o que tem acontecido e não posso me queixar. Não
me têm faltado os melhores e mais proveitosos momentos
nestes dez anos de trabalho, exatamente quando vou completar
o primeiro meio século de vida. Pintar tem sido uma distração,
uma forma de paz interna e externa, uma evocação
de viagens, um rememorar de paisagens. Depois que comecei a
pintar, a Natureza jamais passou por mim (como eu tenho passado
por ela), como página em branco. Cada estrada, cada pedaço
de céu, cada folhagem, uma superfície de água,
por menor que seja, é sempre uma festa para os olhos
e para a imaginação. O pintor é um ledor
de cores, de movimentos, de formas, um visualizador e dimensões
que existem e que não existem...
Já ia me esquecendo de fazer um conserto sobre o re lacionamento
de Godofredo com os seus colegas menores da arte pictórica.
Ele não gosta é de pintura dos outros. Dos pintores
ele tem sido grande amigo. No que me toca, o mestre Godô
só tem me dado palavras de entusiasmo. Talvez seja eu
a única pessoa a quem ele tenha procurado ensinar as
técnicas de pintura. E sou-lhe muito grato por isso!
É
BOM FALAR DE MARÍLIA
Wladênia chega e me diz que a professora Neide Pimenta
quer que eu fale para seus alunos do segundo grau do Colégio
São José.
O dia e a hora já estão marcados, dependendo do
meu tempo disponível. No auditório estarão
mais de cem alunos de várias turmas, tudo indica, interessados
em conhecer mais um pouco sobre Marília de Dirceu, principalmente
com relação ao conflito de estilos de Gonzaga
na sua obra mais famosa. É que Gonzaga, como Machado
de Assis o fez mais tarde, tinha por hábito assenhorar-se
das habilidades do seu século, voltando ao passado e
fazendo investidas no futuro, de modo a ser barroco, neoclássico
e um incorrigível pré-romântico. De pronto,
já sei que Neide, excelente professora de língua
e literatura portuguesas, deve ter ensinado tudo ou quase tudo,
querendo apenas um respaldo para aumentar o entusiasmo da moçada.
Pergunto a Wladênia o tema indicado, possíveis
variantes, receptividade dos seus colegas ao assunto, gosto
deles pela literatura, relacionamento com a professora. Pergunto
mais: como a Neide tem abordado a matéria, qual o seu
ponto de
vista pessoal sobre estilos de época, quais as diferenças
que ela faz de um para outro como elementos de ênfase
didática. Pergunto mais ainda: que livro é adotado
pela professora de literatura do Colégio São José
e qual a atenção que os alunos têm dado
a esse livro. Wladênia vai me informando de tudo sobre
professora e sobre os colegas de trabalho. Não fico satisfeito
completamente e peço seu caderno de anotações
em classe, pois desejo saber a ordem imposta ou sugerida pela
mestra. Ela me mostra o livro e todas as orientações
escritas. Parece muita exigência de minha parte, mas minha
experiência de antigo político me diz que devo
conhecer todos os dados possíveis antes de enfrentar
um auditório, principalmente do São José,
escola a quem tributo legítimo respeito.
Tudo em mãos, preenchidas todas as condições,
adaptado o horário, confirmo e faço o compromisso.
Inicia aí uma nova batalha, a parte mais complicada,
a busca dos elementos que possam enriquecer os sessenta minutos
de intercâmbio com meus jovens ouvintes. Por força
de hábito profissional, Tomás Antônio Gonzaga
já esmiuçado outras tantas, ele sempre passivo
nas letras dos livros, mas um fiel orientador desde os meus
muitos anos de estudos e de magistério. Imediatamente,
procuro o exemplar anotado de “Marília de Dirceu”,
a Introdução à Literatura Brasileira, de
Afrânio Coutinho, um dicionário de literatura,
um dicionário sobre deuses e heróis do mundo antigo
greco-romano, mais uns dois compêndios escolares de nível
médio, além do manual adotado em classe.
Está iniciada a fase de pesquisa e todas as horas disponíveis
serão ocupadas com o novo assunto.
Que grande prazer é voltar a “Marília de
Dirceu”! Com que sofreguidão encaminhar-me no ritmo
e na musicalidade da lira do Gonzaga! Quão gratificante
é esse trabalho-ilusão, essa busca de poesia,
essa viagem de reencontro com o que há de mais belo na
literatura de nossa língua! Ver, sentir, com preender,
acompanhar alegrias e tristezas! Analisar de perto o amor, as
tramas do apaixonado, do lírico, do quarentão
que se
embeiça pela menina de dezessete. Que bom!
Três dias depois, chego ao Colégio São José
para falar a um auditório de garotas e garotos quase
da idade de Marília, muitos com o mesmo tempo de vida
da jovem de Vila Rica. Eu, mais vivido que Gonzaga. Mas, com
um tema tão bonito, con fesso que me senti mais novo,
bem mais...
FERNÃO CAPELO GAIVOTA
Na superfície do azul brilhante do céu, tentando
a custo manter as asas numa dolorosa curva, Fernão Capelo
Gaivota levanta o bico a trinta metros de altura. E voa. Voar
é muito importante, tão ou mais importante que
viver, que comer, pelo menos para Fernão, uma gaivota
que pensa e sente o sabor do infinito. E verdade, que é
caro pensar diferentemente do resto do bando, passar dias inteiros
só voando, só aprendendo a voar, longe do comum
dos mortais, estes que se contentam com o que são, na
pobreza das limitações. Para Fernão é
diferente, evoluir é necessário, a vida é
o desconhecido e o desconhecível. Afinal uma gaivota
que se preza tem de viver o brilho das estrelas, analisar de
perto o paraíso, respirar ares mais leves e mais afáveis.
Viver é conquistar, não limitar o ilimitável.
Sempre haverá o que aprender. Sempre!
Olhar de frente, alcançar a perfeição,
gostar muito, muitíssimo, do que se faz, eis o segredo
de Fernão Capelo Gaivota. Só porque existem gaivotas
que não pensam com os mesmos pensamentos, que não
raciocinam com o mesmo raciocínio, não é
problema para Fernão. Mesmo sendo apenas um entre um
milhão, mesmo tendo de percorrer um caminho quase infinito,
Fernão sabe, é intuito, de que na vida há
algo mais do que comer, ter posição importante,
ser amado ou criticado: viver é lutar. Uma, cem, mil
vidas, dez mil! Até chegar à perfeição,
à vitória da eterna aprendizagem, porque nenhum
número é limite. A ninguém é permitido
deixar de aprender, e para nada além de “vontade”
e de “amor” haverá significação
sincera.
Passa
o tempo, passam os lugares, passam ou não passam os semelhantes,
Fernão Capelo vai em frente, voa, aprende, treina, paira
sobre o comum do comum viver. O destino é o infinito,
o caminho é nas alturas! Tudo espontâneo, natural,
pois quem se ilumina cumpre a missão da luz, que vale
para si e para todas as criaturas. A grande maravilha do amor
é o seu profundo contágio. O que vale para Fernão
valerá para todas as gaivotas. O sentimento é
o santuário, e a sua paz reflete e flui incessante. A
fé testemunhada no esforço evolutivo é
a bênção de dádivas de amor. Ela
aclara e edifica e melhorando-se, melhora os que lhe percebem
a trajetória.
Interessante, mesmo para uma gaivota voadora! Quanto mais Fernão
treinava os seus exercícios de bondade, quanto mais trabalhava
para compreender a natureza do amor, mais desejava regressar
à terra, estar entre os seus, ser rodeado pelos do seu
bando, por aqueles que não veem nem a ponta das próprias
asas! O que vale é mostrar-lhes o paraíso! Um
depois do outro, muitos, todos, um dia chegarão a voar.
Todos voarão porque voar é muito bom. Francisco
Coutinho Gaivota, Martinho Gaivota, velhos hoje, novos amanhã,
não importa, o que vale é caminhar para o infinito,
iluminar-se com a luz que ilumina a própria luz!
Excelente
experiência a leitura do livro “FERNÃO CAPELO
GAIVOTA”, leitura de letras e leitura de imagens, pois
volume mais ilustrado não há. Enquanto eu lia
e voava com Fernão, enquanto eu sentia o friozinho das
alturas e a transparência de infinitude dos espaços,
lembro-me porque os chineses colocam os homens tão pequenos
em suas pinturas, principalmente nos panoramas. É que
é preciso limitar o seu valor diante da natureza, fazê-lo
ver a sua pequenez no pano de fundo da vida. Subir uma montanha,
ou voar, limpa o humano peito de uma multidão de ambições
tolas e desnecessárias. Sentindo-se pequeno, tornar-se-á
grande, na grandeza da humildade. . .
FUNDAÇÃO DE BURARAMA
A decisão definitiva de mudar-se para a quase beira do
Rio Verde, no Sapé, meio de mundo cercado, de matas compradas
do Dr. Marcianinho, foi tomada em Belo Horizonte. Era uma decisão
bem desenhada de sonhos, cheia de cuidados com um cheiro romântico
e premeditado de aventuras na densa floresta e nos macios carinhos
da mulher mais linda do mundo, que eu acabara de conquistar
depois de seis meses de investidas. Maria Aparecida, Neném,
maravilha de 20 anos, morena clara, olhos castanhos da cor de
uma noite de Caruaru, pele nova e aveludada de doce mangaba,
fala de uma musicalidade que só uma fada poderia ter,
era tudo e muito mais do que eu poderia pedir a Deus. Era o
que eu sempre sonhara em todas as horas fáceis e difíceis
da vida. Estava de
cidido, e esta decisão jurada no bonito apartamento do
Brasil Palace, de frente para a avenida, não poderia
vir em hora me lhor. Neném não aceitava de modo
nenhum morar comigo em Montes Claros, e em Belo Horizonte eu
não podia ficar por causa dos negócios aqui no
Norte. O Sapé era uma vilazinha velha, sem conforto,
feinha até, mas nada me importava, pois a o lado de Neném
eu haveria de criar uma cidade nova, novinha, onde ela fosse
a rainha. Quem houvesse de viver, veria!
Neném
ficou em Belo Horizonte mais duas semanas para dar tempo ao
tempo, indo depois para mais uns quinze dias na casa de D. Altina,
no Alto São João. Foi o prazo para eu comprar
pneus novos para os caminhões, ajeitar alguma coisa nos
motores, aprontar as ferramentas e ensacar o que comer e pegar
gasolina tão difícil na época. Antônio
Miguel, Mestre Severino, Epifânio e José Porfírio,
além dos motoristas a postos, só esperavam a ordem
de viajar. Foi uma dura travessia de muito esforço e
suor, principalmente depois de Brejo das Almas, em estradas
feitas para animais e quando muito para carroções
e carros de bois. As enxadas e os enxadões, as picaretas
e alavancas não pararam tempo nenhum pela tarefa de derrubar
barrancos e tapar buracos, acertando aqui e ali, empurrando
pedras nos carreiros das rodas dentro dos rios e córregos.
Dos lados da mataria densa, com cheiro de terra molhada, a natureza
espocava em flores e sons, numa alegria depois de chuva rara.
Chegamos ao Sapé, afinal, na madrugada do dia 20 de janeiro,
ano de guerra de 1942, depois de quase meia semana de pelejas.
Foi um sono só para todos, nos catres sem conforto da
casa já alugada, por carta, a D. Antônia, mãe
de Elpídio da Rocha.
Instalada com a consciência de quem veio para ficar, Neném
era, a meu ver, a mais jovem e mais bonita dona de pensão
de todo o sertão brasileiro, competente, decidida, a
gerir uma casa grande, bem assoalhada e de paredes brancas,
logo mais
uma hospedaria para doutores da estrada-de-ferro em construção,
entre eles os engenheiros Demóstenes Rockert, Novais,
Laviola, e os médicos Eduardo Morgado e Darce, todos
gente de maior simpatia. Para cumprir as exigências dela
e salvar as aparências eu Enéas Mineiro de Souza,
Capitão da Polícia de Pernambuco,
era apenas um hóspede a mais, empreiteiro de muitos serviços,
desmatador chefe. Nada além disso, pelo me nos durante
o dia e até a hora em que todos iam dormir... Com as
duas empregadas que Neném trouxera de Montes Claros,
tudo espelhava limpeza e arrumação, já
com luz elétrica e água encanada, providenciadas
por mim, para o seu maior conforto.
No mesmo dia 20 de janeiro de 1942, voltando pela velha estrada,
Antônio Miguel e eu, no meio da esplanada de nunca acabar,
capaz de abrigar dois milhões de habitantes se tanto
fosse preciso, escolhemos um pé de tingui bem copado
para localização da primeira barraca do acampamento.
Nossa ideia era colocarmos aquela mataria toda no chão
e encima das bancas das serras, começando logo uma frente
de serviço, tão comum em nossas vidas... Era como
se ali estivesse começando a história do mundo.
E ainda bem, porque, um quilômetro abaixo, em casa, eu
tinha uma mulher que valia por todas as minas de ouro da terra,
e, na coragem dos meus companheiros e na minha vontade de vencer,
apareciam os primeiros toques para a existência da fazenda
Burarama, de cujas avenidas e praças eu daria mais tarde
a formação da futura cidade que, depois de minha
morte, receberia o nome de Capitão Enéas.
Haveria momento mais feliz?
HERMES DE PAULA
E O FOLCLORE
Com o terceiro artigo a respeito de Hermes de Paula e do seu
livro sobre a história de Montes Claros e de sua gente,
espero ter cumprido a obrigação de despertar muitos
de nossos leitores do JORNAL DE DOMINGO para uma necessidade
cultural de relembrar outros do vasto leque de interesse folclórico
e genealógico de que dispomos nesta velha terra de Gonçalves
Figueira. Creio que falar de Hermes de Paula, suas vivências,
seus costumes, suas gentes é o melhor caminho para a
construção do edifício histórico
de Montes Claros. É bem verdade que muita coisa ainda
deve e precisa ser escrita, no presente e no futuro, mas, mais
verdade ainda é que ninguém poderá fazê-lo
sem partir primeiro do alicerce erigido por Mestre Hermes de
Paula.
Com Hermes, vemos e revemos o bumba-meu-boi, as folias de Reis,
a dança de São Gonçalo, as marujadas, os
catopés, as cavalhadas, as penitências para chover;
com Hermes, ouvimos e aplaudimos as cantigas de ninar, as rezas
e benzeduras, as cantigas de roda. Com ele, sentimos a dureza
das secas de noventa, noventa e nove, trinta e nove, o tempo
bom e o tempo bravo. Com ele, visitamos as lapas, lapinhas,
laponas, que não são
poucas; vemos os gambás, os caxinguelês, os tamanduás,
os saruês. Com ele, reconhecemos todos os tipos de madeiras
das nossas florestas tamboril-de-cheiro, violeta, sucupira,
pau-de-abóbora, jacarandá-muxiba, catinga-de-porco.
No seu livro, aprendemos as virtudes de todas as nossas plantas
medicinais, entre elas a losna, a salsa, a alfavaca, o manjericão,
a quina-de-barroca e a catuaba, estas últimas, no dizer
do povo, mui valentes afrodisíacos, excepcionais para
levan tar coragem.
Sobre a arruda, planta que dá sorte, diz Hermes de Paula
que é santo remédio para cólica, como chá
ou queimada na cachaça; serve como linimento usando a
folha pura; o sumo é próprio para dor de ouvido
e, no geral, atacado e varejo, é tiro-e-queda para benzer
contra quebranto e mau-olhado. Esqueceu-se, no entanto, de dizer
que arruda, folha ou galho, evita feitiço e é
um tremendo escorrega-menino, na hora de parto de mulher.
“Montes Claros, Sua História, Sua Gente e Seus
Costumes” é um repositório de ótimas
informações sobre tudo que é Montes Claros:
fundação de clubes sociais, de escolas, de hospitais,
instalação de comércio e de indústrias,
fundação de órgãos de imprensa,
movimento religioso, incêndios maiores e até informações
sobre o dia em que alguém, por aqui, chupou o primeiro
doce gelado, também chamado de picolé. Algumas
observações curiosas do livro: os jovens Antônio
Augusto Veloso e Antônio Augusto Tupinambá foram
os últimos que ganharam discursos e festas no dia da
chegada depois da formatura do curso superior. Pedro Santos,
o famoso Pedrão 70, senhor de muitas lendas, não
é de Montes Claros porque nasceu
em São João da Ponte e estudou em Ouro Preto,
Juiz de Fora e Niterói. Curioso é que Pedrão
foi o maior campeão de corridas de todos os tempos, jamais
batido em 200, 400 ou 600 metros, o que o levou a ser também
um bom craque do futebol nacional.
Tendo sido eu um dos colaboradores da segunda edição
do “Montes Claros Sua História, Sua Gente e Seus
Costumes”, sinto-me dono de uma gratificante tarefa, contente
e bem re compensado pelo alto valor do livro. Afinal, não
é todo dia que podemos ser companheiros de páginas
de tão ilustrada com panheiragem, principalmente de Hermes
de Paula, premiado com medalhas dos governos de Minas e São
Paulo e detentor da mais vasta soma de conhecimentos sobre Vital
Brasil, conferencista elogiado e aplaudido em muitas capitais,
homem do sertão e das serenatas, defensor do pequi e
do pequizeiro, intelectual e pragmático, sem dúvida
alguma, o melhor fazedor
de arroz-de-tropeiro e de quentão do mundo...
HAROLDO, BARÃO
DE GRÃO-MOGOL
A história é bem normal de tudo de conformidade
com os cânones do comércio de nossos dias, fruto
dos princípios da oferta e da procura. Negócio
de toma-lá-e-dá-cá, envolvendo naturalmente
valores e moedas comuns de qual quer ato comercial. Só
põe romantismo numa operação dessas quem
pode vê-la com olhos de poesia, com traços românticos
de filosofia literária. Em tudo, não resta dúvida,
mesmo nos atos de pura barganha e interesses outros, a gente
consegue dar um colorido de fantasia, bem própria dos
que vivem do trato das artes de das letras.
É que a verdade é bem interessante, amigos. Haroldo
Lívio, cidadão brasileiro, brasilminense de nascimento,
montes-clarense de coração, agora assina um atestado
de amor à terra de Grão Mogol. Assina e paga.
Paga com toda a força que o dinheiro põe e dispõe
no mundo moderno, mesmo em se tratando de coisas antigas. Haroldo
Lívio – é bom dizer logo – acaba de
efetuar uma transação comercial de alto coturno
na cidade de Grão Mogol. Comprou e pagou e tomou posse,
com registro em Cartório, mediante todas a cláusulas,
inclusive a de evicção.
Haroldo
Lívio, ou melhor, Doutor Haroldo Lívio de Oliveira,
brasileiro, advogado, casado com a socióloga, D. Maria
do Carmo, é hoje senhor de um solar antigo e sensorial
na cidade de Grão Mogol. Senhor legítimo de uma
antiga casa, grande e imponente, construída possivelmente
por mãos escravas, de paredes de pesadas pedras, escavadas
com o suor do século passado. Caso de amor à primeira
vista, Haroldo embeiçou-se pela nobre vivenda e sentiu-se
imediatamente na pele de um poderoso grão-proprietário,
dono da segurança de uma forta leza ao mesmo tempo urbana
e histórica. Viu e gostou. Gostou e comprou. Comprou
e pagou. Pagou por ser o incontestável possuidor da possuída
posse.
