dsgfs
curricilo
 


Copyright by © 2025 Wanderlino Arruda

Não é permitida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada, em língua portuguesa ou qualquer outro idioma, sem a permissão do autor.


FICHA TÉCNICA

Coordenador Editorial: Editora Millennium | Planejamento Gráfico: Dayana Martins | Revisão de Textos: Júlia Maria Lima Cotrim.

FICHA CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)
ARRUDA. Wanderlino

A773d

Doces Lembranças. Wanderlino Arruda. Prefácio de Petrônio Braz. Montes Claros / Minas Gerais. Gráfica Editora Millennium Ltda. 2025.

164 p.
ISBN:

1. Literatura Brasileira 2. Montes Claros - Minas Gerais
I. Wanderlino Arruda II. Título


APRESENTAÇÃO

Durante toda a nossa existência, aprendemos que o livro é um veículo de difusão do conhecimento cultural em todos os seus segmentos e, em razão disso, estamos promovendo a criação deste consórcio com o objetivo de facilitar a sua publicação pelos nossos associados. Por outro lado, queremos muito agradecer aos participantes desta terceira edição do Consórcio Literário do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, pela compreensão em pressupor que os créditos depositados em nosso empreendimento editorial valorizarão as referidas publicações no seio de nossa comunidade. Nota-se que a presente empreitada tem como objetivo principal a divulgação das nossas tradições e dos nossos costumes, com resgate perene da nossa história. Este é o oitavo volume da coleção: Doces Lembranças de Wanderlino Arruda.

José Francisco Lima de Ornelas
Presidente do IHGMC


Membros do Consórcio Literário do IHGMC
Cota do IHGMC:
Landulfo Santana Prado
Cândido Canela
Lázaro Francisco Sena
Dário Teixeira Cotrim
Leonardo Alvarez Rodrigues
David Ferreira dos Santos
Mara Yanmar Narciso da Cruz
João Nunes Figueiredo
Maria da Glória Caxito Mameluque
José Francisco Lima de Ornelas
Wanderlino Arruda

SUMÁRIO

Prefácio - 7
Rua Quinze - 11
João Morais, Meu Avô - 14
Lembranças da Rua Quinze - 17
Meu Pai, José Arruda - 20
Dona Anália Morais, Minha Mãe - 24
Silvina Melana, Segunda Mãe - 28
Tia Honorina - 32
A Alegria do Monsenhor - 35
Tio Abílio Morais - 38
A Voz Gostosa de Edite Piaf - 41
Adélia Miranda, 45 Anos de Fafil - 44
Aventura Antes do Natal - 47
De Lisboa - 51
Dez Anos de Tintas e Pincéis - 54
É Bom Falar de Marília - 57
Fernão Capelo Gaivota -
Fundação Burarama - 63
Hermes de Paula e o Foclore - 66
Haroldo, Barão de Grão-Mogol - 69
Hotel São José - 72
Manoel Quatrocentos - 75
Memórias de Adriano - 79
Mestre Doutor João - 82
Momentos de Luiz de Paula - 85
Dona Dina Paulino - 87
Na Venda do Meu Pai - 90
O Bar Guarani de Vadinho - 94
O Dia em que Chiquinho Sumiu - 97
O Professor Pedro Sant’ana - 100
O Mulo Darcy Ribeiro - 103
Onde o Amor é Maior - 106
Por que São Tomé? - 109
Primeiros Passos - 112
Professor Zeca - 115
Reivaldo e os Arquitetos - 118
Rotary Clube Montes Claros-Norte - 120
Roubaram de Novo o meu Toco - 122
Saudades da Irmã de Lourdes - 125
Saudades do Mercadão - 128
Tempos de Cassino - 131
Tio Armindo Morais - 134
Um Presente para o Coração - 136
Um Sonho na Madrugada - 139
Fernanda Ramos - 142
Meu Professor Joaquim Rolla - 145
Viagem para Salinas - 149
Humberto Souto - 152
Ivan Guedes, o Grande Brasileiro - 155
A Majestosa Feira de Caruaru - 158
Faculdade de Filosofia - 160
25 de Novembro de 2021 - 163

PREFÁCIO

Chega uma época em que nos damos conta de que
tudo o que fazemos se transformará em lembrança um dia. É a maturidade. Para alcançá-la, é preciso justa mente já ter lembranças. - Cesare Pavese.

Prefaciar é falar antes, dando ao leitor uma noção conceitual do que vai ler. Na reunião de congraçamento da Academia Montes-clarense de Letras, realizada no dia 28 de dezembro de 2024, o acadêmico Wanderlino Arruda entregou-me os originais de sua nova obra literária, “Doces Lembranças”, um livro de crônicas, com uma solicitação de apresentá-lo aos leitores. Uma responsabilidade, que se duplica, por ser o autor um dos expoentes máximos da literatura mineira contemporânea, cujos méritos literários estão consagrados. É
escritor, palestrante, advogado e professor. Tem curso de Con
tabilidade, Letras e Direito, com pós-graduação em Linguística, Semântica e Literatura Brasileira, com especialização em Comunicação Social e Metodologia de Ensino Superior. Duas vezes presidente da Academia Montes-clarense de Letras, é vitalício no cargo de presidente de honra. Foi presidente da Câmara Municipal de Montes Claros (1966); secretário municipal de Cultura (1996) e presidente do Patrimônio Histórico e Cultural de Montes Claros. Sua biografia é rica. Muito teria que ser escrito sobre ele.

Na altura dos meus 96 anos de idade, a fruição verbal está necessariamente reduzida. O tempo é ingrato. Passa despercebido, mas deixa marcas. O imortal Luiz de Paula Ferreira definiu o tempo como “um estranho pássaro que voa de asas leves, as penas da cor do vento”. A solicitação, por si mesma, renovou minhas disposições, apagou as marcas do tempo predispondo-me a atender ao pedido. É o que faço. As lembranças de tempos pretéritos nos trazem a reprodução de fases da vida, que muitas vezes estão esquecidas, congeladas nos esca ninhos da memória.

Lembranças são aves em revoada. Já no dia seguinte, de pois do café da manhã, comecei a ler as lembranças de Wanderlino. Ele veio para Montes Claros na força de sua juventude e guarda recordações, que são um patrimônio seu. Começa por nos levar de volta ao romantismo do footing da Rua Quinze, nas primeiras horas da noite. O pensamento é insubstancial, ele é uma evocação mental interna e silenciosa.

Wanderlino, como uma necessidade de dizer o passado, faz um retrospecto e fala, em uma sequência natural, de passado ainda mais remoto, em São João do Paraiso. Levado pela força do pensamento, informa seu pai José Arruda e sua mãe Anália Morais, nos dando conhecimento de que sua mãe era “neta de índio”, mostrando a presença do caldeamento racial, presente na formação do povo brasileiro. Fez-me lembrar que minha avó materna era negra. Ele traz à lembrança pessoas outras, que integraram seus primeiros anos de vida.

Em presença da autonomia das crônicas, ele retornou no tempo, na evolução de seus pensamentos, e revive o período de estudante no Colégio Diocesano, em Montes Claros.

Mas o pensamento voa e logo ele está de volta à sua infância e relata viagens a cavalo de São João do Paraiso a Salinas. Uma aventura descrita com perfeição literária.

As recordações de Wanderlino não trazem uma sequência temporal. Ele vai e volta resgatando suas memórias, as boas lembranças que trazem saudade, ou, como ele mesmo afirma: “fala mais ao coração, transubstancia sentimentos, vale pela carga ou sobrecarga de afetividade.”

Ele não traz apenas lembranças, mas também afirmação de suas atividades artísticas como pintor. Essa afirmação vem em forma de lembrança de como tudo começou. O passado afirmando o presente. “Quando estou pintando, as horas passam como verdadeiros sonhos, interessantes. Cheios de gratificação mental, gostosas mesmo.”

As lembranças de Wanderlino são histórias de vida. Ele lembra Hermes de Paula e afirma: Creio que falar de Hermes de Paula, sua vivência, seus costumes, suas gentes, é o melhor caminho para a construção do edifício histórico de Montes Claros.” Nas suas lembranças, ele comenta livros e fala de escritores outros, entre eles Luiz de Paula, lembrando do livro “Momentos”. Uma recordação valiosa. Nos traz à lembrança Darcy Ribeiro.

Quando ele fala do prof. Pedro Sant’ana veio-me à lembrança que ele foi meu professor no curso de História da CADES, para formação de professores, no início dos anos 60 do século passado.

Não passou despercebida a recordação, que é de todos nós, maiores de 30 anos, do Velho Mercado da Praça Dr. Carlos.

Enfim, tenho certeza de que os leitores irão se incorporar em
muitas de suas “Doces Lembranças”.

Ele conclui com um sentimento melancólico, com uma lembrança, que nunca se apagará de sua memória. Encerra o livro com um “até logo” à sua esposa e nossa amiga Olímpia.