A casa de Haroldo, amigos, não é uma casa comum,
que a escritura diz construída de alvenaria, de simples
e perecíveis tijolos. É obra granítica,
com paredes de meia braça, a sustentar janelas coloniais,
portas imensas, de duas bandas, com pesadíssimas traves
e ferrolhos, frutos, não só da segurança
mineira como da senhorial competência de suados ferreiros
de antanho. A casa de Haroldo, de telhado de aroeira lavrada
a golpes de enxó por mãos competentes, tem repetidas
ripas de jacarandá! As paredes das salas mais nobres
são revestidas com lambris e o piso é digno das
passadas de um comandante-centurião. Na frente, o arquitetônico
ornato de uma resistente cimalha dá o toque do poderio
e da força de uma escolha consciente do construtor e
mestre-de-obras, orgulho da arte de cantaria.
O fundo do nobre solar, após generoso quintal de frutos
opimos, divisa com as mais cristalinas águas do rio de
areias brancas, leito de pedras polidas, barrancas atapetados
de grama verdinha e capim gordura. Ao longe, mas não
muito distante, o perfil elegante de centenárias árvores
a formar moldura com o azul de ferrugem das serras e a linha
cinzenta-celeste do horizonte. Tudo uma graça, um encanto
para os olhos e um prazer para o coração...
Por tudo isso, pelo amor, pelo romantismo da decisão
comercial, pela poesia, pelo gosto, pela nobre humildade e pela
humilde nobreza de sã consciência, prevalecendo-me
não sei de que autoridade, não tenho dúvida
de atribuir a Haroldo Lívio, culto e intelectual senhor
das Minas Gerais, o Título de
Barão de Grão-Mogol.
HOTEL
SÃO JOSÉ
Há cerca de dois anos, venho percorrendo, aos poucos,
a rua Doutor Santos, a pedido do colega Elton Jackson e em obediência
a um esquema tempo/espaço traçado desde a primeira
crônica sobre o assunto. O meu objetivo é chegar
à Rua Bocaiúva e, aí, em atendimento a
um sonho de minha amiga Nailê, fiel cobradora de minhas
lembranças de vizinho, falar de quando ela era criança,
quase menina-moça, dos tempos de nascimento do João
Wlader e do José Danilo. Passo a passo, saí do
Hotel São Luiz, de D. Nazareth Sobreira e do Bar de Adail
Sarmento, no início da rua, e, hoje, chego ao Hotel São
José, de D. Laura e, depois, de D. Emília e do
inesque cível Juca de Chichico e do eterno gerente Geraldo.
São lembranças agradáveis, grandemente
gratificantes de um jovem que alcançava a idade adulta,
já hóspede em hotel, com uma individualidade e
uma privacidade nunca antes imaginadas
como morador de pensões.
No Hotel São José, cuja placa dizia o maior e
o melhor, ser hóspede já era um grande privilégio,
marcava, quer queira quer não, um status de matar de
inveja os estudantes de repúblicas, ou aqueles que viviam
desprezados nas casas de parentes, muitos em barracões
de fundo de quintal. Foi lá que tive, pela primeira vez,
um quarto só meu, com pia e guarda-roupa, inicialmente,
no térreo, do lado de dentro do pátio, na ala
da praça Cel. Ribeiro, e, depois, no primeiro andar,
quase de frente para os dois mais importantes endereços:
os apartamentos de Ademar Leal Fagundes e do diretor do DNOCS,
de quem não me lembro mais o nome. Foi uma melhoria de
situação social que quase não tinha limites,
quando comprei, duas calças de tropical, uma meia dúzia
de camisas, novas meias e... realiza ção de velho
sonho, um rádio de segunda mão, rabo quente, que
tocava músicas e dava notícias todas as manhãs.
O Hotel São José era um mundo à parte,
bom, alegre, importante, chique, principalmente depois que “seu”
Juca assumiu a direção e realizou uma grande reforma.
A sauda de marcada com a ausência de D. Laura foi compensada
com a elegância de D. Emília e a descontraída
presença dos filhos, principalmente de uma menina que
era a mais bonita da rua Doutor Santos, a Mercesinha, já
quase em início de namoro com o João Walter Godoy.
Zê de Juca, Lauro, Bernadete, todos eram também
bastante simpáticos com os hospedes. A hora do jantar
era quase sempre uma festa, exigindo-se a melhor roupa de cada
participante do banquete diário, uma etiqueta fiscalizada
de perto pelos garçons, principalmente pelo Fernando,
que, até hoje, trabalha na profissão.
Poucos foram os estudantes que conseguiram a permanência
no quadro de hóspedes. Um a um ia saindo, pedindo ou
recebendo as contas, depois de uma brincadeira mais forte, ou
do não respeito à posição da gente
importante e seria como era o sisudo e culto fazendeiro Ademar
Leal, o milionário Manoel Rocha, a mais graduada figura
do Exército na região, o sargento Moura, o advogado
José Carlos Antunes, que falava
inglês corretamente, Lagoeiro, músico-chefe da
regional da Rádio Sociedade, o diretor do IBGE, e o próprio
dono, seu Juca, o único montes-clarense, na época,
a ter feito uma viagem internacional de muitos meses pela Terra
Santa e pelo Mundo Antigo. Pode ser exagero de minha parte,
mas, para nós, lá era o centro da cidade e da
cultura.
Bons tempos aqueles, justamente quando iniciava atividades,
já com os pés no chão, o nosso O JORNAL
DE MONTES CLAROS, não sei bem certo, parece já
com a direção do Oswal
do Antunes, pois o ano em que estamos é o de 1955, quando
recebi das mãos do Waldyr Senna a presidência do
Diretório dos Estudantes e quando foi eleita a nossa
rainha mais bonita de todos os tempos, nenhuma outra igualada
em nobreza nem antes nem depois: Cibele Veloso Milo!
MANOEL
QUATROCENTOS
Estou no décimo-quarto andar do edifício do Banco
do Brasil, no centro de Fortaleza. Aqui dentro a temperatura
é de 18 graus, cortinas fechadas em quase todas as janelas,
menos em uma que dá visão direta para o mar. Lá
fora o calor intenso, um sol que daria gosto se estivesse na
praia. O céu de brigadeiro, de um azul que indica não
haver igual em nenhuma parte do mundo. Fazendo moldura, abaixo
da linha do horizonte, o Oceano Atlântico que mais parece
de clorofila que de água salgada: o verde é intenso,
quase um verde de esmeralda ou de turquesa, daquele verde tão
lindo como a cor
dos olhos de uma bonita mulher de olhos verdes. É o mar
de Iracema, a virgem criada por José de Alencar, de lábios
de mel
e cabelos mais negros do que a asa de graúna e a pele
mais macia que a pelúcia de um pêssego maduro em
manhã de chuva. É aqui a capital do Estado do
Ceará.
É aqui nesta festa urbana, onde trabalho e vivo cada
minuto, que recebo um telefonema de Olímpia, com notícias
de casa, de Montes Claros e da região baiana de Minas.
Bebo com a audição cada detalhe, cada ângulo
de comentários. Misturo tudo com uma profunda saudade
dela e das coisas com sabor
mineiro. Quem nasceu? Quem vive ainda? Morreu alguém
conhecido? Ela me fala das mortes de dois prefeitos, das passa
gens súbitas de Caetana Meira, de Afrânio Tempone,
da viagem eterna de Manoel Quatrocentos. Sente profundamente
a ausência da Caetana, tão nossa amiga, quase nossa
vizinha,
companheira da Casa da Amizade, do Elos Clube, do Rotary. Ninguém
nasceu para viver definitivamente. Haverá sempre um último
dia. Mas acostumar-se com a ausência física de
pessoas amigas, mesmo que não estejam sempre próximas
de nós, é sempre uma angústia. Não
existe alegria na morte. Mesmo de longe, sinto a falta dos bons
amigos. Penso em cada
um. Vejo méritos em todos. Da alegria de viver de Tempone,
por exemplo. Há poucos dias, eu tinha convencido Caetana
a ir com a Meira a uma convenção do Rotary em
Caxambu. Fiz propaganda de maravilhas do encontro rotário.
Ela aceitou.
Do verde do mar, da imensidão do oceano, da fantasia
do céu do Ceará, volto-me inteiramente para a
ideia desta crônica, focalizando na memória as
muitas vezes que vi e admirei a figura nostálgica e cavalheiresca
de Manoel Quatro centos, um misto romântico de Dom Quixote
e de Carlitos, último dos distantes conquistadores da
beleza e do charme de mulheres famosas do velho cinema hollywoodiano.
Sempre o verde do mar cearense o foco principal da lembrança
do velho Manoel? De tudo que ele tinha na vida – e quase
não tinha nada além do machado de cortar lenha
– o de que mais se orgulhava era do verde dos olhos que
herdara da mãe. Pode ser que seja isso, porque nos olhos
do Manoel Quatrocentos estavam quase todas as suas maiores qualidades:
a gentileza, a alegria, o humanismo, o desejo de conquista,
a admiração por Montes Claros, a cerimônia
com as mulheres, a ironia com
os orgulhosos, a malícia com os velhos, a simpatia com
os jovens. Grande Manoel!
Lembro-me perfeitamente dos meus primeiros tempos de estudante,
lá pelos idos de 1951, quando íamos ouvir, aplaudir
e anarquizar o jovem Manoel Quatrocentos, o “maior”
cantor de boleros da Rádio Sociedade nos programas de
auditório, no Cine Montes Claros e Cine Ipiranga. Chupando
cana, comendo pipocas, fazendo bolinhas de papel de caramelos
para jogar no animador e nos artistas, que grande alegria era
cada manhã de domingo! Manoel Quatrocentos, mais romântico
que o eterno romântico Adauto Freire, meu amigo, fazia
poses de Gregório Barrios, lançava beijos para
as belezas invisíveis de Ingrid Bergman, Vivien Leigh
e Lauren Bacall. Era como se ele estivesse vivendo cenas de
Casablanca e E o Vento Levou, só possíveis de
serem descritas pelo companheiro Ângelo Soares Neto, outro
fã incondicional do Manoel, que a esta hora deve estar
também muito triste, chorando mágoas com Haroldo
Lívio. Quantas vezes pedíamos bis, bis só
para sentir as impostações de voz de quem se acreditava
Tyrone Power, Charles Boyer, Errol Flinn, ou, nas horas de maior
coragem, o
próprio Charles Starett ou o Flash Gordon.
Lembro-me também da mania do Manoel Quatrocentos em falar
línguas estrangeiras, no enrolado dialeto dos gringos;
S’il Vous Plait, Merci Beaucoup, Yes, Thank You, Buenas
Noches, Oh Muchachas, Take it easy, Shut up, tão comuns
aos artistas franceses, mexicanos ou de Hollywood. Era um tal
de falar em Footings e Flirts que dava gosto! Lembro-me dos
amores de Manoel Quatrocentos com o que parece ter sido seu
único amor materializado – a Maria Tostão,
lá no alto dos Morrinhos,
quem sabe a sua alegria legítima. Perfumado sempre nas
horas de folga, nunca sem gravata, castelhano gravado no sotaque,
Manoel Quatrocentos foi um homem despojado de orgulho nas horas
de trabalho braçal, dono de pouco, mas sempre sagrado
dinheirinho para as próprias necessidades.
Do Ceará, quero mandar meu último aplauso a Manoel
Quatrocentos, o maior candidato ao noivado com as mais lindas
mulheres do mundo. Que a manhã de sábado, 23 de
abril
de 1988, tenha sido para ele – Manoel Nunes da Silva –
um fan
tástico momento de glória, uma contemplação
maravilhosa do infinito azul do olhar de todas as belezas femininas
da história. Ele muito fez por merecer.
MEMÓRIAS
DE ADRIANO
Foi com incontida alegria que recebi de Raquel, minha cunhada,
emprestado e ainda novinho, o volume de “MEMORIAS DE ADRIANO”.
Ela, que é leitora constante, havia lido apenas as primeiras
páginas, dizendo da falta de tempo para um assunto minucioso,
tão repetitivo como as descrições
de Marguerite Yourcenar. Lê-lo-ia depois, não haveria
problema. “Pode levá-lo e faça bom uso”,
disse-me. “A mulher da Academia Francesa é sua,
toda sua”, acrescentou com malícia. Recebi com
gratidão antecipada e lhe confessei que só não
havia comprado “MEMORIAS DE ADRIANO” por estar acima
da casa dos mil, muito caro. Não por falta de vontade,
que eu já andava ansioso. Afinal, foi por causa desse
livro que Carlos Drumond de Andrade havia ficado uma semana
preso em casa,
com medo de alguém apontá-lo, na rua, chamando-o
de “pobre velho que ainda não leu “MEMORIAS
DE ADRIANO”.
E
isso aí, é realmente pobre quem ainda não
leu Your cenar. É pobre e não sabe o que está
perdendo, pois “MEMORIAS DE ADRIANO”, que não
se diz romance, é a maior joia da ourivesaria literária
de nossos dias, um encanto de trabalho feito com o carinho que
só uma mulher da Academia Francesa poderia
ter. Bem haja que ela tenha ficado tantos anos, quase trinta,
elaborando e polindo, ligando fatos e escolhendo palavras; para
mim, vivendo e revivendo o atavismo do melhor
tempo de esplendor. Não é fácil assumir
o papel de Adriano, ter a consciência de César,
ser deus e ser gente, lutar na tessitura da alma de um povo
e de um mundo, a um só lance guerreiro, político
e amante de cada face da vida. Ninguém pode saber onde
começa o autor e termina a personagem, uma vez que só
Marguerite teria tão grande liberdade em sentir-se Adriano.
A paixão por Antinoos é acima de tudo de alma
feminina.
Sempre me encantei com o dinamismo do Império Romano,
onde o poder nunca desprezou a cultura e o culto dos imortais,
jamais deixou de lado a vida de cada dia. Mundo de patrícios
e plebeus, de guerreiros e artistas, de livres e escra vos,
Roma atravessou fronteiras com o sentimento de globalidade,
fazendo de bárbaros bons cidadãos, mostrando a
vida com beleza e civilidade, elaborando leis e diretrizes,
ensinan do a viver.
Não creio que exista melhor modelo para a história
que a descrição e a narrativa da “grande
dama de literatura”. Nada mais apropriado para imitar
a realidade. Uma penetração física e psicológica,
um remoer de pequenos e grandes sentimentos, um improvisar momentâneo
ou um consciente preparo de cada instante, de cada período.
Adriano não se contenta apenas no viver, sente-se que
é a mola maior do destino, um senhor do presente e do
futuro, um gesto seu plasmando culturas, permitindo mudanças
forjando consciências. Apesar de tudo, as incertezas,
a busca de afirmação do ser humano, fraco e falível
em toda parte, em todo o tempo, pois ninguém é
dono da vida, nem o rei de Roma.
Fiquei mais rico de vivência e de amor depois de ‘’MEMORIAS
DE ADRIANO”. Acredito na grandeza e no poder das letras,
naquele sentido de canalizar momentos de felicidade, unindo
séculos em frações de segundos, doação
de patrimônio à curiosidade de cada espírito.
De todas as invenções do homem a maior ainda é
o alfabeto e, em decorrência dele, o livro. Depois que
aprendemos ler, desaparece o egoísmo alheio, o mundo
é nosso, ninguém pode impedir de que sejamos senho
res da nossa própria cultura. O milenar passa a ser o
agora, a história é a página que vemos
diante de nossos olhos, somos participantes de tudo. De tudo
mesmo.
Devolvo-lhe o livro, Raquel. “MEMÓRIAS DE ADRIANO”
não pode deixar de ser lido. Em último caso, na
falta de tempo, faça como a minha outra cunhada, a Laury:
arranje uma doencinha qualquer e, deitada, penetre na alma dos
livros; cavalgue sonhos, realize o irrealizável.
MESTRE
DOUTOR JOÃO
De minha parte, já peguei o bonde andando, no agitado
ano de 1954, logo depois que o Colégio Diocesano fechou
o curso noturno, preparando-se para ser mudado em seminário.
Toda a nossa turma, inclusive uma maioria que não estudava
à noite, foi jogada à força no velho Instituto
Norte Mineiro de Educação. Pobres, ricos, trabalhassem
ou não trabalhassem, ir para lá era o nosso destino,
pois outra escola não existia, de modo a darmos continuidade
nos programas e na vida. Seguimos, então, o único
caminho, único e natural, mudando de uniforme e trocando
de filosofia, permutando uma preparação acadêmica
por um trabalho de natureza prática, até certo
ponto mais condizente com o futuro profissio nal, fosse qual
fosse. Em vez de padres e seminaristas, agora a companhia de
moças de lojas e de escritórios, pingando de vez
e quando uma ou outra dona de casa compenetrada e séria.
Reais alunos de curso noturno, cansados, suados, todos com
aquela disposição de vencer a qualquer custo.
O Instituto era escola de trabalho, destinado a formar profissionais
para a contabilidade, redatores, datilógrafos, gente
prática para a vida, gente para dar duro em todas as
atividades,
pau-pra-toda-obra. A propaganda maior era que, por lá,
havia passado a fina flor de homens vitoriosos em todos os campos
de atividade, entre muitos Ubaldino Assis, Necésio de
Morais, Mário Ribeiro, uma maioria de bancários,
contadores
e gerentes do comércio local, assim como alguns jornalistas,
professores e intelectuais de nomeada. Ninguém poderia
tornar-se um grande político ou um seguro homem de negócios
sem passar pela experiência do Grêmio do Instituto.
Era lá a grande escola de civismo, uma espécie
de bastião da liberdade
e do humanismo, do livre pensar e do melhor agir.
Lembro-me de lutas homéricas, antes, durante e depois
das sessões do grêmio. Lembro-me de esforçados
líderes e nervosos partidos criados depois do ingresso
dos novos, dos recém-chegados, algo parecido com intrusos
novos-ricos não acostumados aos ditames da casa. Os que
se consideravam os
institutenses verdadeiros, os de primeira matrícula,
eram os diletos, os preferidos da família diretora, gozando
todos de uma liderança bastante expressiva do Newton
Baleiro, do lado de fora, e do João Luiz Filho, do lado
de dentro. De quebra, havia o Luizinho, o Nelsinho, a Nadir,
de vez em quando a Nini e o próprio Doutor João,
cada um com uma força, um prestígio,
um mando diferente, mas nenhum peso-leve. 0 Doutor João,
quando aparecia com os cabelos alvoroçados como se não
tivesse visto pente, testa franzida, sobrecenho carregado era
um deus-nos-acuda, um furacão de fúria, fazendo
aparecer tudo de errado que houvesse.
De sério, por parte dos alunos, também havia muita
gente, compenetrados solteirões, dignos pais de família,
e até gente nova com jeito de gente velha. Havia o Manoel
Neves, comerciante
bem de vida; o Joel Silveira, estudioso da Bíblia, quase
pastor e fazendeiro; o João e o Terezo Xavier bem-pos
tos alfaiates, ora caladões, ora conselheiros; havia
o Raulemar
Couto e o João William, novos, quase meninos, mas de
um respeito que merecia admiração. Pelo lado dos
professores, lembro-me da fama de carrasco do professor Heráclides
Leite Ferreira, baiano e matemático que havia se casado
com uma aluna, a Nadeje; do professor José Márcio
de Aguiar, ex-seminarista, literato e filósofo, meu conselheiro
nos primeiros tem pos de jornalismo; o José Bispo, de
boa fama na capacidade, mas tão terrível nas notas,
que alguns alunos, por vingança, furavam, de vez em quando,
os pneus da sua bicicleta. 0 Necésio de Morais foi o
melhor mestre de contabilidade que conheci. Domingos Bicalho
era a organização em pessoa. Mas de bom visual,
além de um alentado time de mocinhas, havia uma bonitona,
caixa das Casas Pernambucanas, bem vestida, bem pintada, tão
elegante que, no primeiro dia de aula, todos nós nos
levantamos para recebê-la pensando tratar-se de profes
sora de muito respeito.
0 Instituto era um caldeirão fervente, com o Júlio
Pereira e o Ferreirinha a fazer política; Thiers Penalva,
Carlaide Pereira a jogar futebol; Zezinho Evangelista e Waldir
Veloso a agitar a política; Sebastião Mateus e
Norberto Custódio na seriedade, e Adauto Freire a comandar
a jovial anarquia. No meio de tudo, uma figura com absoluta
liderança, na violência ou na ternura, como pai
e como algoz, como irmão e quase como colega: o velho
mestre João Luiz de Almeida, autoridade máxima
de uma
geração, o mais liberal de todos os ditadores.
MOMENTOS
DE LUIZ DE PAULA
MOMENTOS, de Luiz de Paula, é amor e flor da natureza.
Em Várzea da Palma, nas beiras do Guaicuí, em
Montes Claros, ou em qualquer parte do mundo. Um livro realmente
bom, mesmo que em leitura ligeira. Prosa e poesia de verdade,
na seca ou nas chuvas. Tem quer ser, porque o autor foi batizado
duas vezes, uma pelo ferreiro Bertolino, outra pelo padre da
desobriga, e, por isso, virou poeta. MOMENTOS é livro
desafio, trabalho em espanto de vida, aceitação
de mistério. Suas páginas foram escritas em áureo
e doce dealbar de músicas e de sonhos. Tudo plural: douradas
iluminuras nas capas e, no interior, coloridos entre o branco
e o preto, tudo bem serenado em universo de ideias. Um luxo!
Como disse o próprio autor, textos e pretextos de MOMENTOS
nasceram como brotos das chuvas de São Miguel, multifacetada
confissão entre o sacro e profano. Todo broto de vegetação
foi visto em lupa de saudades. Visíveis encanto e filosofia,
memória poética e pinceladas de vida. Tudo pintura
com acenos de ser em tudo fiel às origens. Escrivão
de sonhos, menestrel de doces lembranças, Luiz é
compositor de ritmos, sem direito a esquecimento. Que tenham
registros os currais de
gado, os caminhos entre veredas, os bois de cem oitavas, a arte
de navegar e fazer telhas, imortalizem-se os bandeirantes, os
vaqueiros, as partes da cozinheira ladina... Imortalizem-se
a grandeza das pequenas coisas e os mínimos pedaços
de espaço-tempo.
Que bom e agradável foi ler MOMENTOS! Que bom foi conhecer
Dona Biló, assadeira de roscas, Neco Meireles, oficial
abridor de cisternas, a parteira Siá Clara! Todo respeito
para a professora Júlia, sessentona, de régua
e taboada, todo respeito para a rezadeira Regina, sacerdotisa
de benzeduras para cura de um tudo, palavras e gestos seus como
que tirando doença com a mão. Carinhoso desfilar
de antigas profissões, com toda a certeza de que o tempo
não atravessa duas vezes o mesmo rio.
MOMENTOS é o registro fiel de um maravilhoso tempo de
pura ternura, trato vivencial de gente parceira de Deus. Só
podia ser escrito por Luiz de Paula Ferreira, autor de Montes
Claros Vovó Centenária, garimpador do ouro mais
puro. De claro-me feliz, muito feliz, e sinto-me identificado
com o Vale do São Francisco, por estar manuscritando
estas mal traçadas linhas numa mesinha da Estação
das Docas, Belém do Pará, de onde contemplo as
infindáveis águas da Amazônia e sinto uma
imensa saudade das planícies e dos claros montes do Norte
de
Minas.
DONA DINA PAULINO
Os noventa e três anos de coragem e alegria, que sem pre
marcaram e marcam nobreza, nunca envelheceram em Enedina Paulino
Correia - nossa querida Dona Dina - a sua crença de amor
à vida. Tem sido quase um século de invenção
e reinvenção diárias, cada momento dedicado
ao melhor da consideração humana. Sempre pensamentos
de bondade e beleza irradiando positividade e fé, sempre
o mais fino trato no ser, no estar e no compartilhar. Definitivamente
marcante o amor à família, aos colegas de trabalho,
aos amigos. Máxima elegância sempre! Filha de pai
advogado e cronista da Gazeta do Norte, Dona Dina nasceu em
Grão Mogol no quatorze de maio de 1919 e só veio
para Montes Claros dois anos depois. Morou em Pires e Albuquerque
oito anos, casou-se com dezenove. Porque o marido Geraldo de
Paula Correia foi para São Paulo e voltou doente, a ela
sozinha coube criar e educar os filhos Pedro, Theodomiro, Terezinha,
Nadir, Carlos, Itamar, Geralda e Cláudia. Antes da aposentadoria
aos trinta e cinco anos de trabalho na Escola Normal - direção
de D. Taúde, de Luiz Pires, de Francolino e Sônia
Quadros - sei que muitos foram os biscoitos e doces feitos no
forno e fogão do
Alto do Santo Expedito, casinha humilde, embora imponentemente
rodeada de bonitas mangueiras. O terreno era de Neném
Barbosa e ficava mais ou menos onde está o Montes Claros
Shopping Center. Era de lá que o filho Theodomiro saia
com a bandeja cheia para as vendas em domicílio. Dona
Dina fazia questão de ter, fora do horário da
escola, todos os filhos e filhas também trabalhando para
garantir a lenha da cozinha e a feira dos sábados. Ela
dava o melhor exemplo e fazia ques tão de ser seguida.
Fui colega de Dona Dina, por duas vezes, no sobradão
da Coronel Celestino, em 1954, quando lecionei inglês,
e na Avenida Mestra Fininha, de 1965 a 1970, quando eu era professor
de português e literatura para as turmas do científico.
Foi um tempo maravilhoso em nossas vidas, pois muitas e muitas
amizades feitas naquela época duram até hoje
e nos seguirão ao longo da jornada terrena. Dona Dina
foi sem
pre uma colega perfeita, dedicada, presente, para mim e para
todos os companheiros de trabalho, uma amiga insubstituível.
Sua educação de berço, a voz sempre comedida,
os olhos sempre brilhantes de consideração e amizade
eram marcas de
uma personalidade inesquecível para qualquer tipo de
histórico pessoal. Podemos nos esquecer do que as pessoas
nos dizem, mas jamais olvidaremos da forma que elas nos tratam,
de como elas nos fazem sentir. Como nunca virou as costas para
a vida, Dona Dina tem milhares de amigos e um milhão
de admiradores. Para cada dificuldade e cada desafio, ela descobriu
as respostas e a melhor forma de superá-los. Uma criatura
de muitas vitórias! Com bom humor espalhando mais do
que sim ples felicidade, Dona Dina é digna de todas as
riquezas do mundo, de todos os horizontes de esperança,
de todo o despertar dos sonhos. Fazendo sempre a sua parte e,
muitas vezes, até a dos
outros, nossa homenageada é força visível
e invisível do bem, suficientemente poderosa para transformar
para melhor qualquer um dos nossos momentos. Se vivo fosse Henfil,
ele poderia dizer que, em toda existência de Dona Dina
houve frutos e valeu a beleza das flores, houve flores e valeu
a sombra das folhas, houve folhas e valeu a intenção
das sementes. Nas comemorações destes anos vividos
nos mais de noventa, pedimos convictamente ao bom Deus que sempre
protegeu Dona Dina e os que lhe são queridos - oito filhos,
vinte e cinco netos, vinte e três bisnetos - continue
amparando a todos com uma infinita e majestosa luz de amor!
NA VENDA DO MEU PAI
Luiz de Paula Ferreira é um milagre. Tudo na sua vida
deu certo. Tudo: sonhos e realidade, jeito de ser e de viver.
Comportamentos, atitudes, hábitos, numa receita sábia,
e manhosamente aviada desde os velhos tempos de Roma: “Não
basta ser, é preciso parecer”. Luiz – em
todos os decênios que marcaram a idade do menino, do jovem
e do adulto – foi e pareceu inteligente, intensa e fervorosamente,
quase por um dever de fé e destinação.
Querendo - quem sabe - até sem querer, jamais pôde
fugir das luzes de uma generalizada admiração
de próximos e distantes. Conservador e revolucionário,
sempre teve como medida o comedimento, coisas de antigo PSD,
que não fazia reunião sem antes de tudo estar
resolvido. Luiz sabe ver e antever, vestido e revestido de inigualável
poder de avaliação. Sabido, tranquilo e limpinho
como um gato, no dizer do nosso saudoso João Valle Maurício.
Neste livro – conjunto fantástico de retalhos intensamente
coloridos da vida interiorana brasileira do Século XX
– Luiz de Paula é narrador e personagem, iluminador
e fotógrafo, ao mesmo tempo retratista e retratado em
cenas que ele próprio sempre se inseriu. Dono de poder
material e imaterial,
agora produz um texto mais do que vivo - do seu e do nosso agrado
– encarnando e reencarnando uma tradição
oral de esperteza, que muito será discutida no futuro,
quando as máquinas e os chips ocuparem com primazia a
diretiva humana. Os relatos, as crônicas, a prosa poética,
até os contos que ele - por segurança e sabedoria,
diz de ficção - representam o que a Literatura
pode ter de melhor na fixação de imagens e vivências,
conteúdo importante porque só possível
aos que o
viveram com entusiasmo.
Li, reli e tresli as três divisões – “NA
VENDA DO MEU PAI”, “SANFONA DE OITO BAIXOS”
e “ALGUMAS HISTÓRIAS”. E quando lia e revivia
cenas da vida de menino do interior, testemunha real e virtual
de tudo que acontece, pensei calculada mente em registrar neste
Prefácio dezenas ou centenas de no mes de pessoas e de
lugares, antecipando para o leitor o cheiro e o gosto de todas
as acontecências, assim como as cores e a sensação
táctil de cada paisagem.
Um pouco mais novo que Luiz, tendo vivido pelo lado de dentro
e de fora de uma casa comercial - ouvinte e visualizador atento
- bem sei do quanto o relar o umbigo no balcão valeu
para nós. Ali nada passava despercebido no universo das
pessoas e das coisas, seja ouvindo uma sanfona de oito baixos,
seja engraxando sapatos ou controlando os movimentos sinuosos
dos bêbedos. Era a vida imitando a vida, para criar memórias
que só o livro pode fixar. Com este livro, Luiz eterniza
Maria Velha, Maria Suruca, Mariazinha Palpitosa, o lambe--lambe
Vitorino, Chico Boa Palavra, João Velho, João
Raposa, Gregório Barba à-toa, além –
é claro – um amplo universo de situações
que marcam a malícia e a esperteza do dia-a-dia de Várzea
da Palma, de Montes Claros e deste pedacinho gostoso do sertão
mineiro. Resumindo, um musicar e um cantarolar de lembranças
que só um narrador bom como o Luiz consegue pôr
no papel.
Plurissignificativa, a Literatura faz com que certas personagens
e situações ofereçam liberdade na interpretação
dos textos, poucas vezes os mostrando imutáveis ou ensinando
uma aceitação pura e simples. As palavras e o
encadeamento de palavras sugerem visões que nunca pertencem
somente àque les que as escrevem. Uma vez materializado,
o texto pertence
mais ao leitor, à sua forma de pensar e agir, influenciado
pela experiência linguística e pela cultura de
cada um. Assim, “NA VENDA DE MEU PAI” vem para marcar
época, com lembranças e vontades mais do que gratas
para quem as viveu e para quem gostaria de as ter vivido. Aqui,
não há fotos em preto e branco, não há
figuras esmaecidas ou distantes: tudo é colorido, cada
movimento tem uma surpresa como se estivesse acontecendo e sendo
vivido agora. Luiz é um cinegrafista sortudo –
pode-se dizer com efeito Kirlian – que além de
gravar o visível e tangível, consegue divisar
nuances que só aos privilegiados Deus permite contemplar.
Bom para ele, melhor pra nós!
Purista corajoso do idioma, Luiz de Paula Ferreira conduz o
leitor à excelência da fala brasileira, com todo
o condão de quem sabe fazer mágica com a inteligência
e o gosto do verdadeiro contador de causos. Alegre, otimista,
sinceramente
claro nos conceitos, oferece-nos o que há de melhor na
vida sua e das outras personagens. Vale realmente ser lido.
No meu
ponto de vista – e aqui não vale a amizade que
nos une – “NA
VENDA DE MEU PAI” é o melhor de todos os registros
regionais que a argúcia literária impõe
a um leitor interessado. No que toca à missão
do homem no viver e conviver, no amar e no sonhar, Luiz é
um cronista indubitavelmente universal.
Experimente-o como quem sabe sugar o sumo doce de uma jabuticaba
bem madurinha, o andar de bicicleta em tem po de Primavera e
o ver e ouvir o sapateado de um cantador de coco.
O
BAR GUARANI DE VADINHO
Elton Jackson ao me fazer um pedido para escrever sobre a Rua
Doutor Santos, deixou-me na liberdade de voltar ao assunto quantas
vezes forem necessárias, pelo menos até a hora
em que eu chegar na esquina do Hotel São José,
onde morei muito tempo. Na primeira crônica, com não
podia de ser, procurei avivar todas as lembranças que
marcaram a história recente do quarteirão do Hotel
São Luiz, quando ficava de um lado o Bar de Manoel Cândido
e, do outro lado, o Banco de Crédito Real, tudo muito
próximo da área dos aflitos. Fui subindo, esquina
por esquina e, agora, já estamos entre as ruas D. Pedro
II e Dom João Pimenta, pedaço de mundo que me
marcou profundamente, pois, ali passei alguns dos melhores
momentos de minha vida de estudante e comerciário, de
jovem repórter e de soldado do Tiro de Guerra, além
das muitas atividades como radialista amador e como líder
estudantil no Diretório dos Estudantes. Foi neste quarteirão
que, de 1951 a 1954, morei nas pensões de D. Ismênia
Porto e D. Duca Guimarães, levantando-me sempre pelas
madrugadas para aprender as matérias das provas do Colégio
Diocesano e do Instituto Norte Mineiro.
Era quase na esquina da Rua D. João Pimenta que ficava
o Bar Guarani, um boteco alegre e bem frequentado desde os dias
de sua fundação, pelos idos de 1950, pequeno,
de poucos metros quadrados, quase que de centímetros,
tão curtas eram as dimensões pelo lado de dentro
e pelo lado de fora. Quando passava de uns cinco fregueses,
necessário era que alguns já ficassem de pé,
no passeio, encostados ou não na parede velha e pintada
de verde. Havia umas duas mesas pequenas e algumas cadeiras
para o pessoal que gostava de jogar damas, tomando cerveja ou
bebendo pinga.
Foi por volta de cinquenta a cinquenta e um que o Vadinho, Vadiolano
Moreira, chegou a Montes Claros, um dos poucos rapazes de Taiobeiras
que não veio para cá para estudar, mas, para ganhar
dinheiro. Renato, Murilo, Nenzinho, Dedé, Valtinho, Alfredão,
Tone, Quincas, eu, todos nós viemos para enfrentar a
realidade e os sonhos dos livros. Vadinho não. Vadinho
veio para trabalhar muito, trabalhar dia e noite, trabalhar
o quanto fosse necessário para ficar rico, se possível
muito rico. Foi assim que o Vadinho botou o olho no Bar Guarani,
simpático, gostoso, e não teve dúvida,
ali estava a primeira mina de sua vida montes-clarense.
Nunca conheci melhor comerciante que o Vadinho. Costumo dizer
que, se ele instalar um boteco, um barzinho ou mesmo um restaurante
em cima de um pé-de-mandaca ru, ainda assim teria constantes
e eternos fregueses e amigos para todas as horas. É que
ele vive cada momento, participa interessadamente de todos os
assuntos, respeita reverente a alegria ou a tristeza de todos
que dele se aproximam. Quando o Vadinho comprou o Bar Guarani,
fez as primeiras mudanças, ampliou-o com mais um espaço
lateral, foi como se uma luz nova iluminasse a paisagem e iniciasse
um novo sistema vivencial para velhos e novos, pobres e ricos,
principalmente para os que gostavam de futebol e de cervejas
e batidas de limão. Por lá passavam obrigatoriamente
os hóspedes e moradores de todos os hotéis e de
todas as pensões do centro da cidade. Nenhum estudante
que se prezasse poderia deixar de ir lá pelo menos aos
sábados e domingos, antes ou depois do cinema. Uma coisa
era muito importante: na hora do futebol
no rádio, nos momentos dos gols, o Bar Guarani era o
epicentro do mundo, o lugar mais barulhento da terra.
Mas, como sempre existe o lado contrário de tudo, o Bar
Guarani também teria de ter um fim. O seu último
dia de real movimentação foi o dia em que Vadinho
o vendeu. Vendeu-o por um preço de fazer inveja, por
ser o lugar de melhor frequência de Montes Claros. A essa
altura dos acontecimentos, Vadinho já era um fazendeiro
rico!
O
DIA EM QUE
CHIQUINHO SUMIU
No dia de novembro em que Chiquinho sumiu eu não estava
em Brasília. Viajara semanas antes e nem vira o bichinho
nem na chegada nem na saída numa permanência de
muito tempo. Hospedado no St. Paul Hotel, nem uma vez fui à
Setecentos e Três Sul, não sei se por comodismo
ou ingratidão, embora lá estivessem muitos dos
meus colegas e amigos e também o Chiquinho. Foi uma pena.
Agora que o Chiquinho desapareceu é que eu vejo a perda,
a dor de uma ausência mesmo não deliberada. Perto
de lá, passei apenas duas vezes: uma à noite,
indo à casa do Nelson Pereira de Souza, presidente brasileiro
do Esperanto, e outra, numa manhã de domingo, num passeio
circular pela cidade para uma visita à Walkíria
e Nabiran. Mas à casa da Concessa e do Chiquinho, eu
não fui.
Soube do sumiço do Chiquinho por notícia do colega
Geraldo Eustáquio, que lá ficou hospedado durante
um mês por sugestão minha. Ele contou-me do choro
da Concessa, da angústia dos hóspedes, da tristeza
da Neide, da sensação de perda de todos, na hora
do café, na hora do jantar, e, principalmente, na hora
da televisão, quando era mais firme a lembrança
do Chiquinho deitado na almofada de fina seda, entusias mado
com os programas da Globo da viúva Porcina. Eustáquio
contou-me ainda que a Concessa ficou intolerável, nervosa,
cheia de queixume, longe da gentileza normal de que ela é
a maior portadora do mundo. Acabou até a alegria da casa
e houve até reclamação!