Petrônio Braz (*)


RUA QUINZE

Era a gente mais bonita e mais falante que havia na cidade, nos anos cinquenta, a gente da Rua Quinze, naquele trecho que ia do antigo Clube Montes Claros, hoje Conserva tório Lorenzo Fernandez, até a esquina da Rua Doutor. Santos, no bar de Manoel Cândido, e Hotel São Luís, transformado em Caixa Econômica e, depois, em Copasa. Pela única pista calçada da cidade, andavam as moças mais atraentes e os rapazes mais bem vestidos, mais bem postos na vida, seguros candidatos ao namoro, ao noivado e ao casamento. Assim como uma sala de visitas ao ar livre, a Rua Quinze era uma eterna passarela, principalmente ali pertinho do Clube dos Bancários, em frente à Casa Ramos, à Casa Alves, onde as esquinas eram muito mais claras, iluminadas pelas vitrines de luz branca, naquele tempo um grande luxo. Lá pertinho estavam o Cine São Luís, os bares, os salões de sinuca, as sorveterias. os melhores salões de bar beiros, os bancos, as lojas mais ricas.

Quando cheguei, em meados de janeiro de cinquenta e um, só se falava no Capitão Enéas, o novo prefeito que ia tomar posse, e os alto-falantes não gritavam outra coisa. O Colégio Diocesano já estava quase terminando o curso de admissão, Restaurante Valério marcava uma época de grande fama, e as lojas de discos da Praça Dr. Carlos já faziam grande estar dalhaço com o baião “Delicado” tocado dia e noite. Destinado a trabalhar como engraxate no Salão Rex, Antônio Guedes não me aceitou porque eu já não era tão menino como ele espera va e, além disso, já falava um pouco de inglês e - segundo ele - não ficava bem em serviço tão humilde. A segunda possibilidade era trabalhar na Casa Leda, de Marcelo Alcântara, mas como Marcelo ia viajar uma semana inteira, não pude esperar, porque também podia não dar certo. Aí, o Dr. Carlyle Teixeira me levou para apresentar a J. F. Rodrigues Correia, dono da Imperial, loja mais grã-fina da rua e da cidade, onde, já no dia seguinte, engravatado, camisa branca e calça azul, iniciei um período de aprendizagem sob as ordens do gerente Antônio Chamone.

Na frente da Imperial, as lojas de José Alves e de Artur e Antônio Loureiro Ramos. Do outro lado da esquina, a Pernambucana, na Rua Camilo Prates, por onde passaram várias farmácias. Vizinha, de lado, a Gazeta do Norte, de Jair Oliveira, a Rádio Sociedade, de Zezinho Fonseca. Chamone começou me ensinando que balconista não podia ficar sentado, não podia encostar nas prateleiras ou no balcão, não podia parar tempo nenhum, todo momento deveria ser de trabalho, arrumando, limpando, quando não houvesse fregueses. Na loja de louças e de vidros, se quebrasse alguma coisa teria de pagar. Fumar, só se fosse no banheiro. Perfume, só usar se fosse do vidro de amostras. No primeiro dia, bati o pé em uma bateria de cozinha, que ficava na porta, e as panelas e caldeirões foram para o meio da rua. Nunca me esqueço do grito de “bota na minha conta” que o Afonso André Rodrigues gritou de lá de Casa Luso-Brasileira, e do pessoal da Gazeta que saiu para ver o que acontecia. Foi uma aventura maluca. . .

Gozado, que por ter eu só duas calças, duas camisas e uma gravata, a Rua Quinze para mim só valia pelo que tinha nas horas do dia. A noite, na verdade pertencia aos bem vestidos, a quem tinha dinheiro para passar pela sorveteria, bancários, comerciários mais velhos, filhos de comerciantes, estudantes ricos, sócios dos clubes. É que o brilho da noite nunca pertenceu aos deserdados e iniciantes. Para o pobre, a noite foi sempre hora de dormir, ou de ler bons livros, como eu fazia. E ainda bem...


JOÃO MORAIS, MEU AVÔ

De todas as pessoas que tenho conhecido mais de perto, o
velho João Morais, meu avô, parece ter sido o único homem a viver oitenta e muitos anos de alegria em tempo integral. Era assim como se tivesse carteira assinada numa firma de felicidade, com todos os direitos, menos o de ficar triste e de deixar de ser alegre. Era, não tenho dúvida, como um Papai Noel de ano inteiro, a distribuir presentes de fraternidade a todas as criaturas. Fazia ele da convivência de todos os dias um painel harmonioso e de rica sabedoria.