Também triste, mesmo longe do epicentro da tragédia,
não aguento ficar sozinho com a notícia, e telefono
incontinenti para o Recife e falo do acontecimento com o meu
grande amigo Tiago Marcos, ainda mais amigo da Concessa do que
eu, pois quase conterrâneo, ela do Rio Grande do Norte,
ele de Jaboatão, em Pernambuco. Tiago diz-me que nem
pode acreditar, deve haver um engano, o Chiquinho deve estar
esperando a hora de voltar! Falo-lhe do desespero da Concessa,
de que fui informado, e ele me promete que logo estaremos em
Brasília para ajudar a amiga. Se eu quiser, posso até
esperá-lo no Aeroporto, no domingo dia 4 de janeiro,
à tardinha. Vamos chegar juntos à 703, Bloco J,
como já fizemos de outras vezes em que trabalhamos em
tarefas de treinamento de colegas do Banco do Brasil. Tiago
sempre foi um dos maiores admiradores de Chiquinho, e com ele
sabia até conversar...
Quando telefono para Concessa para confirmar a reserva do apartamento
em que vou ficar, e apresentar os meus sentimentos pela ausência
do Chiquinho, ela me diz que o Tiago já chamara para
ele e dera conta dos dois recados, para ele e para mim. A presença
telefônica dos dois amigos, parece, minorara um pouco
o seu sofrimento e só Deus sabe quanto é importante
a solidariedade! Narrou todos os acontecimentos, dizendo que,
no dia do desaparecimento do Chiquinho, ela e muita gente vasculharam
com malha fina nada menos de nove quadras, da novecentos e três
até a quinhentos e cinco. Mais fizera se não fora
para tão longo amor tão curto o dia!
Não vejo a hora de telefonar para dar a notícia
ao Jorge, ao Kalunga e ao Moacir, no Rio Grande do Sul, à
Ivone, à Mitsu, ao Hiroshi, em São Paulo; ao Geraldo,
em Teófilo Otoni, e, quem sabe, a mais alguém
neste grande Brasil que do Chiquinho sempre gostara.
Esqueci-me de dizer, minha senhora, que Chiquinho é o
gato mais querido da Concessa!
O
PROFESSOR
PEDRO SANT’ANA
Em primeiro lugar, eu gostaria de saber quem foi o professor
de História de Pedro Martins de Sant’Ana. Professor
ou professora, tem de ter sido uma pessoa notável, metódica,
eficiente, capaz de despertar grande interesse no aluno. Ninguém
encaminharia tanto saber a um discípulo se realmente
não o tivesse. Não se transmite gosto e amor,
sim patia ou paixão, quando não se tem essas qualidades.
Pedro, como fruto, tinha de originar-se de árvore de
primeira cepa. Era realmente um homem de grande saber histórico,
mestre da didática, capaz de ensinar até a estátuas
de gelo que estivessem sentadas em sala de aula. Aliás,
ele não só ensinava, vivia como artista cada página
da história.
Pedro Sant’Ana, nos velhos idos do Colégio Diocesano,
fim da década de quarenta, início da de cinquenta,
era um árbitro da elegância, no vestir e no falar.
Seus ternos eram mais bem talhados do que os da gente grã-fina
da Rua quinze, de tecidos mais caros do que os do pessoal rico
do Clube Montes Claros. Tinha-os tantos, que não os repetia
durante um mês de aulas. Famosas gravatas de seda, camisas
de colarinhos tru
benizados, engomadas com esmero, sapatos Scatamákia decromo
alemão com tonalidades que iam do marrom claro até
o escuro-preto.
Era uma época de ouro das alfaiatarias e das lojas de
luxo, quando cada par de meias era escolhido como se o freguês
estivesse minerando ouro ou faiscando diamantes. Aí,
Pedro Martins de Sant’Ana era o mestre do bom gosto.
Lembro-me
de que o professor Pedro Sant’Ana era bom, humilde quase
nunca, algumas vezes arrogante, consciente do seu próprio
valor durante todo o tempo. Jamais concedia a si mesmo uma dúvida
por menor que fosse. Era um monumento de saber, na História,
nas Ciências Naturais, no Inglês. Primeiramente
na História. Aí era inesgotável sua eficiência.
Falava dos Césares e dos Antoninos, de Aníbal
e de Alexandre,
de Ramsés ou de Napoleão, de Gengis Khan de César
Bórgia como se fosse ele, Pedro, colega de campanha ou
vizinho deles. Como percorríamos as ruas de Atenas e
de Esparta, de Roma e de Alexandria, de Tebas ou Jerusalém,
vivendo suas palavras! Com Pedro Sant’Ana, lutamos em
Dardanelos, corremos em Maratona, navegamos no Rio Nilo, atravessamos
o Mar Verme lho, fizemos nossa a Mesopotâmia!
Pedro Sant’Ana, que grande professor! Não me consta
que jamais tenha trabalhado pelo salário, pelo vil dinheiro,
somente pelo pão de cada dia. Trabalhava muito mais pelo
entusiasmo, pela visão multissecular dos heróis
da História, pela experiência milenar dos sábios.
Alimentava-se, parece, pela retórica, tendo, como material
da vida, a palavra, a palavra viva, sonora, marcante nas consciências
jovens. Para nós, seus alunos, o verdadeiro descobridor
do Brasil, o homem que abria as selvas, rasgava estradas, construía
escolas, levantava templos,
era ele Pedro Sant’Ana, o grande Pedro. O mestre com carinho
de um velho guerreiro! Pedro Sant’Ana, sem favor nenhum,
teve outro mérito: culto, vibrante, polêmico, destemido,
desaforado, foi um dos dez melhores oradores da história
de Montes Claros. Merece um lugar importante em nossa galeria
de personagens!
O MULO DARCY RIBEIRO
O lançamento do segundo romance de Darcy Ribeiro - “O
MULO”- na Academia Montes-clarense de Letras, numa descontraída
noite de quinta-feira de dezembro, foi um reencontro de alegria
e de contrastes, com um amado e temido filho da terra a derramar
nos ouvidos o mel e o fel de santas heresias e virtudes. Ora
terno, doente de romantismo, saudoso filho de dona Fininha Silveira,
ora demolidor, prenhe de força belicosa, irmão
de Mário Ribeiro, ora compulsivamente criativo, primo
espiritual de Konstantin Christoff. É que Darcy Ribeiro
nasceu pouco adaptado ao modo e ao jeito dos mineiros, nunca
afeito ao silêncio, ao retraimento, mas, ao contrário,
incômodo para inteligências e sentimentos preguiçosos,
bisturi ou látego auto conduzido e sempre a si mesmo
proclamado.
Ao contrário de Ciro dos Anjos, outro montes-clarense
famoso no mundo das Letras, este sereno, machadiano, universalista,
acomodado como um velho funcionário público, a
curtir um silêncio invisível, Darcy Ribeiro é
e afigura-se agita do, fogoso, tropicalmente brasileiro, aquecido
de alma e corpo, de lufa e de luta, instintivo, felino como
um condor. De inteligência selvagem, incontida, Darcy
raciocina como uma ventania
de amor a tudo que é cultura. Curtido primitivamente
no sol e no solo do sertão de Montes Claros, fruto telúria
de ternura e de instinto, de voluptuosa ambição
de mundo. Darcy é um caldeirão efervescente de
ideias como a querer viver em uma
só vida todas as vidas. Mortal, tem pretensões
de imortalidade
e imortal se fez pelos feitos multifeitos.
Bem brasileiro, latinamente apaixonado, traz na alma o Mulo
Darcy retalhos de peles de todas as cores: a cor do índio,
a cor do negro, lembranças atávicas do misticismo
dos celtas, aguerrida força de velhos godos, gosto de
mando da alma ibérica, uma noção tão
grande de espaço e de glória que só nave
gadores fenícios poderiam ter impregnado o sangue de
ma rinheiros do velho Portugal. Tem mais: Darcy é lúbrico
como um cristão novo, fogoso como um nômade cavaleiro
árabe. Na verdade, é um homem com a alma da raça,
e não só da portuguesa, da índia e da africana,
misturadas no cadinho brasileiro. E da raça humana, pois
portador de muitas virtudes e de muitos defeitos, um caldo bem
temperado de semens jorrados do chuveiro eterno, não
sei por que nascido em Montes Claros.
O MULO é esta cidade sedenta de força humanamente
parceira de Deus na distribuição da vida e da
morte; divinamente sequiosa na busca de amor, criadoramente
envolvente na caça do mando e do poder. Sensual, oportunista,
material, religiosamente mística, faminta da novidade,
sonhadora de fu turo. O MULO é um pedaço de cada
criatura que viva ébria da própria terra natal,
homem ou mulher. O MULO tem muito de João Valle Maurício
na palavra e na sutileza, muito de Konstan tin no arregalo da
anatomia, no desenhar das forças; muito de Crispim da
Rocha no faro do homem do mato, forte e inteligen te; muito
de Filomeno na sede do ter e do governar; muito de Plínio
Ribeiro, no misticismo, no gosto do idear, no ser e não
ser da vida. O MULO é Darcy e é Mário Ribeiro,
inconsequentes
e perseverantes, sempre determinados.
O MULO, centro de uma bem romanceada trama de Realismo e Naturalismo,
barroco talvez pelos contrastes, hereditariamente marcado pelo
destino, fruto do amor e do desamor, sem peias, sem origem e
sem destino produto da terra e da carne, somos-isso é
verdade-todos nós, pequenas grandiosas criaturas no sofrer
e no gozar.
E que Deus nos perdoe. Amém
ONDE
O AMOR É MAIOR
Permita-me continuar alguns comentários sobre o Livro
“Montes Claros, Sua História, Sua Gente e Seus
Costumes”, do nosso companheiro Hermes de Paula, o maior
amado-amante da cidade, um dos melhores, montes-clarenses de
todos os tempos. Foi, aliás, outro bom montes-clarense,
hoje ausente morando no Rio, o Newton Prates que, prefaciando
a obra na primeira edição afirmara ser o relato
histórico de Hermes de Paula um trabalho valioso, um
modelo de honestidade. “Do alvorecer aos dias atuais,
o livro é um quadro colorido, cheio de vida, um testemunho
palpitante da força criadora de gerações”.
Para ele, “o livro não é apenas de interesse
regional, é uma contribuição para o estudo
do folclore, dos usos e costumes, da marcha da civilização
no interior do Brasil”, pois, “Montes Claros é
o milagre do sertão”. “Quem nela viveu nunca
a esquecerá. Se está distante, a lembrança
da cidade querida permanecerá sempre ao seu lado carinhosa,
fiel”.
Como Newton, também o seu parente Juca Prates, famo so
pelo amor a Montes Claros, é personagem de Hermes de
Paula. Também estão no livro Gonçalves
Chaves, Honorato e João Alves, Celestino Soares da Cruz,
o Cel. Antônio dos Anjos, José
Correia Machado, Honor Sarmento, os dois xarás Simeão
Ribeiro dos Santos e Simeão Ribeiro da Silva, além
do atual Simeão Ribeiro Pires, todos ou quase todos,
hoje, nomes de ruas da cidade. Homens e mulheres foram um contínuo
desfile de trabalho e de saudade e Hermes os traz para o nosso
conví
vio em ameno bate-papo, lembrando velhos tempos quando a televisão
ainda não ocupava o lugar principal em nossas horas
antes de dormir.
Com Hermes de Paula, vemos chegar a Montes Claros o primeiro
“bicho caminhão”, em 1920; ouvimos os tiros
de prérevolução de 6 de fevereiro de 1930;
vemos acender as luzes dos lampiões de querosene, de
1912, e da usina hidrelétrica do Cel. Francisco Ribeiro,
em 1917. Aparamos águas nas bicas do século passado
e nas torneiras do século presente, no sonho finalmente
concretizado depois de 82 anos. Com ele, assenta mos os primeiros
paralelepípedos, na rua 15, e os primeiros “blokrets”
na Rua Rui Barbosa e na Praça Dr. Chaves; em 1950, com
o Doutor Alpheu de Quadros; em 1955, com João F. Pimenta;
e em 1957, com Geraldo Athayde. Com Hermes de Paula, pavimentamos
até o pavimento a que ele não quis se referir,
as muitas ruas calçadas pelo Capitão Enéas
Mineiro de Souza, seu adversário político na campanha
para prefeito de 1950.
Com Hermes, ficamos sabendo de velhos nomes de logradouros públicos:
Rua do Pedregulho, atual Gonçalves Figueira, ex-Joaquim
Nabuco; Rua da Assembleia, atual Afonso Pena; do Bate-Couro,
a Governador Valadares; do Pequizeiro, a Cel. Antônio
dos Anjos; Largo da Caridade, a nossa Praça Dr. Carlos;
do Urubu, a ainda velha Floriano Peixoto. É ele quem
afirma ser o esdrúxulo nome do Roxo Verde proveniente
de personagem
de Alexandre Dumas da literatura francesa, etimologicamente
Rochefort. É Hermes que põe o nosso saudoso Pedro
Mendonça fundando os Santos Reis, dividindo as terras
em lotes para evitar a solidão. É Hermes que faz
funcionar uma liga contra o alcoolismo e a faz acabar com as
licenças dos as sociados de goelas secas. É ele
quem põe o povo entregando um relógio de ouro
ao Dr. João Alves, depois de uma terrível epidemia.
É por isso que ninguém sabe onde é maior
o amor, se em Hermes de Paula, se em Montes Claros, uma vez
que o autor se mistura com as personagens, numa paixão
de nunca acabar.
POR QUE SÃO TOMÉ?
Se o assunto está espichando muito, a culpa pode ser
debitada ao leitor. A culpa ou o mérito, porque o leitor,
em primeira e última análise é quem determina
o caminho que deve ser seguido pelo cronista. Quando escrevemos
em jornal, nosso maior prêmio é a leitura imediata,
a apreciação do conteúdo, os comentários
que fazem amigos e adversários, conhecedores, doutores
ou simplesmente curiosos. Não adianta escrever para não
ser lido. Quem escreve para si mesmo não deve publicar
o que produz e os escritos poderão continuar guardados,
em gavetas ou dentro de folha de livros, embora esse ato possa
prejudicar a um virtual leitor, muitas vezes ne cessitando de
uma talvez preciosa informação.
Mas qual é mesmo o assunto que eu estou espichando? Nomes
de ruas, uai!... Esse manancial que Montes Claros oferece a
mancheias, rico, quase folclórico, divertido, de certo
modo até com características históricas,
o que poderá ser útil, no futuro, a alguém
que queira inventariar ou associar fatos da vida da cidade.
Combinei
com Haroldo Lívio para ele escrever o que sabia, já
que ele foi o puxador do samba, mas o meu caro amigo e colega,
num terrível silêncio, bateu asas e voou para um
congresso de oficiais de cartórios em plena realização
na bela Fortaleza do Ceará. Pode ser que, de lá,
o Haroldo mande pelo
menos um postal para o Lazinho, dizendo não ter se esquecido
dos tão saudosos Montes Claros dessa iniciante primavera.
Minha história de hora é ainda do bairro Todos
os Santos, pedaço de terra que o Simeão Ribeiro
Pires santificou desde o papel vegetal do projeto-piloto, quando
ele tinha escritório ao lado do Colégio Imaculada,
naquele velho prédio da fábrica de tecidos de
sua família. Digo minha história, porque nesta
eu to mei parte, parte ativa. Foi uma pacata sessão de
nossa Câmara Municipal, com todos os senhores vereadores
presentes, num dia em que alguém disse não poder
o bairro Todos os Santos ter uma rua com o nome de Antônio
Narciso, não sendo ele santo de papel passado, embora
membro de uma tradicional e respeitável família,
a mesma do colega Paulo Narciso, o homem da FM. Haveríamos,
então, de achar um nome de santo, para a rua que hoje
é chamada de São Tomé.
A primeira sugestão de projeto partiu de Jonas Almeida,
que propôs o nome de São Judas Tadeu. Neco Santamaria
não gostou da ideia e protestou na hora: São Judas
não podia ser, porque é nome de traidor, que tinha
vendido o chefe para os judeus. Não sei se foi o Humberto
Souto que tentou um conserto de situação, indicando
o nome de São João Nepomuceno. Ainda aí,
Neco não concordou, dizendo que esse nome também
era suspeito, muito complicado. Explicado tudo muito bem explicado,
que S. Judas Tadeu era outro que não os Isca-riotes,
que São João Nepomuceno era até nome de
cidade, tão bom que era, o Neco continuou irredutível.
Além disso, havia muita rua com o nome de São
João, inclusive no bairro. Que arranjássemos um
outro.
Foi nessa hora que me lembrei de um velho amigo que, antes da
abertura da rua, já morava naquele local, atrás
do campo do Cassimiro de Abreu. Era um servente de pedreiro
muito bom, alegre, trabalhador, casado com uma senhora muito
distinta, boa lavadeira, boa doceira, prestativa. D. Pedrelina.
Nunca ninguém jamais havia ouvido falar mal dele, era
bom companheiro e bom vizinho, e tinha um nome muito sugestivo,
de santo muito conhecido: chamava-se Tomé. Tomé
de que, não sei. Tomé nome de santo. Neco protestou,
ainda, dizendo que esse santo não tinha fé, e
precisou de colocar o dedo na ferida de Jesus Cristo para acreditar
na verdade. Não teve jeito, a Câmara estava decidida.
Convencemos o Neco, que esse São Tomé era muito
bom, tinha até os méritos das ciências exatas,
porque queria ver e tocar para crer. A decisão não
demorou e foi unânime. Hoje a rua chama-se RUA SÃO
TOMÉ, e tem mora dores muito importantes...
PRIMEIROS PASSOS
Não sei bem, mas ser jornalista era um sonho que eu acalentava
há muito tempo, bem antes de ter-me mudado para Montes
Claros, nos meus adolescentes dias de Taiobeiras, tempos de
convívio com tudo que um ainda quase menino poderia sonhar.
Escrever para jornais e revistas, naquela época já
não me parecia uma coisa totalmente impossível,
tinha cheiro de realidade, com boa marca de prazo por acontecer.
Na verdade, foi de lá o bom começo, nos meus primeiros
exercícios de charadismo e de palavras cruzadas, quando
não me limitava à passividade das decifrações,
mas indo com determinação a bem mais do que isso:
passei a com por charadas e a construir os primeiros desenhos
e armar as primeiras batalhas de vocábulos e siglas,
encaminhando-os à Revista “Libertas”, que
a Polícia Militar publicava em Belo Horizonte e à
“Revista da Marinha”, que o Ministério da
Marinha editava no Rio de Janeiro. Era uma experiência
e tanto, uma grande alegria ao ver textos e nome publicados
em letras de imprensa. Aníbal Rego, amigo e companheiro
de estudos, um dos melhores professores que já tive,
muito me incentivou, procurando valorizar meus primeiros passos
nesse tipo de atividade
na imprensa. Desenhar a nanquim eu sabia de alguma forma, o
que eu não sabia era datilografar, que era coisa difícil
em cidade de interior. Foi aí que Ageu Almeida, outro
amigo, nas horas de folga da farmácia, me deu grande
ajuda, ensinando-me, corrigindo e, mesmo, passando a limpo minhas
primeiras produções. Foi uma boa escola, coisa
de jamais me esquecer.