Conheci-o desde os meus primeiros anos, em sua fazenda perto de Salinas, numa casa-sede que ficava rodeada de pomar e jardim, entre o “Ribeirão”, de águas cristalinas, e a estrada principal, onde ninguém tinha direito de passar sem uma visita ainda que ligeira. Ali, cada visitante era recebido prazerosamente e, depois dos cumprimentos de praxe, levado para lavar a poeira do rosto, tomar café-com-leite e biscoitos
de tapioca e participar de uma gostosa conversa. Sabendo divi
dir bem as horas de trabalho nas pastagens e na lavoura, vivia
animadamente para o trato com as pessoas, contando estórias, relatando casos, recriando-os com enternecedora vontade de transmitir felicidade.

Vovô foi, acima de tudo, um homem bom, o leme para muita gente neste mundo, que aprendeu com ele a andar no caminho certo, pois conselheiro melhor não havia naquele pequeno grande sertão entre Rio Pardo e Salinas. Era um velho forte e musculoso, vermelho como um europeu, e tinha os cabelos brancos e fartos, que lhe davam um ar de juventude bem conservada e um enorme halo de simpatia. Quando eu era pequeno, pensava que sua cabeça havia embranquecido pelo rigor do sol dos canaviais, onde trabalhou até poucos dias antes de morrer. Eu achava que ele tinha vindo aprimorar o mundo e as criaturas, num esforço de nunca parar, pois nem a doença que o acompanhou anos a fio o modificou em seus hábitos de homem feliz. Vi-o, muitas vezes, voltando à tardinha, enxada ao ombro, embornal pendurado no pescoço, sorriso de ponta a ponta, a cantarolar algumas de nossas modinhas prediletas.

Todas as noites, após o jantar com toda a família - ninguém podia faltar - deitava-se numa rede amarelecida de tanto uso, e o antigo violão passava a centralizar as atenções, numa suave evocação de lembranças e saudades, que só terminava bem tarde, quando o cansaço vencia e todos iam dormir. João
Morais, meu avô, nasceu bem longe, na velha Bahia, pelas ban
das de Caetité, creio, num dia de festa até da natureza. Desde rapaz, tropeiro de profissão, viveu a vida dos campos e das estradas, dormindo ao relento, comendo feijoadas com rapadura e farinha de mandioca, e respirando o sereno de todas as madrugadas. Ele mesmo contava que foi naquele tempo que conheceu uma moça morena e bonita chamada Ritinha, neta de índios, de quem, seis meses depois do primeiro encontro, ficou noivo, e com quem, um ano mais tarde, se casou. E foi vendo a casa cada vez mais cheia de filhos e netos, fazendo e refazendo festas, que viveram mais de meio século em harmo nia muito perfeita.

Não assisti, mas dizem que ele morreu conversando e sorrindo, como costumava fazer durante todos os dias da vida, pedindo a todos para não chorar ou sentir tristeza. Embora sertanejo e de poucas letras, foi um romancista verbal, narrador inigualável desenhista de perfeitos quadrinhos existenciais de humanismo puro e sincero. Na verdade, meu avô tinha uma experiência de vida, uma habilidade diplomática, uma riqueza de inteligência e bondade, dignas de muita admiração.

Ninguém que o conheceu deixa de dizer que ele era um velho
alegre e agradável, verdadeiro construtor de amizade, sempre
ouvido com interesse e prazer.


LEMBRANÇAS DA RUA QUINZE

Dentro do possível, tenho procurado escrever sobre pessoas e fatos ligados à recente história de Montes Claros, com os acontecimentos e os lugares de alguma forma jungidos à minha própria experiência. Isso, nos últimos quase trinta e seis anos, desde a noite em que cheguei de Taiobeiras numa carroceria do caminhão de Dudu Cunha e fiquei hospedado na Pensão de Dona Ismênia, ali pertinho de onde fica hoje o posto de Antônio Barreto, na Praça de Esportes. A primeira aventura foi exatamente no dia da chegada, quando, para marcar o terreno, percorri cautelosamente alguns pedaços de ruas, indo e voltando atrás para não correr o perigo de me perder e ficar, depois, envergonhado. Nesse vai-e-vem, o mais longe que fui foi até o Restaurante do Valério, na Simeão Ribeiro, onde paguei vinte e cinco cruzeiros por um jantar, um preço tão caro para aquela época, que me expulsou por muitos anos de qualquer casa de pasto mais grã-fina.