Depois, vendo meu esforço, meu interesse, meu pai comprou
uma máquina de escrever e um método simplifica
do de datilografia. Foi para mim, não tenho dúvida,
uma fase de encantamento e alegria. Ainda me lembro de tudo
como se fosse hoje: coloquei máquina e livro em cima
da canastra de madeira e couro, que havia no meu quarto, bem
em frente à janela para aproveitar a claridade, e passei
a gastar nos exercí
cios resmas inteiras de papel almaço, batendo e rebatendo
as quatro carreiras de teclas - dedos das duas mãos -
até adquirir razoável destreza para escrever bilhetes,
cartas e pequenos relatos de acontecimentos de cada dia.
Foi assim que – quase datilógrafo - cheguei a Montes
Claros, em janeiro de 1951, já com meio caminho andado
para trabalhar em jornal. Quando o prefeito Enéas Mineiro
e médico Luiz Pires fundaram “O Jornal de Montes
Claros”, alvoroçado, vi abrirem para mim as portas
de uma nova profissão, sentindo mesmo que o grande sonho
poderia transformar-se em realidade. Nada, porém, aconteceu,
porque o excesso de trabalho no comércio, as tarefas
no Colégio Diocesano, a leitu ra de pelo menos um livro
por semana, as cartas para Olímpia, tudo, tudo não
deixava tempo para o futuro jornalista. Na faixa
dos sonhos quase reais, num querer muito, acompanhei, mais do
que interessado, a primeira fase do jornal, principalmente as
polêmicas entre professor Pedro Sant’Ana e o jovem
médico João Valle Maurício.
Depois veio a política estudantil no grêmio do
Instituto Norte Mineiro, com eleições perdidas
e eleições ganhas, liderança construída
quase a ferro e fogo. Foi também nesse tempo que recebi
de Waldir Senna a presidência do Diretório dos
Estudantes, numa velha sala da rua Doutor Santos, em frente
ao Hotel São José. E daí, para quem vinha
de tão longe na vida estudar de favor, o novo cargo era
um brilho súbito, uma quase consagração,
nome diariamente no rádio e pelo menos duas vezes por
semana nos jornais. Deve ter sido por isso que o professor José
Márcio de Aguiar, que não era tão meu amigo
como o era de Haroldo Lívio, resolveu atender o pedido
de Oswal do Antunes e me mandar para o JMC. Antes, recomendou-me
o máximo de respeito à gramática, cuidados
no contato com o público, e mais do que isso: nunca
esperar do jornalismo a riqueza de saldos bancários,
porque jornalismo teria que ser sempre um sacerdócio,
ou mais do que isso.
Trabalhei três meses sem ver cor de dinheiro, tudo com
pletamente de graça e até com alguma despesa saída
do meu próprio bolso. Depois, Oswaldo destinou ao jovem
e apressado repórter o diminuto salário de mil
cruzeiros, quantiazinha que nem dava para pagar um mês
inteiro à pensão de D. Duca.
Um bom começo. Claro, um bom começo!
PROFESSOR
ZECA
Acho que esta crônica deveria estar sendo escrita por
Haroldo Lívio. Ele a faria bem melhor, com mais sabor
telúrico, uma vez que ele sente muito mais de perto a
força da terra de Grão Mogol, o cheiro do amor
metafísico que perpassa pelas ruas tortas e pela velha
praça nominalizada pela placa mais bonita que já
vi, a placa da Praça Prof. Ezequiel Pereira, bem o no
centro da velha cidade. O Professor Zeca é de Grão
Mogol, de lá mesmo, município cheio de pedras
escuras de verde-musgo e maduras de amarelo-dourado, lugar de
águas tão claras como o cristal mais claro, árvores
de um verde tão intenso que faz doer-nos a vista. Nascido
lá, ali tomando contato com a natureza e com o mundo,
lendo e escrevendo as primeiras letras, construiu, desde menino,
um feliz alicerce de vida feliz.
Não sei quantos anos tive de convivência com o
Professor Zeca nem posso precisar bem a época dos nossos
primeiros encontros, de quando eu comecei a beber na fonte inesgotável
de sua sabedoria, do manancial de erudição tão
maravilhoso que ele sabia muito bem guardar envolto numa sincera
e natural simplicidade. Foi o Professor Zeca um dos homens maiscultos
e mais humildes que pude conhecer até hoje, cultura que
a gente tinha de minerar aos poucos através de perguntas,
de colocação de assuntos que pudessem provocar
sua obriga ção de ensinar, de esclarecer. Sabendo
muito, por demais preciso nos seus conceitos de ciência,
de filosofia, de religião, de linguística, parece
que tinha medo, ou mesmo por excesso de amor evitava ofuscar
os que sabiam menos ou quase nada.
O Professor Zeca era impecável na limpeza. Limpeza física
e de coração, limpeza de ideias, de vocabulário,
uma limpeza alegre, descontraída, despojada de qualquer
tipo de pompa ou de orgulho. Sua presença colocava as
pessoas tão à vontade como se elas estivessem
numa respeitosa festa de família. Era
um homem de bem, tudo indica, sem qualquer defeito visível
ou invisível. Os que conviveram mais tempo com ele –
Olímpio Abreu, Ney David, D. Deuslira Filpi, D. Lisbela,
D. Lia Rameta, João Afonso -, todos dizem nunca terem
notado nele qualquer
faceta negativa. Espírita desde os treze anos, juntamente
com
seu famoso irmão Cícero Pereira, Professor Zeca
foi estudio so da doutrina até os 84, paciente nas anotações,
firme e sem desfalecimento até o fim. Um erudito, obediente
à codificação, firme no escrever e no proferir
palestras, mestre admirado de muitas gerações.
Terminamos, hoje, a semana de comemorações do
centenário de nascimento do Professor Zeca. Foram dias
de repasse de feitos grandiosos de um homem que jamais sonhou
com grandezas. Professor, coletor do Estado, chefe político,
guarda-livros na antiga fábrica do Cedro, foi sempre
metódico e seguro nas suas decisões. Foi um dos
fundadores do Centro Espírita Canacy, no início
do século, companheiro também de Aristeu
de Melo Franco e de Sebastião Sobreira. O Professor Zeca
não estudava só em português e não
podia assim fazê-lo numa época em que muitos livros
importantes não haviam sido traduzidos para nossa língua.
Lia diligentemente em francês, inglês, italiano,
espanhol, esperanto. Eram excelentes seus conhecimentos de grego
e de latim. Um intelectual exemplar.
O Professor Zeca, Ezequiel Pereira, foi sempre um ho
mem de bem!
REIVALDO E OS ARQUITETOS
É claro que venho acompanhando, de muitos anos, a vida
de jornal do meu amigo Reivaldo Canela. De quantos, não
sei. De muitos, desde quando ele começou a cometer os
primeiros poemas e sonetos, todos, por sinal, já de boa
qualidade, acredito por influência ou por críticas
de Cândido pai. É que Reivaldo tem, por natureza,
alma e coração de poeta, sem pre ligadão
a tudo que toca o sentimento, a beleza do existir. Homem dos
passarinhos de vida livre, isto é, passarinhos que vivem
fora das gaiolas, Reivaldo conhece línguas e dialetos
de aves e de mamíferos também. Homem do verde
ecológico, fisca liza pelo amor até as estações
que começam a terminam quatro vezes por ano. Um caso
de paixão existencial, alimenta e escreve, sonha e realiza
sonhos de pequeninos tizios e domiréis da sua praça
e do seu quintal.
Agora, vem Reivaldo fazer a sua melhor crônica, a mais
direta, a mais enxutinha de adjetivos, leve, gostosa, tranquila,
plena de uma atualíssima dose de romantismo montes-clarense,
quando fala de dois arquitetos bem nossos: o joão-de-barro
e o joão-doutor. Foi o escrito mais descontraído
que o JMC publicou nos últimos tempos, falando de dois
profissionais donos da nossa maior admiração,
o João Carlos Sobreira e o joão-ma-rido-da-joana-de-barro,
dois entes sertanejos, pacíficos bichos do mato, ambos
admiráveis pais de família, cidadãos brasileiros
de uma simplicidade de fazer gosto! Como Reivaldo soube descrever
tão bem os dois engenheiros amassadores de barro lá
do bairro Jaraguá e de toda a cidade dos Montes Claros!
Como ele falou com jovialidade do marido de Baby e pai de Rafael
e Isabela! Como agiu com justiça, gastando palavras com
gente tão cheia de ternura! Foi bom, Reivaldo.
O João Carlos Sobreira, Reivaldo, é também
velho amigo meu, embora como no seu caso, não de convivência
tão amiúde como seria de desejar. Ocupados, e
muito ocupados todos nós, não temos tido o tempo
necessário para aproveitar a nossa sabedoria dos dois
arquitetos-joão, um dos “savoir-vivre”, outro
do “savoir-faire”, ambos operários da eterna
construção. João Carlos, acredito o maior
conhecedor do “Grande Sertão-Veredas, leitor infatigável
do grande Guimarães Rosa, é realmente um irmão
de tudo que cheire a vida. Sentimental, sem pieguismo, intelectual,
sem afetação; homem de fé, sem idolatria;
é ele um ser real da hinterlândia verdadeira enamorado
da Natureza um Espírito do bem! Um joão-de-barro
do gênero humano, Rei valdo!
Sobre este assunto, a Baby e eu conversamos com grande alegria,
num intervalo de aulas na Fafil. Ela estava simplesmente encanada
com o que Reivaldo escreveu, atenta, conhecedora de cada detalhe,
alma sintonizada em cada movimento das frases. Quando lhe falei
que Reivaldo tinha conseguido uma obra-prima, quanta felicidade
pude notar nos olhos da mulher de João! Foi tudo muito
gratificante, algo assim que valoriza o próprio ato de
viver.
E como foi você, Reivaldo, que começou, cabe-lhe
um cré
dito de alegria no calendário da eternidade. Agora e
sempre!
ROTARY CLUBE
MONTES CLAROS - NORTE
A primeira vez que ouvi falar do Rotary Clube Montes Claros-Norte
foi pela voz educada e amiga de Nathércio França,
acredito num mês de março de 1969, quando ele me
convidou para fazer parte da lista de fundadores. Era Nathércio
o encarregado, a pedido do Governador do Distrito 452, de tomar
todas as providências para a organização
do quadro de sócios e apresentação dos
documentos, assim como do levantamento das possibilidades de
serviços à comunidade pelo novo clube. Trabalho
difícil, suado, mas nunca impossível para o dinamismo
diplomático de Nathércio. A confiança nele
depositada pelo Rotary Internacional seria, muito antes do tempo
previsto, marcada do maior êxito, com o clube oficializado
já em maio, com as primeiras reuniões no Automóvel
Clube. Foi Benoni Mota o presidente provisório. Trinta
e dois eram os sócios, representantes de quase todos
os campos profissionais da cidade.
Lembro-me perfeitamente do zelo com que o Nathércio França
ensinava aos novos companheiros toda a trajetória de
trabalho que deveriam seguir, de forma a fazer do Rotary as
possibilidades de firme prestação de serviços.
O cuidado dele em
semear a boa semente era tanto, sua sincera pregação
de
filantropia era tão grande, que muitos dos convidados
preferiram afastar-se logo, nem chegando a oficializar a admissão.
O Rotary Norte teria de seguir o exemplo de energia do Rotary
Montes Claros, há quase três décadas campeão
de progresso em todos os setores, decididamente um dos melhores
clubes do País na década de cinquenta. Estava
lançado um enorme compromisso, iniciada uma entusiasmada
luta.
Dos velhos companheiros do tempo de recebimento da
carta constitutiva, dos muitos que trabalharam pela afirmação
do clube na primeira fase, olho hoje a relação,
e pouco mais posso ver que uma imensa saudade.
Quanta distância o tempo tem provocado! De uns, uma eternidade:
Antônio Augusto Barbosa Moura, José Comissá
rio Fontes e Ricardinho Francisco Tófani, há muito
no Mundo Maior, deixando entre nós um incomensurável
vazio. De ou tros, que a vida ainda nos faz companheiros, inclusive
em ou tros Rotary Clubes, uma vontade sincera de que voltem
para o
nosso convívio a cada semana, a cada dia de atividades,
com um recomeço de alegrias. Tenho certeza de que a felicidade
de ontem seria a mesma de hoje!
Em 1989, no mês de maio, o Rotary Clube Montes Claros-Norte
estará comemorando seus primeiros vinte anos de atuação.
Será uma oportunidade de relembrar, perfilando ve lhas
histórias de Hermes de Paula, toda a tradição
rotária dos Montes Claros, o mundo de trabalho realizado
pelo bom com panheirismo de várias gerações.
Afinal,
foi exatamente aqui o local de fundação do terceiro
Rotary Clube brasileiro, num sonho, que, sem dúvida alguma,
muito deu certo.
ROUBARAM
DE NOVO
O MEU TOCO
Para mim, mesmo como brincadeira de jovens, é um ato
de violência tirar, na calada da noite, o meu toco de
doze anos de serventia. E um pedaço de madeira velha
estragada pelo sol e pela chuva, sofrido pelos maus tratos da
meninada, pisado, rolado, empurrado. É tudo muito primitivo,
com profundas fendas do próprio corte a machado, sem
casca, um eterno banco de fim de rua, mas é meu, da minha
família incluindo as moças que moram em nossa
casa. Explico melhor: quando mudamos para a nova casa, também
na rua São Sebastião, próxima ao Corredor
do Pequi (perdoe-me Iara, Rua Cel. Francisco José Souto),
na confecção de duas mesas, sobrou-nos um pedaço
roliço de madeira, não usado por não ser
de boa qualidade e estar um pouco estragado. Fora de uso, foi
colocado na porta da rua em cima do passeio, bem colado ao muro,
como se fosse um banco ou um cepo deitado. Foi uma beleza, útil
todos esses anos, um ótimo lugar para se bater um
papo com a vizinhança, um ponto para as secretárias
namora
rem, uma recepção avançada dos rapazes
e moças para os seus amigos também jovens.
Durante doze anos, nosso toco ficou ali, como uma for taleza,
uma garantia de bons encontros, um marco de muita felicidade
doméstica. Os vizinhos se acostumaram com ele. Servia
até de referência quando a gente chegava de táxi:
“-Pare naquele portão, onde está o toco”.
E os motoristas entendiam logo. Pois um dia aconteceu o pior,
e o nosso toco sumiu. Enquanto eu viajava de Brasília
para Montes Claros, na noite de seis para sete de setembro,
quando vinha comemorar os meus cinquenta anos de vida e os da
Pátria, já de madrugada, dei-me por falta dele.
Foi uma tristeza! Quando os de casa acordaram, mesmo atarefados
com a festa, sentiram o mesmo trauma, uma falta importante e
constrangedora: o toco sumiu, sumira misteriosamente...
Já refeitos da perda, consolados todos, acostumados a
uma ausência, Olímpia vai a Belo Horizonte e, lá,
Wladênia dá-lhe a notícia que lera no jornal.
O toco havia sido apreendido por soldados do Exército.
Estava preso, retido ou depositado na Delegacia de Polícia,
ao que tudo indica como objeto de uma possível conspiração,
uma sabotagem ao desfile da Independência. É que
rapazes, parece que dois, estaturas médias, cabelos lisos,
aparentemente de 22 anos, de óculos, montados num Gol
branco, haviam levado o toco para a avenida em frente ao Colégio
Imaculada, justamente onde o desfile ia passar. E como a segurança
precisava da passagem livre, deu uma carreira nos brincalhões
(ou sabotadores, quem sabe o que se esconde nos corações),
e levou o estranho objeto para a cadeia da Dr. Veloso, anunciando
o acontecido para ser devidamente apurado. Foi assim, quase
assim, que o jornal contou...
Pois
bem, de volta a Montes Claros, eu ainda em Brasília,
Olímpia conta-me a estória pelo telefone. O nosso
toco estava
preso e precisava de libertação. Um caso complicado
na Justiça, ou melhor, na Polícia, envolvendo
problemas de segurança. Deveria ou não deveria
acionar o advogado da família, liber tando nosso toco
das malhas da lei? Claro que isso é que seria o correto,
responde-lhe. O João Wlader não é advogado?
É uma boa causa, se não rendosa, pelo menos interessante:
que ele coloque os seus conhecimentos jurídicos em defesa
do nosso toco... Que vá conversar com o senhor Delegado,
uai! A Pátria e nós somos vítimas de uma
injustiça, de um ato impensado dos jovens do Gol branco.
Agora, além de nosso, o toco é patrimônio
nacional!
O João Wlader, doutor, foi, conversou, explicou, muito
disse de nosso amor pelo velho companheiro de doze anos. Sério,
a principio, como autoridade, o Delegado acabou achando graça
de tudo que aconteceu. Todo mundo, na Delegacia, parece, sabia
só de uma parte do acontecido e o desfecho foi uma alegria!
O toco veio de volta como uma pessoa querida que marca saudades!
Uma festa e quantos e quantos sorrisos, inclusive o meu, na
volta a Montes Claros! E a velha estória da
ovelha perdida...
Mas sabe o que aconteceu? O destino pregou-nos ou tra peça:
quando chegou a Primavera, em outra madrugada, alguém,
de novo, levou o nosso toco! A frente da nossa casa está
limpa, desmobilada. Também uma parte secreta do nosso
coração... Parece que a nossa sorte é ficar
sem!
Paciência...
SAUDADES
DA IRMÃ
DE LOURDES
Minha querida irmã de Lourdes, como são lindos
os teus versos nos cantos da manhã de azul! Quão
saudoso é o São Francisco, teu vassalo e o rio-mar,
tristeza e alegria de todas as lembranças da mocidade!
Como são lindas as manhãs imponderáveis,
os fios de horizontes de contras te com as horas mais doces!
Quanta sensação de cheiros e de cores de todas
as rosas dos arminhos dos verdes anos! Januária, Januária,
há coisas mais lindas no amor? Todos os sonhos se realizam
no espaço-tempo de um belo coração. Tua
poesia, Irmã de Lourdes, teu ‘Caderno de Lembranças’
é a luz mais clara da infinitude da alma, um halo da
cor do céu, reflexo de águas mansas que passam
numa eternidade!
Teus pescadores singram um rio de sonhos e se alimentam de brisas
de todos os mares da imaginação!
Gostei imensamente da amorosa adjetivação do ‘Cader
no de Lembranças’, livro de poesia dos mais coloridos
substantivos, abstratos para a vida comum e concreto para o
pensar do artista. Versos de angelitude e de fé, gratificantes
do mais santo poetar. No mundo sem ser do mundo, reais no aqui
e no agora, jamais abandonam o espaço-tempo de quem sabe
voar no mais verde da esperança. Irmã de Lourdes
é namorada do azul e, queira ou não, suas personagens
terão sempre o colorido das águas e do céu
do São Francisco: Celeida, Celeste; Marina e até
Dulce, com doce de perfume de infinito! Há no breza nas
flores, há nobreza nas pedras, haverá sempre joias
para enfeitar a amizade sempre próxima da pureza do encanto.
Grata aos que sabem viver pelo estudo e pelo amor, Irmã
de Lourdes desfila uma galeria de nomes de reconhecido valor:
Yeda, Genoveva, Jacy, Heloísa, Luiz de Paula, Antônio
Augusto Veloso, das Irmãs Guiomar e Edmunda.
Irmã de Lourdes, como irmã e como professora,
tem, na turalmente, um seu mundo bem diferente do nosso.
Não tem como não poderia ter muitas das nossas
imediatas preocupações, tão naturais à
guerra da vida de todo dia. Seu universo é povoado de
muito futuro, quando pensa nas outras pessoas, e de muito passado,
quando pensa em si mesma. O presente não importa quando
ela vê – e é bom que isso aconteça
sempre – o lado bom dos que passam pela sua amizade e
carinho. Assim, suas flores são lírios, rosas,
jasmins,
miosótis, o tão grato manacá todas vivas
de transparência, exalando perfumes de amor! O cristal,
o diamante, a turquesa,
a esmeralda são nuanças do verde-azul do rio de
Januária, ou
do mar de Olivença tão vivos no coração.
Quando fala de rubis
não quer dizer outra coisa que o pulsar dos anti-crespúsculos
presentes no rio natal.
As cidades de Irmã de Lourdes acordam a voz dos séculos
e marcam muitos sóis de primavera no texto suave da Boa
Nova, na mais linda das mensagens de todos os tempos. Através
dos versos o perfume do Líbano, lembranças dos
cedros; a alma do Sião, mensagem de aguadeiras e de pastores,
orvalho de manhãs de intensa luz; o barulho juvenil de
Cades, movimentação de dançarinos e mercadores;
e esperança de Jericó, lugar sagrado de encontro
entre a verdade e a fé. As cidades da Irmã de
Lourdes têm o azeitonado tom de Olivença, o brilho
de névoa de Friburgo e todas as sequências de matizes
das mais ternas de todas as cidades do mundo: Januária
e Montes Claros.
SAUDADES
DO MERCADÃO
Para ter saudades do velho mercadão da Praça Dr.
Carlos é preciso ter algo mais de trinta anos, uma certa
idade de jogador de futebol que já anda querendo deixar
ou ser deixado pelo clube. Gente de menos de vinte anos de Montes
Claros ou não conheceu ou não se lembra do velho
casarão, que marcou tanto a nossa vida de jovens, pois
lugar obrigatório de passagem diária ou de trabalho
e ganha-pão. Velho, sujo, defeituoso, profundamente marcado
pelos anos era, entretan
to, uma construção feita com ar de suntuosidade,
grandalhona, cheia de grandes portas e largas janelas, escura
e clara ao mesmo tempo, dependendo do ângulo de observação.
Muito largo e espaçoso, tomava conta de toda a pracinha
entre as ruas Rui Barbosa e Cel. Antônio dos Anjos, entre
a São Francisco e a Dr. Carlos, onde hoje fica o “Cimentão”.
Celeiro de vida movimentada, o Mercado começava o barulho
a partir das cinco da manhã, quando cavalos, burros,
bestas e jegues de carga, resfolegando, eram amarrados nas árvores,
nas argolas e nos morrões a eles destinados pela Prefeitura.
As bruacas, os embornais, os jacás eram carrega dos calmamente
para as laterais do lado de fora e do lado de dentro, cada um
julgando-se dono do lugar, pela tradição ou simplesmente
porque havia chegado primeiro. Fila não existia, quando
muito uma carreira no chão, formando montinhos de maxixes,
de panãs, de pequis, saquinhos de andu, de feijão
de rama, de arroz com casca, de remédios, ou montões
de raízes de mandioca, de batatas, de melancias, de abóboras
de porco ou morangas. Era um colorido de fazer gosto, onde eram
incluídas as laranjas, o bacupari, as tangerinas, limões
verde-ama relinhos, a pimenta-de-cheiro.
Havia também barracas de lona, com toscas mesas, onde
eram vendidas as talhadas de requeijão e doce-de-cidra,
pedaços de queijo e rapadura. Normalmente, havia também
um pote com copos feitos de latas e folhas de flandres para
vender moreninha com bicarbonato, coloridas e transparentes
de dar gosto! Para não esquentar, as garrafas e os litros
ficavam sem
pre na sombra, assim como os copos de vidro, mergulhados numa
bacia de alumínio cheia d’água. Quando o
freguês que ria beber, o vendedor tirava o copo, sacudia-o
para jogar fora as gotas de sobra e punha o bicarbonato com
uma colherinha de chá. Para despejar o refresco, subia
bem a vasilha, fazendo uma linda espuma.
Do lado de dentro, principalmente nas portas da Cel. Antônio
do Anjos e da Rui Barbosa, os vendedores de carne, com varais
e mesas engorduradas, cheias de panos de toucinho, de
tripas, de sebo e de fressuras. A carne de sol e mesmo a car
ne fresca eram penduradas nos ganchos como o mais natural dos
mostruários. No chão, os ossos grandalhões,
as cabeças, os entrecostos, os mocotós, as rabadas,
os miúdos vermelho-escuros. Bonito mesmo eram os pedaços
de bucho branquinhos, bem limpos, convidativos, ao lado da carne
de porco e das passarinhas.
De vez em quando, uma oferta de caça, uma cotia, um quarto
de veado, um tatu, uma zabelê ou uma codorna. Peixe quase
sempre ficava separado para não misturar os cheiros,
sendo os mais bonitos os dourados e as pensas de lambaris, normalmente
já secos e salgados.
O mais interessante, porém, era a paisagem humana, gente
de toda espécie, num vaivém de se admirar, quase
sempre numa interminável pechincha. Havia também
muitos botecos, onde a cachaça corria solta, pura ou
misturada com remédios ou folhas para dar cor mais agradável.
Lembro-me, com saudade, das vendas de Jonas Almeida e de Tiano,
parece as mais movimentadas, onde os fregueses eram atendidos
com mais amizade e podiam deixar os tarecos enquanto faziam
a ronda para encontrar vizinhos, amigos e conhecidos ou, sim
plesmente, para dar uma olhada nos acontecimentos. Tudo muito
familiar como uma grande casa de parentes, onde o barulho e
a algazarra conviviam com a pressa de donas de casa que compravam
as verduras pouco antes do almoço.
Será que vale a pena buscar a marca da saudade?
TEMPOS DE CASSINO
Não havia a Rua Lafetá desembocando ali na Rua
Carlos Gomes. O que havia lá era só o esplendor
do Alhambra, casa de mulheres grã-finas, chefiada com
mão-de-ferro por Ana Reis, uma organização
de dar gosto. A Rua Lafetá só foi aberta já
no fim da administração do Capitão Enéas
Mineiro, quando este a ligou com a Rua Visconde de Ouro Preto,
que até hoje conserva o nome. Era nesse encontro de esquinas
que ficava o cassino, casa de festas, de jogos, de encontros,
que tinha na placa o respeitável nome de Clube Minas
Gerais. Ao lado, em volta, pertinho, longe, dezenas de casas
de mulheres, com janelas apinhadas de propaganda viva, contida
algazarra de quem precisava acatar as exigências das famílias
vizinhas. Durante o dia, certo respeito. A noite, agora sim,
é hora de se
divertir, pode levantar o tom da música que é
tempo de praze
res. Todos os homens, tendo dinheiro, estão convidados!
Foi por causa do cassino que não pude ficar morando na
Pensão de D. Ismênia, na Praça de Esportes.
Menino ainda, não ficava bem passar, toda hora, em frente
das casas ditas de tolerância, subisse pela Rua S. Francisco,
pela Carlos Gomes ou pela Altino de Freitas; pela rua Lafaiete,
aí nem pensar, era lá o centro de tudo, a capital
do pecado. Sabedor-mestre da situação, Dr. Carlyle
Teixeira, meu conselheiro, mandou-me para a Rua Afonso Pena,
no beco do Padre Marcos, para a Pensão de D. Tonica,
lugar de gente muito mais seria. De lá para a Loja Imperial,
durante o dia, ou para o Colégio Diocesano, durante a
noite, era um pulinho, e bem a salvo da malandragem ou da perdição.
. . Assim era mais seguro, pensava ele.
Engraçado é que, apesar de todo esse cuidado,
por ser eu amigo de Anibal Rego, que, por sua vez, era amigo
de Ana Reis, raro foi o dia em que eu não passava pelo
Alhambra, para ouvir rádio ou escutar conversas do mulherio
de luxo, não sei que tempo eu encontrava para isso. O
cassino eu via por cima, da sacada, lá dentro a orquestra
ou um tipo de conjunto musical dirigido por Godofredo Guedes,
um mestre da clarineta, a de dilhar e soprar boleros, tangos
e velhas músicas de jazz. Com dezesseis anos apenas,
entrar na festa estava fora de qualquer cogitação.
Este direito ficava com os rapazes mais velhos como Geraldo
Borges, Geraldo Avelar, Dudu Cunha, Ildeu Gonzaga, Carlúcio
Athayde, ou meninos ousados como Bebeto Prates.
De todos os frequentadores das casas de mulheres, o mais importante,
o maior galã, era Dudu Cunha. Grã-fino, rico,
bonitão, vivia a época de ouro dos donos de caminhão.
Na noite em que ele chegava de Taiobeiras, toda a Pensão
de D. Ismênia só falava nas suas aventuras, no
cuidado que ele tinha com as roupas, com os sapatos, com o perfume,
no demorado barbear. Os filhos de Nego do Ó, que vinham
de Salinas, Gildásio Ramos, que parece, já morava
em Montes Claros, todos ficavam alvoroçados para acompanhá-lo,
tirando uma casquinha do seu sucesso. Era um espetáculo
para todos nós, os mais novos, mais sensacional do que
um episódio de seriado do Cine Cel. Ribeiro. Dizem que,
com Dudu, até Nivaldo e Benedito Maciel, os donos da
noite, ficavam ofuscados, Montes Claros se curva va perante
Taiobeiras!
Fora dai, num outro circuito de que eu só ouvia falar,
as estórias corriam por conta de um rico comerciante
chamado Kalil, de Ludendorff Pinto Cunha, de José de
Souza Zumba, de Benjamim Moura e de jovens doutores bem conhecidos,
entre eles Mário Ribeiro, João Valle Maurício
e Konstantin Christoff, todos bonitões, elegantes e bem
postos na vida. O tempo do Cassino não era mesmo para
todos.
TIO ARMINDO MORAIS
Os revoltosos iriam chegar a qualquer hora e, para passar por
Salinas, a fazenda do meu avô João Morais tinha
que ser caminho obrigatório. Como esperá-los seria
loucura ou, no mínimo, ato bem arriscado, todo o pessoal
da fazenda tratou depressa de tirar o time de campo e descobrir
o lugar mais isolado e seguro que fosse possível encontrar.
Aliás, isso não seria problema, pois, quem mais
conhece mesmo a sua fazenda é o fazendeiro. Meu avô
deu ordens expressas para que levassem de tudo, o necessário
para uma agradável aventura de pelo menos trinta dias:
material de cozinha, roupas de dormir e de vestir, vacas de
leite, garrotinhos de carne macia, porcos, cabritos, frangos
e galinhas, capãos, todas as abóboras e maxixes
e raízes de mandioca mansa que pudessem tirar, sal, tempero,
rapadura, açúcar de pedra, e mais todos os etecéteras
– etecéteras. Também o mais importante para
os trinta dias de festas: pandeiros, violões, sanfonas
e um ou outro garrafão da melhor pinga do alambique,
não muita, porque minha família nunca foi de beber
lá esse tanto.
Quando penso nessa proeza, não posso fugir à lembrança
de saída dos judeus para a Terra Prometida, com Moisés
e Josué dirigindo o povo com todos os animais e todos
os trecos de valor. Para governar o rebanho, foi nomeado o filho
mais velho, o mais ajuizado, o defensor intransigente do patrimônio,
já quase em ponto de se casar, o Armindo Morais. Todos
contam,
ainda hoje, da pequena viagem, como uma grande saga, um ato
de alegre heroísmo, um descontraído sacrifício
de velhos e jovens, de patrões e agregados, Mamãe
conta que, mesmo nas paradas para o descanso das mulas de carga,
o sanfoneiro
tinha de tocar e a dança era obrigatória. Para
qualquer fome zinha, morria logo uma leitoa, o arroz com carne,
cozinhava fumegando de gostoso. Todos gozavam a vida e só
o Armindo
dava o toque de responsabilidade no verdadeiro serviço,
só ele
comandava para assunto sério.
Conto esta estória para dizer que talvez tenha sido nesse
imprevisto contrarrevolucionário de 1926 o grande início
de vida do meu Tio Armindo, um homem de sessenta anos de trabalhos,
do dia que se entendeu por gente até a hora final por
acidente numa fazenda do Pará. Todo o tempo de sua existência
foi tempo sem férias ou feriados e, como não podia
deixar de ser, a última viagem era também de serviço.
O melhor descanso – dizia – era um bom exercício,
uma atividade para ocupar a cabeça, dar tratos ao juízo.
Quando sentiu terminar sua tarefa de fazer as fazendas de Salinas,
Cachoeira de Pajéu e numa espécie de sesmaria
que comprou de Filomeno Ribeiro pelas bandas do Rio Caititu
e iniciou um novo império nas matas da Amazônia.
Não era homem de pequenos lotes de terra, era um bandeirante
e um colonizador.
Foi conversando com Tio Armindo, aconselhando-o e dele recebendo
conselho, interrogando-o sempre sobre a importância de
terra e da vida, sobre a pragmática do trabalho
e a vantagem de saber pensar, é que criei dentro de mim
um grande respeito pelo fazendeiro, pelo homem do campo, a única
nação de gente que sabe unir o suor à meditação,
sabe remoer calado as fatias de beleza de todas as horas do
dia.
UM PRESENTE PARA
O CORAÇÃO
Foi num mês de fevereiro, trinta e dois anos depois, que
voltei a rever a minha terra, São João do Paraíso.
Foi bem naquele fevereiro brabo de tantas enchentes, estradas
intransitáveis, com um mundão de dificuldades
para chegar lá, partindo de Taiobeiras. Foi depois de
longa viagem por Valença e Nazaré, por Itaparica
e Salvador, andanças de muito laudar pelo céu
e pelo mar. Em São João, entramos num dia de intensa
luz, depois das chuvas. E comigo estavam Olímpia, Rízzia
e Gracielle, ao mesmo tempo que bons amigos como Jo aquim da
Caixa Econômica, Mário Português e meus cunha
dos, Anderson e Nelmy, todos para dar maior prestígio
ao filho que voltava à casa. Nas ruas, o Lauro, colega
de curso primário, fazia a surpresa com muitas faixas
de saudação, tudo muito grato, bom demais para
os olhos e para a alma.
Visitas, encontros, apresentações, um rememorar
de saudades, o reviver de velhas e bem guardadas lembranças,
uma alegria aqui, uma decepção ali, porque nem
tudo que o coração registra fica imune à
ação do tempo. Jovens transfor mados em velhos,
velhos já não em vida. A paisagem já não
a mesma e, ainda que melhorada pelo progresso, diferente. Não
mais a ponte dos banhos de meninos pelados e jovens lava deiras;
não mais o canavial sem fim; não mais a serra
verdeescura
ligada às nuvens; não mais a igrejinha do alto
do morro, nova em folha; a grama da praça, substituída
por pavimenta ção e postos de gasolina; o matagal
do cemitério já bairro novo. Tudo mudado. Os olhos
procuram, o coração deplora toda a ausência
de eternidade nas coisas e nas pessoas! Quanta falta!
A noite, o lançamento do meu livro, na Matriz, o louvor
dos discursos, as explicações, os abraços,
o rolar de tranquilas lágrimas de gratidão ao
passado, a riqueza das lembranças boas que só
a infância pôde dar, o olhar reverente de jovens
professoras ao camarada da mais velho, amadurecido pelas dores
da vida. Olímpia me pergunta baixinho o que me passa
pela cabeça, enquanto olho a velha igreja, ouço
o antigo sino,
sinto a paisagem pisada por pés descalços em tempo
distante.
O que responder? As coisas que passam pelo sentimento não
podem ser analisadas, não são lógicas.
As imagens são superpostas, principalmente as do meu
pai, ainda novo, do meu avô Vicente, de longas barbas
brancas, e da tia Raquel e de D. Adelina, gorda e clara.
Vem o segundo dia e, enquanto dia, uma viagem pelo Mato Cipó
para visitar os tios Júlio e Diolina, a passagem pela
Lagoa da Viada, pelo rio, pelos mangueiros, a procura de velhas
estradas por onde costumava passar, indo para a casa de Maria
de Silvina, o caminho da fazenda do doutor Osório. A
cada lembrança, uma fotografia, a promessa intima de
pintar
um quadro. Na volta, à noite, depois do jantar, a palestra
na Escola, uma espécie de acerto de contas, um desfiar
de vivos sonhos, um voto de confiança e um incentivo
às novas gerações. Mais tarde, o passeio
pelas ruas, o mingau de milho na sala de jantar de D. Benzinha,
o café com biscoitos a convite do padre João,
madeirense culto, amigo solícito.
Foi durante o café, sentados em duros bancos, braços
sobre uma mesa comprida sem toalha, daquelas feitas com madeira
fornida, que resolvi fazer um comentário sobre meu primeiro
professor, o velho Joaquim Rolla, mestre de régua e palmatória,
de lousa e tabuada, de norma e abecê. Falei da escola,
falei dos alunos, descrevi os objetos. Quando ia mostrar que
me lembrava também dos móveis, Cristovina, a anfitriã,
sorriu maliciosa, e com brilho no olhar me fez arrancar de dentro
a mais querida das lembranças, pois aquela mesa, aqueles
bancos, todo aquele ambiente era a minha primeira sala de aula.
Havia eu, por acaso, me esquecido de que ela era a filha
do professor?
Estava ali o maior presente ao meu coração. .
.
UM
SONHO NA MADRUGADA
Normalmente, chegávamos à casa do professor José
Oliveira Fonseca, na Rua Carlos Pereira, às cinco da
manhã. Todos os dias, de segunda a sábado, lá
estávamos para a aula de análise sintática
e de outras questões mais objetivas da língua
portuguesa. Não éramos muitos, mas, éramos
bastante curiosos e interessados, principalmente o Mauro Lafetá,
o Cor biniano Aquino, o Afrânio Nogueira, o Adil Oliveira
e eu. Eles, candidatos ao vestibular de Direito em Pouso Alegre
ou Niterói;
eu, estudante do curso de Letras, aproveitando a maestria do
professor Fonseca, o melhor que passou pela matéria em
Montes Claros.
Era um tempo excelente, alegre, pleno de maduro entusiasmo,
sonhos de pessoas que, a certa altura da vida, sabem o que fazer
e com que se ocupar. O Afrânio acabava de deixar as aulas
de primeiro estágio do Madureza e já cursava,
à noite, as últimas unidades para enfrentar o
segundo grau, num esforço tremendo de ano e meio entre
a escola primária e a universi dade. O Mauro, com toda
aquela pose que Deus lhe deu, sério, compenetrado, sonhador,
quase já exigia que o tratássemos de Doutor. Era
tudo uma beleza, embora o professor nunca nos tenha dado um
cafezinho para espantar o sono do levantar tão cedo...
Foi por aí, madrugadas em transformação
de aurora, manhãs de gostoso friozinho para pouco agasalho,
que o professor e nós fizemos as primeiras propostas
para a fundação da Faculdade de Direito. Entre
uma análise e outra, entre um verso e um substantivo,
uma nova observação sobre o futuro da segunda
faculdade de Montes Claros. Quem estaria disposto a colaborar?
Com quais advogados poderíamos contar para a formação
do corpo docente? Quem poderia ser o primeiro diretor? Onde
funcionar? Onde buscar apoio financeiro? Eram perguntas e mais
perguntas, tão constantes e tão assíduas
como os próprios formuladores. Não durou muito
tempo a temporada de sonhos e cogitações e, em
menos de um mês, já estávamos, na rua, buscando
apoio, tendo-o encontrado no deputado Lezinho, tio do Mauro
e homem próximo ao Governo, e no Inspetor Zezinho Fonseca,
que ficou mais entusiasmado do que nós próprios.
A luta tomara corpo, criava-se do espírito de séria
decisão. O Mauro cada vez mais encantado e, antecipadamente,
vitorioso.
Iniciamos
as primeiras consultas aos principais advogados, através
de uma comissão - Mauro, Afrânio e eu - num desdobramento
de trabalho feito antes por Francolino Santos e Corby. Ninguém
pode imaginar nem prever as reações humanas e
profissionais diante de um desafio. Quem poderia calcular onde
estaria o interesse pessoal, o desprendimento, o entusias
mo ou, ao contrário, o medo de futura concorrência?
Quem poderia acreditar naqueles sonhadores, querendo fazer as
coisas de baixo para cima, invertendo toda a lógica aceitável?
Realmente, diante da proposta, futuros mestres mostraram-se
ora alegres, ora tristes, na maioria das vezes terrivelmente
irônicos. “Quem” era mesmo que queria fundar
uma faculdade de Direito em Montes Claros? Que saberiam aqueles
três sobre espírito universitário? Loucos,
era o que pensavam que éramos... Por que não iam
estudar por correspondência como fizeram tantos outros,
passeando de vez em quando? Seria mais fácil do que criar
uma escola...
Dois fatores tornaram-se importantíssimos em nossa luta:
O JMC ficou contra, afirmando a não necessidade de formação
de novos bacharéis, o mundo já estava muito cheio
de advogados; apareceram interessados em nosso trabalho o professor
João Luiz de Almeida e os deputados Francelino Pereira
e Cícero Dumont. Doutor João cedeu-nos as instalações
do Instituto para funcionamento da escola e se dispôs
a ser o primeiro diretor; Francelino levou as ideias e os planos
ao governador Magalhães Pinto; Cícero organizou
os estatutos da Fundação.
Ninguém poderia segurar mais. O contra e o a favor estimularam
ainda mais nossa frente de batalha. A reação da
imprensa provocou um desafio, a ajuda dos amigos poderosos deu
o tempero que faltava.
Hoje um final feliz, com a Fadir completando vinte anos! Tenho
bem guardadas as gravações do dia definitivo da
fundação, reunião realizada na Rua S. Francisco,
na Delegacia de Ensino, sala de trabalho de José Monteiro
Fonseca!
FERNANDA RAMOS
Segundo Aristóteles, a grandeza não consiste em
receber honras, mas em merecê-las. E conforme Edith Wharton,
há duas maneiras de irradiar a luz: ser a própria
fonte de brilho ou o espelho que a reflete. Grandeza, honra,
luz, fonte, espelho, reflexo, um universo de palavras indicativas
de valor e mérito. Em todas estas ideias e seus significados
posso emoldurar a mulher corajosa e cheia de ideais, que foi
D. Maria Fernanda Reis de Brito Ramos, Cônsul Honorária
de Portugal no Norte de Minas, minha amiga e mestra de longo
tempo em vários setores da vida.
A mesma D. Fernanda, que era capaz de elogiar sem rodeios ou
demonstrar uma inconformidade sem indecisões. Foi para
esta mulher guerreira, que fizemos uma festa espiritual em comemoração
aos seus oitenta anos, mais do que bem vividos. Multiplicando
os seus janeiros por meses e dias ou por horas e minutos, e
pudemos sempre estar certos de que qualquer medida de sua existência
veio gravada de proveitoso construir, do muito amar, de um esforço
incrível para melhorar a vida e o viver.
Dela
mesma e de muitos.
Dona
Fernanda foi um dínamo sem medida de voltagem, uma criatura
sem limites na busca da perfeição, exigência
própria, exigência com quem estivesse à
sua frente ou ao seu lado. Sempre chuva, nunca neblina, nada
em D. Fernanda foi calma ria, nada. Para ela, a vida foi busca
incessante do que fazer, do como agir, do assinalar exemplos,
uma corrida olímpica de pistas e de pódios. Era
vencer ou vencer!
A Montes Claros chegou D. Fernanda, jovem esposa de Artur Loureiro
Ramos, para ser grandeza do comércio e da indústria,
vivência e trabalho na Casa Luso-Brasileira, centro e
coração da cidade. Universidade de Coimbra, onde
a Faculdade de Engenharia lhe permitiu belíssima formação
intelectual e liderança. Aqui o seu maior contato com
a realidade regional e brasileira, a sua consolidação
no trato de tudo e com todos.
Importantíssimas as atividades de D. Fernanda como líder
elista: conselheira, diretora, presidente internacional. Sempre
presente em encontros regionais e interpaíses, principalmente
em convenções. Como presidente internacional tomou
várias iniciativas de elevada repercussão, valorizando
grandemente o Brasil e Portugal, além de benefícios
aos países irmãos de fala lusitana. Um valioso
exemplo de solidariedade e amor!
Três fatos marcaram definitivamente o seu prestígio:
a vinda do Cônsul Sá Coutinho e esposa na fundação
do Elos de Montes Claros, a homenagem que a dra. Manuela Aguiar,
deputada federal em Lisboa, veio trazer-lhe pessoalmente na
Sociedade das Amigas da Cultura de Minas Gerais e a sua escolha
pelo governo português para o cargo de Cônsul Honorária
no Norte de Minas. Quantos e quantos dirigentes do Elos Internacional
vieram a Montes Claros a seu convite, por força do seu
valor! Lembro-me como se fosse hoje da grande festa de inauguração
do Consulado, na sua antiga residência da Avenida Cel.
Prates, agora Praça Portugal. Muito difícil repetir
o sucesso de D. Fernanda Ramos como o da sua presidência
na ADCE, dias realmente dourados para o prestígio da
instituição.
Com que entusiasmo D. Fernanda planejou, construiu e manteve
o Hotel Fazenda Vista Alegre, local aprazível não
só para hospedagens, como também para realização
de eventos.
Léon Denis, o sábio pensador francês, sempre
achou que não basta crer e saber. É sempre necessário
viver e fazer praticar na vida princípios superiores.
Nossa existência tem que ser alegre, harmoniosa, plena
de bênçãos de paz e de amor, sempre e sempre
despertando esperanças. Não há como negar
ser o amor a realidade mais pujante, porque o amar é
o grande
desafio. O amor deve ser causa, meio e fim. É por isso
e por muito mais que Maria Fernanda Reis de Brito Ramos, nossa
querida Cônsul, Companheira e Amiga, viveu e sobreviveu
em razão dos seus muitos sonhos.
MEU PROFESSOR
JOAQUIM ROLLA
Minha primeira lembrança é do dia em que meu pai
me conduziu para a sua escola, na rua de baixo. Foi no início
de 1942, acredito no mês de janeiro. O mestre Joaquim
Rolla vestia uma bata de professor de cor clara, não
sei mais se branca ou em tom cinza. Um homem alto, magro, rápido
nos passos, olhar firme e penetrante o tempo todo, com uma régua
de madeira, pronta para descer no lombo de quem não estudasse
direito ou não desse as respostas certas nos algarismos
ou na pronúncia das palavras. No bolso, um lenço
grande para secar o cuspe e limpar as lousas que todo nós
tínhamos desde o primeiro dia de aula.
As lousas, também chamadas de pedras, eram de ardósia,
com moldura de tábuas, utilizadas dos dois lados com
lápis do mesmo material. Serviam para escrita de pequenos
textos e principalmente para as contas, somas, subtrações,
multiplica ção e divisão. Os exercícios
eram tantos, que nenhum pai podia comprar todos os cadernos
necessários, naquele tempo muito caros. Com seis meses
de aprendizagem, eu multiplicava e dividia por doze números,
coisa difícil de fazer hoje até com as maquininhas
eletrônicas. As somas chegavam a trinta parcelas, conferidas
pelo menos duas vezes para evitar o impacto da régua
e da palmatória. Só não apanhávamos,
se tudo estivesse certo para merecer nota dez. Um nove dava
puxão de orelha e coques na cabeça.
Eli, filho de João de Bita e de D. Anísia, era
o mais velho da turma. Cristóvão, seu irmão,
sentava comigo na mesma carteira e usava o mesmo tinteiro. Um
grande colega, mas que me atrapalhou, porque eu colava dele,
mesmo não precisando. Durante os meses que estivemos
juntos, eu estudei menos do que precisava. Uma pena, pois depois
dele, nunca mais deixei de ser o primeiro aluno de qualquer
classe, porque estudar muito e caprichar eu sempre soube.
Vou introduzir aqui um texto que escrevi em 1978, quando lancei
em São João o meu primeiro livro, Tempos de Montes
Claros, e narrei uma visita que fiz a Cristovina. Ei-lo: “Foi
num mês de fevereiro, trinta e dois anos depois, que voltei
a rever a minha terra, São João do Paraíso.
Foi bem naquele fevereiro brabo de tantas enchentes, estradas
intransitáveis, com um mundão de dificuldades
para chegar lá, partindo de Taiobeiras. Foi depois de
longa viagem por Valença e Nazaré, por Itaparica
e Salvador, andanças de muito laudar pelo céu
e pelo mar. Em São João, entramos num dia de intensa
luz, de pois das chuvas. E comigo estavam Olímpia, Rízzia
e Graciel le, ao mesmo tempo que bons amigos como Joaquim da
Caixa Econômica, Mário Português e meus cunhados,
Anderson e Nelmy, todos para dar maior prestígio ao filho
que voltava à cidade natal. Nas ruas, o Lauro, colega
de curso primário, fazia
a surpresa com muitas faixas de saudação, tudo
muito grato,
bom demais para os olhos e para a alma.
Visitas, encontros, apresentações, um rememorar
de saudades, o reviver de velhas e bem guardadas lembranças,
uma alegria aqui, uma decepção ali, porque nem
tudo que o coração registra fica imune à
ação do tempo. Jovens transfor mados em velhos,
velhos já não na vida. A paisagem já não
a mesma e, ainda que melhorada pelo progresso, diferente. Não
mais a ponte dos banhos de meninos pelados e jovens lava deiras;
não mais o canavial sem fim; não mais a serra
verde escura ligada às nuvens; não mais a igrejinha
do alto do morro,
nova em folha; a grama da praça, substituída por
pavimenta ção e postos de gasolina; o matagal
do cemitério já bairro novo. Tudo mudado. Os olhos
procuram, o coração deplora toda a ausência
de eternidade nas coisas e nas pessoas! Quanta falta!
À noite, o lançamento do meu livro, na Matriz,
o louvor dos discursos, as explicações, os abraços,
o rolar de tranquilas lágrimas de gratidão ao
passado, a riqueza das lembranças boas que só
a infância pôde dar, o olhar reverente de jovens
professoras ao camarada mais velho, amadurecido pelas dores
da vida. Olímpia me pergunta baixinho o que me passa
pela cabeça, enquanto olho a velha igreja, ouço
o antigo sino, sinto
a paisagem pisada por pés descalços em tempo distante.
O que responder? As coisas que passam pelo sentimento não
podem ser analisadas, não são lógicas.
As imagens são superpostas, principalmente as do meu
pai, ainda novo, do meu avô Vicente, de longas barbas
brancas, e da tia Raquel e de D. Adelina, gorda e clara.
Vem o segundo dia e, enquanto dia, uma viagem pelo Mato Cipó
para visitar os tios Júlio e Diolina, a passagem pela
Lagoa da Viada, pelo rio, pelos mangueiros, a procura de velhas
estradas por onde costumava passar, indo para a casa de Maria
de Silvina, o caminho da fazenda do doutor Osório. A
cada lembrança, uma fotografia, a promessa íntima
de pintar um quadro. Na volta, à noite, depois do jantar,
a palestra na Escola, uma espécie de acerto de contas,
um desfiar de vivos sonhos, um voto de confiança e um
incentivo às novas gerações. Mais tarde,
o passeio pelas ruas, o mingau de milho na sala de jantar de
D. Benzinha, o café com biscoitos a convite do padre
João, madeirense culto, amigo solícito.
Foi durante um café, sentados em duros bancos, braços
sobre uma mesa comprida sem toalha, daquelas feitas com madeira
fornida, que resolvi fazer um comentário sobre meu primeiro
professor, o velho Joaquim Rolla, mestre de régua e palmatória,
de lousa e tabuada, de norma e abecê. Falei da escola,
falei dos alunos, descrevi os objetos. Quando ia mostrar que
me lembrava também dos móveis, Cristovina, a anfitriã,
sorriu maliciosa, e com brilho no olhar me fez arrancar de dentro
a mais querida das lembranças, pois aquela mesa, aqueles
bancos, todo aquele ambiente era a minha primeira sala de aula.
Havia eu, por acaso, me esquecido de que ela era a filha
do professor?
Estava ali o maior presente ao meu coração...
VIAGEM
PARA SALINAS
Era uma alegria sem igual quando meu pai avisava que iríamos
viajar para Salinas, passando primeiro pela fazenda do meu avô
Vicente Arruda, antes de chegarmos a Coqueiros, meio caminho
de São João a Taiobeiras. Minha maior curiosidade
era pensar em ver a espada com que ele brigava quando novo,
uma espada que parecia de prata, com cabo de madrepérola.
Muitos os arranjos para preparar as roupas, os chinelos, alguns
poucos brinquedos que não pesassem muito. Nada mais que
a idade não permitisse.
Para a madrugada de início da viagem, dois ou três
dias antes o trabalho maior era de minha mãe e de Silvina
para os arranjos de sustento, a lata de matula com galinha e
farofa, as
latas de paçocas, cantis com água, os biscoitos
cozidos e assa dos, os espremidos, os fritos, além dos
bolos.
Com ou sem frio, as despedidas, a calma de Tio Abílio,
papai de óculos escuros, chapéu de aba larga e
guarda pó.
Durante o percurso, para o descanso dos viajantes e dos animais,
a parada nos rios, nas lagoas, principalmente quando a fome
chegava. Muita curiosidade quando meu pai queria procurar água
no meio das matas, ao ver as pedras, as cruzes na estrada. Mais
ainda quando da passagem por Taiobeiras, quando víamos
os meninos correndo nos carrinhos, ou andan
do de bicicleta.
Logo após a chegada à fazenda de vovô João
Morais e Vovó Ritinha, a primeira providência era
lavar o rosto com água morna em bacias esmaltadas, enxugando
depois com uma toalha bordada sempre muito bonita. Depois, o
melhor era reparar as panelas de leite, o fazer requeijão,
os varais de carne, as linguiças dentro da gordura, os
chouriços, as mangueiras, a beira do rio. Ainda melhor
o correr para o almoço
coletivo na cozinha grandona cheia de janelas. Era um tal de
esconder a carne debaixo do angu, ou no feijão escaldado.
Fora da casa, a estrada em curva indo para Salinas, a rede em
que vovô João Morais passava o dia e um pedacinho
da noite, as estórias que ele contava, enfeitando cada
passagem para produzir curiosidade e emoção em
novos e velhos, todo mundo sentado ou acocorado para ouvir mais
de perto – causos do coronel Horácio de Matos,
da princesa Magalona, de Lampião, da Coluna Prestes,
quando eles fizeram a maior festa num esconderijo em pé
de serra. Mamãe contava estórias de quando eles
moravam à margem do Rio Pardo e ela nadava levando o
almoço dos irmãos em vasilha presa na cabeça,
o curral, o engenho, a cozinha grandona e o fogão sempre
com lenha seca e muita brasa, o regador para molhar as plantas,
es
tórias de cobras que não morreram quando alguém
batia nelas de vara, e aí, ficava magrinha, esperando
o ofensor para picar,
as lavadeiras, batendo roupa nas pedras para clarear. Peguei
varíola, viajamos de Salinas para São João,
eu enrolado em palha de bananeira, única coisa que não
grudava nas feridas, pois havia bolhas no corpo inteiro. Quando
meu pai e minha mãe chegavam em alguma fazenda para hospedar
eram muito bem recebidos como amigos, mas só até
a hora que me viam doente, aí recebiam o casal, mas ficavam
de longe com medo de contágio. Salvava um em quinhentos.
Só vim sarar depois de dois meses de sofrimentos, tendo
até hoje uma marca na coxa direita.
Foi em Salinas que meu primo Nenzinho me levou para conhecer
e tomar sorvete. Foi lá que vi pela primeira vez uma
revista, a Vida Doméstica. Eu só conhecia jornais,
que eram as
sinados não para leitura, mas para servir de papel de
embrulho nas lojas e nas vendas. Foi em Salinas que vi pela
primeira vez a luz elétrica nas casas e nas ruas. Funcionava
só até às 9 da noite, o mesmo horário
que meu pai marcava para todo mundo já estar dormindo.
Quem chegasse por último, que trancasse a porta. Depois
das nove, a luz era de candeeiro de querosene, de fifó
de óleo de mamona, de lamparina com azeite doce, uma
luzinha só para espantar a escuridão, mais usa
das no quarto de mulher parida, após o nascimento dos
bebês. Lampião com vidro móvel ou Aladim
era só para ocasiões de luxo. O aparelho de rádio
era quase redondo e funcionava com bateria ou uma pilha elétrica
grandona.
HUMBERTO
SOUTO
Tenho obrigação de mostrar conhecimento sobre
Humberto Souto, porque tivemos em comum um bom tempo de vida,
fase de convivência direta, ele 89 dias mais velho do
que eu, ele de junho, eu de setembro de 1934, cinco anos antes
da Segunda Guerra Mundial. Primeiro contato no setor de Contabilidade,
profissão que começamos bem cedo, início
de idade adulta. Ele em um escritório no segundo andar
de um prédio da Rua Simião Ribeiro, eu escriturando
todos os livros contábeis do Banco Hipotecário,
ainda munidos de pena, tinteiro e mata-borrão. Pouco
depois, eu como sucessor dele, fazendo a escrita da Cooperativa
do DNOCS. Tivemos experiências comuns como estudantes
no Colégio Diocesano e Instituto Norte Mineiro de Educação.
Curso de Direito, um distante do outro: ele na Faculdade Brasileira
de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, eu na
Universidade Estadual de Montes Claros.
Ano de 1953, fomos bons companheiros no serviço militar,
Tiro de Guerra 87, esquina da Rua Tiradentes com a Praça
da Estação, alinhamento da Rua Melo Viana, instrutor
Sargento Moura. Humberto, soldado 40, Wanderlino, soldado 89.
Na formação de desfile, um bem longe do outro:
Humberto, mais favorecido na altura, na frente do pelotão;
eu, um metro de sessenta e três, quase no final. Eu, com
toda seriedade possível, aprendendo cada palavra do Sargento
Moura, ele, o 40, brincalhão e gozador, parece o único
tempo em que não foi sério na vida, quando até
emprestar o uniforme para a bagunça de um colega - o
Plampona - ele emprestou.
Não tanto mais tarde, já em nossos 28 de idade,
1962, eleição para a Câmara Municipal de
Montes Claros. Mesma agremiação política,
o Partido Social Democrático - PSD – boa turma
de gente séria (de mais idade, o Cel. José Coelho
de Araújo), Humberto sempre o líder, raciocínio
político perfeito da cabeça e experiência
de Neco Santa Maria. Foi de Humberto a ideia de me eleger Vice-presidente
em 1965 e Presidente em 1966. Vencidos os quatro anos de mandato,
fiz o que pude para ajudá-lo na campanha para deputado
estadual. Mesma ajuda em quatro das suas sete candidaturas para
deputado federal. Em todo o tempo juntos, um dando crédito
ao outro. Humberto sempre com maior autonomia, principalmente
em níveis estadual e federal, verdadeiro sucesso de atuação
política e administrativa, chegando à Vice-presidência
da Câmara Federal, muitas as atuações na
Presidência da Casa.
Em plano federal, Humberto foi membro de dirigente de praticamente
todas as comissões do Congresso, sem dúvida a
grande escola de sua vida pública. Líder do presidente
Fernando Collor, resistiu a todas as perseguições,
fiel em todos os momentos, sendo o seu discurso final, no dia
da destituição, no meu ponto de vista, sua mais
poderosa e vibrante oratória, um discurso para jamais
ser esquecido. Grande atuação como Presidente
do Tribunal de Contas da União, experiência que
ele usa até hoje, perfeição de quem sabe
tudo das contas do setor público, o que lhe permite ser
prudente e de seguro no controle administrativo e contábil.
Concluo, com a segurança de quem pode afirmar, que o
Doutor Humberto Guimarães Souto, montes-clarense nascido
no Corredor do Pequi, em todos os momentos da sua vida foi um
cidadão honesto em tudo que a honestidade pode qualificar
uma pessoa. Não sei e acho que nunca vou saber de um
ato negativo seu em qualquer setor. Montes Claros e todos nós
que amamos a cidade, podemos sempre bater palmas para ele. Nos
dois mandatos de prefeito, foi e será de Humberto a maior
soma de realizações na cidade e no município
de Montes Claros.
Humberto, uma personalidade que será sempre lembra da
com amor e carinho!
IVAN
GUEDES,
O GRANDE BRASILEIRO
Louvemos as pessoas, em primeiro lugar, pelas obras com que
beneficiam o tempo e o espaço e que beneficiam cada movimento
do bom viver e da boa convivência. Consideremos, sobretudo,
seus atos de fé, seus gestos de gentileza, sua atuação
perante a família e os amigos. Consideremos, com o melhor
da nossa consciência, os que vivem sempre para o progresso
dentro e fora do trabalho. Benditos os que permitem a esperança,
os que têm palavras de estímulo, os que são
e que estão no caminho do bem e do socorro ao próximo.
Bem-aventurados os que, mesmo nos gestos simples de cada dia,
se tornam benfeitores, que têm a felicidade não
como estação de chegada, mas como um modo de se
movimentar para o futuro. Para estes, não existem cargas
mais leves, mas sim ombros fortes e apropriados à tarefa
de cada dia; não há ponto final no amor, porque
o amor é vida e a felicidade é o melhor jeito
de ser e de viver.
Mesmo conhecendo com minúcias a vida do amigo e do meu
mais considerado colega de escola, surpreendo-me com “IVAN
DE SOUZA GUEDES, este grande brasileiro”, livro fruto
das pesquisas e da lavra literária da historiadora Zorai
de Guerra David, lente e foco ao mesmo tempo de uma vida cheia
de grandeza, sincero retrato de corpo inteiro para o agora e
para o sempre: Ivan e família – fundamento sólido;
Ivan e Montes Claros, terra dadivosa; Ivan , o empresário;
Ivan e a expansão da Minas Brasil; Ivan e sua inter-relação
humana e comunitária; Ivan nas comemorações
especiais e nas homenagens que tem recebido; Ivan, uma referência
e o reconhecimento público. Tudo de vida e ação,
tudo de fé e esforço, tudo certeza no valor do
trabalho, e acima de tudo, uma confiante esperança de
quem sabe o que quer e a que veio. O importante não é
passar pela existência, é viver!
Ivan, o filho do alfaiate baiano e intelectual Nino de Souza
Guedes e de D. Maria do Carmo, bocaiuvense da melhor estirpe,
excelente mãe de família e educadora; Ivan, o
marido da doutora Mercês Paixão Guedes e pai dos
jovens administradores Leonardo, Lyntton José, Luciano
Frederico e Leandro Ivan, tudo gente do melhor que a vida de
trabalho pode oferecer, uma verdadeira equipe. Em realidade,
uma biografia fértil e bem apropriada diante da riqueza
de informações bastante conhecidas, sempre presenciadas
por amigos e clientes desde a antiga Farmácia São
José, de Juca de Chichico, onde Ivan vendia remédios
durante o dia e aplicava injeções durante a noite,
parte por ser balconista, parte para ganhar mais uns trocados
para ajudar a família e para pagar os estudos no Colégio
Diocesano e no Instituto Norte Mineiro de Educação,
escolas em que fizemos o segundo grau e concluímos o
curso de Contabilidade. Sempre de pé, sempre olhos nos
olhos, sempre se movimentando, Ivan nunca se negou a ouvir um
cliente em necessidade de um conselho ou do aviamento de uma
receita médica. Atendimento nota dez, o selo do sucesso!
Inteligente, empreendedoramente fértil, determinado,
consciente no ser e no agir, Ivan nunca teve um dia sem pro
veito de aprendizagem e da realização do bem.
Sempre ao lado
de Mercês e, ultimamente, dos filhos, cresceu e multiplicou
ao
mesmo tempo em que Montes Claros progrediu em tamanho e em qualidade.
Das pequenas drogarias das ruas D. Pedro II e Camilo Prates,
fincou pé na Doutor Santos com Padre Augusto e, hoje,
lidera o comércio farmacêutico no centro e praticamente
em quase todos os bairros da cidade, cada ponto
comercial com mais recursos e mais modernidade. Viajante internacional
bom observador, soube, juntamente com Mercês, e mais tarde
com os filhos, fazer todas as adaptações que o
seu comércio permitia e o conforto da clientela podia
exigir. O último feito foi a instalação
de uma luxuosa perfumaria, que nada deve à praticidade
e à beleza das encontradas nos modernos shoppings e nas
lojas duty free dos melhores aeroportos do mundo. Progredir
é qualificar-se para o presente e para o futuro.
Bonita, admirável, material e espiritualmente encanta
dora a vida de Ivan, meu companheiro, meu amigo próximo
em quase sessenta anos, seja na escola, seja na vida. Bem sei
das quantas dificuldades teve que superar, do quanto teve que
se
esforçar, do quanto teve que aprender ao longo da vida.
Agora, que Zoraide Guerra David grava em letras e imagens este
por tentoso registro, muito mais justiça será
feita por quem o conhece no dia-a-dia ou por quem tiver notícia
deste livro “IVAN DE SOUZA GUEDES, ESTE GRANDE BRASILEIRO”.
Ivan e sua família têm todos os merecimentos. E
que Deus os conserve sempre e sempre!
A
MAJESTOSA FEIRA
DE CARUARU
Se é maior do que a de Marrocos, eu não sei. Se
é semelhante a um mercado persa, não posso saber,
pois não conheço nem uma nem outra dessas feiras.
Mas de uma coisa eu sei: a feira de Caruaru é ou deve
ser a maior do mundo, maior mesmo do que a Feira de Santana,
na Bahia, um respeitável conjunto de gentes e de coisas
espalhadas por uma enorme praça e um emaranhado de construções,
envoltas e rodeadas por um notável barulho de sons semelhantes
ao burburinho e à algaravia. Diante de todas as outras,
mesmo da de Teresina, a feira de Caruaru merece enorme respeito.
A feira de Caruaru parece aquelas serpentes chinesas, de papel
ou não sei de quê, grandalhonas, intermináveis,
sinuosas e tremelicantes, que nunca acabam, sem começo
e sem fim. Isso mesmo, uma serpente ou um dragão chinês,
bem colorido, brilhantes, de mil facetas e formas, com riqueza
de pororoca misturada com geometria de Serra Pelada, multidão
fervilhante entrando e saindo naquele afã de vender e
comprar, um tupiniquim consumismo independente de qualquer plano
cruzado. A feira de Caruaru é, antes de tudo, viva, vivaz,
estuante de vida e entusiasmo.
Quanta coisa se faz na feira de Caruaru! Lá pode-se comprar
jerimum, umbu, macaco, frango, carne seca, farinha de mandioca
e de coco, cestos, panelas, coités, tapioca, chaves de
bronze, litografias, cerâmicas, tapetes, tudo! Quer consertar
um relógio? Quer cortar o cabelo, depilar, experimentar
um batom? Deseja fazer uma costura, ajeitar um bordado, esquentar
um pedaço de carne, comprar uma pena amarela para fantasia
de carnaval? Até se você quiser uma miniatura de
uma das naves Apolo ou de um esputinique, não tenha dúvida,
vá correndo à feira de Caruaru, porque lá
existe de tudo! Roupas de cama e de mesa, enxovais para batizado
e casamento, gibão de vaqueiro, fio dental, porta-seios,
sungas, anáguas, fitas para penteados, cintos, meias
de homem e de mulher, meias de me ninos e bebês, tudo
exposto à venda!
Na feira de Caruaru pode-se beber e comer, pode-se dormir e
sonhar, pode-se andar e correr, pode-se até ficar parado.
É um espaço enorme, para ver e sentir, fazer,
escutar ou ler poesias de cordel, ter um encontro com os próprios
poetas. De
voto do padim padre Ciço? Milhares e milhares! É
o que mais tem! Nesta época do ano, a feira de Caruaru
tem até chuva, água vinda do céu, milagre,
um grande milagre, para contrastar com o sol do ano inteiro,
ou do século!
Como é linda e gostosa a feira de Caruaru!
FACULDADE
DE FILOSOFIA
Uma recordação forte, muitas lembranças
desde a primeira conversa com Baby e Mary Figueiredo, a inscrição
para o vestibular, as aulas de francês e português,
as idas e vindas à Secretaria para ver Adélia,
e sentir o peso de autoridade de Isabel, eterna diretora que
não sai do nosso coração! Nas salas de
aula, as presenças de gente que ninguém poderia
pensar viver ainda em bancos de escola: Dr. Maurício,
Dr. Mourão, Dr. Hélio Moreira, irmãs do
Colégio, Omar Peres, quanta gente também da Pedagogia,
tantos e tantos nomes de valor!
Inaugurar a FAFIL era quase um abrir de portões do fechadíssimo
Colégio Imaculada para o grande público, principalmente
para os homens, classe que ali não tinha acesso a não
ser quando professores de reconhecida respeitabilidade. Abrir
as portas da FAFIL foi um renovar de atitudes, um início
interessante de experiências, quando recatadas freiras
se sentaram receosas de contaminação com o público
externo, quando moças e moçoilas foram se afirmando
nas primeiras minissaias e uso de linguagem um tanto livre,
em palavras novas da gíria nacional, ideias para época
um tanto avançadas. Além de todas as sensações,
mais a certeza de ser aquela a primeira escola de nível
superior da região, um marco que mesmo os cegos poderiam
ver e contar como escala de progresso. Tudo era motivo de curiosidade!
Creio que o grande laboratório de ideias a usina dos
sonhos tenha sido mesmo as salas de aulas da Universidade Federal
de Minas Gerais, onde moças montes-clarenses terminavam
diferentes cursos, tão distantes uns dos outros que iam
da História à Pedagogia, das Letras à Matemática,
da Geografia às Ciências Sociais. Diplomatas, portadoras
de muito saber e incentivo de antigos professores da capital,
Isabel Rebelo de Paula, as irmãs Baby e Mary Figueiredo,
Sônia Quadros Lopes, Florinda Ramos Marques, Dalva Santiago
de Paula, ansiosa mente, se uniram a outros idealistas, e o
resultado foi o nascimento da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras do Norte de Minas aqui em Montes Claros. Verdade é
que não houve oposição ao seu trabalho
e até não faltou crédito ou aquele sempre
necessário voto de confiança. Todo mundo acreditou
nelas, com o Colégio Imaculada Conceição
cedendo espaço físico e moral, a Fundação
Educacional Luiz de Paula fornecendo recursos e entusiasmo,
professores como Jorge Ponciano Ribeiro, dando logo a sua quota
de serviços.
Foi uma beleza o começo, um sucesso o primeiro cursinho
de Montes Claros. Lembro-me bem, da primeira aula de francês
que tivemos com a professora Baby Figueiredo, com texto solto,
impresso fora de livro, uma novidade! Lembro-me de Adélia
Miranda elaborando, como secretária, os primeiros relatórios,
apertando os primeiros alunos retardatários para não
atrasarem no pagamento das mensalidades ou início das
aulas. Era uma experiência interessantíssima com
passagens de se emocionar!
Era
tanta sabedoria nova, um conhecimento tão organizado,
uma perspectiva de aprendizagem tão grande, que problemas
apareciam a toda hora, todos querendo aproveitar de tudo, sorver
de vez todo um alimento que por não existir antes, estava
sendo negado a quem muito o desejava. Acontecia então
o troca-troca de salas, uma espécie de mineração
de assuntos, um descobrir quem era o melhor professor, um abeberar
de toda uma nova filosofia de vida. Não posso contar
tudo sobre as aulas de nossos cursos, nos primeiros dias do
semestre, porque os acontecimentos vinham aos borbotões,
quase sufocando a curiosidade, até confundindo as cabeças.
Era como se fosse um vasto ciclo de conferências de palestras,
um eterno comício. Hamilton Lopes, calouro, ensaiava
os primeiros passos da política estudantil, João
Valle Maurício, José Nunes Mourão, Hélio
Vale Moreira, Mauro Machado Borges, alunos mais vividos, mostravam
uma compenetração pouco natural de estudantes.
Yvonne Silveira, esta numa santa vaidade de literata, se desmanchava
em sorrisos e sutilezas numa alegria quase infantil.
Tudo foi uma longa festa intelectual, uma corrida de muita sede
à fonte, todos considerando um grande privilégio,
uma oportunidade a mais de vencer na vida, em campos profissionais
já longamente seguidos. Pela primeira vez, vimos professorinhas
ensinando para velho elenco de construtores do futuro!
Olhado de longe, vinte e sete anos depois, quase uma loucura.
Mas que maravilhosa loucura! Que o diga Isabel Rebelo de Paula,
a primeira diretora.
25 DE NOVEMBRO DE 2021
HOJE CEDO, A PARTIDA PARA O MUNDO MAIOR
Um breve “até logo”, minha querida e amada
Olímpia. Um marcante momento de despedida, depois de
mais de 72 anos de convivência, início de quando
você ainda não tinha treze anos e eu ainda não
tinha quinze. Só de vizinhança de travesseiros,
como ela costumava dizer, são mais de 64 anos. Não
sou capaz de dizer de mais Amor ou mais Amizade. O mais firme
e positivo encontro e reencontro e compromisso do ser e do viver.
Eu sempre trabalhando muito, estudando muito, tentando realizar
muito. Você só alegria, sorrisos mais do que sempre,
existindo para criar bem os nossos filhos e dar carinhos aos
netos, agora, em final, também aos bisnetos.
Olímpia, a linda morena de olhos verdes, o bom senso
em tudo. O mais sensato sentimento da razão de existir,
sempre na vontade de Deus. Cada dia é para ser vivido,
sentido, preenchido. Amizade incondicional. Queria que todos
sorrissem, vivessem com alegria. Jamais se considerou melhor
do que qualquer outra pessoa, mesmo as mais humildes ou mais
modestas.
Tinha
muita noção de hierarquia, mas não considerava
ninguém melhor do que o outro. O que contava era forma
de ser e de agir de cada um. Valia sempre o bom trato, a finura
de tratamento, a capacidade de trabalho. Cargos para ela era
só
encargos. Valia a atuação.
Amizade com todas as pessoas, em casa, no trânsito, em
todos os lugares, principalmente nas viagens, mesmo nas internacionais.
Viajando do Canadá para os Estados Unidos, ela sentou-se
ao lado de uma senhora italiana, entenderam-se tanto, mesmo
não falando uma a língua da outra, a italiana
ficou tão amiga de Olímpia, que quando veio ao
Brasil, passou um dia aqui conosco em Montes Claros, um momento
de intensa alegria.
Grande capacidade física e espiritual para enfrentar
situação difíceis. Sempre com fé.
Grande poder de adaptação, fosse em família,
com as amigas, em reuniões institucionais, no exterior.
Foi assim em Portugal, na França, na Itália, no
Uruguay, na Argentina, no Paraguai, na Bolívia, no Panamá,
no Canadá, principalmente nos Estados Unidos, que conheceu
praticamente de ponta a ponta. Centenas de reuniões,
sempre a mesma Olímpia, segurança e simplicidade.
Lembro bem da nossa participação de um Congresso
do Rotary International/Nações Unidas, em Buenos
Aires, ela viveu e conviveu com grande alegria, com absoluta
simplicidade e firmeza. No mais famoso teatro da América
do Sul, o Colon, quando chamei a sua atenção sobre
a importância de estar mos ali, ela somente brincou: ”E
daí?”
Foi uma grande conselheira, falando tão diretamente ao
coração das pessoas que a procuravam, que ela
mesma ficava
admirada de como surgiram tantas palavras de valor.
Jamais contou vantagens, em qualquer época da vida. Para
tudo, sempre houve uma razão de ser. A vida sempre uma
missão divina, uma obrigação a ser cumprida.
Sempre encantada com a beleza das crianças, a inteligência
delas, a espontaneidade. Quase todos os dias eu mostrava para
ela, no computador, a beleza infantil, e ela adorava cada foto,
conversava com elas, em tom de carinho, como se fossem reais.
Todo encantamento com a beleza.
O que mais me encantava em Olímpia era a gratidão
que ela tinha pela vida. Uma fé em Deus, com toda a harmonia
do ser e do viver! Que as nossas lembranças, minhas como
eterno companheiro, de todos os amigos e admiradores, seja a
da alegria, do contentamento de ser como era e queria ser, uma
pessoa do bem e do amor! Por tudo isso e por muito mais, os
meus mais profundos agradecimentos ao Pai Celestial por essa
maravilhosa temporada de vida ao lado dela. Muitas as esperanças
de novas oportunidades e novas chances de aprender mais.
No momento em que Wladênia julgou necessário levá-la
para a Santa Casa, ela, ainda deitada, olhou-me com firmeza,
e eu a vi, com seus olhos verdes, com a beleza máxima,
como eu nunca havia visto nos 72 anos de convívio. Era
a hora da despedida, do meu sentir e viver o mais eterno e verdadeiro
amor.
Uma luz mais do que mágica!
Meu bom Deus, receba Olimpia com toda a claridade e a força
da tua Luz e do teu infinito Amor. Sabemos, Senhor, Tu e eu
que ela muito merece!
Este
livro foi impresso em Montes Claros/MG, no ano
de 2025. Miolo com fonte Cambria, tamanho 12
e título com fonte Balerga, tamanho 20,
em papel Ap 75g e capa em papel triplex 250g

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