À Rua Quinze não consegui chegar, naturalmente intimidado pela clareza das luzes, pelo pessoal desinibido, bem-vestido, gesticulante, demasiadamente alegre, que eu podia reparar de longe. Passear por lá, no primeiro dia de Montes Claros, seria uma façanha fora de pretensão para quem chegava com rou pas feitas por alfaiate de província pobre e sapatos com exces
so de meias-solas. Não dava, não dava mesmo! Por isso, deixei
para o dia seguinte, no horário de trabalho, que aí a cidade é de todo mundo e a beleza das pessoas causa menos impacto, sem os perfumes, sem a performance dos momentos de ócio, sem o burburinho das horas de passeio grã-fino. A Rua Quinze que eu vi, pela manhã, era uma rua bem diferente, bem mais vazia, embora ainda tivesse muita gente despreocupada a discutir política e futebol, a seguir, com olhos cobiçosos, uniformizadas donzelas de longas saias azuis e cabelos de tranças.

Foi depois de contar estórias da vida na Rua Quinze, que tive a grata alegria de receber uma carta do meu colega e amigo Nicomedes Almeida Teixeira, ministro-chefe da Secretaria da Fadec, companheiro de muitas lutas na Fafil, em quatro longos anos do Curso de Letras, quando frequentou minhas aulas de português e de linguística. Se a lembrança dos meus dias de Rua Quinze era um gostoso desfiar de saudades, a carta do Nicó me veio trazer uma suave afirmação de compromisso com o passado, uma certeza de que nenhum ato de nossa vida, simples ou sem importância, passa esquecido ou desfigurado de valor, sem o mérito do ter acontecido. Não vou interpretar a correspondência do meu intérprete. Passo-a ao leitor assim como chegou às minhas mãos. Tem o gosto de um grande amor a Montes Claros e ao tempo de nossa mocidade.

“Amigo Wanderlino, ao ler o seu artigo publicado, no domingo último, intitulado “Rua Quinze”, não pude deixar de me envolver em uma onde nostálgica, pois ali passei boa parte de minha infância. Em fins de 1951, meu pai comprou, em sociedade com mais dois irmãos, o Big-Bar, ponto de encontro obrigatório para os boêmios da época. Ali passei momentos marcantes em minha vida, discutindo futebol, convivendo com os artistas de rádio trazidos à cidade pelo Airton Serpa, vendo os cartazes de cinema colocados na calçada da loja de “seu” Ramos. Embora criança, vivia o movimento noturno da Rua Quinze, auxiliando meu pai no bar, ou frequentando o salão de sinuca do Tio Hélio (não havia ainda rigor no policiamento a menores).

Tempo bom que me voltou à memória graças a você. Você se lembra do Bolo Esportivo, do Serpa? Dos bailes de carnaval do “Clube dos Bancários?” Quando o “footing” da Rua Quinze acabou, foi como se apagassem as luzes de uma parte da cidade. Os outros “footings” nunca foram os mesmos (ou será que foram as luzes de minha infância que se apagaram, em parte?). De toda forma, o seu artigo me fez reviver esse tempo, tempo bom! Obrigado”.

E você, leitor, está com saudades também? Nunca houve tempo melhor!


MEU PAI, JOSÉ ARRUDA

Faço contas nos minutos e horas da minha vida, revejo esmaecidas ou vivas imagens, tento magnificar pequenos acontecimentos e, pronto, a figura de José Arruda, meu pai, se põe sonora e colorida à minha frente. Convivência de várias décadas, disciplina rígida no início, amenos conselhos em meio e fim de vida, sempre marcante influência. Mais do que tudo um rigoroso exemplo de honestidade a qualquer tempo, seja em temporada de quase opulência, seja nas dobras do passar de tempos em adversidade. Era um viajante faminto de estradas, sempre saindo e chegando: a cavalo, em fordinhos, em caminhonetes e caminhões, em velhas jardineiras ou em ônibus já quase modernos.

Lembranças mais antigas? Ele com um bule esmaltado azul, despejando o café num copo grandão, também esmaltado e de asa. Com o café, comia alegremente biscoito fofão, rosca caseira e o cuscuz que Silvina tinha de levantar bem cedo para fazer. Nos dias de frio ou de chuva, saia do quarto já com uma capa colonial pesadona, tão comprida que passava dos joelhos.

Aos sábados, atrás do balcão da loja sortida de tudo, atendia os fregueses, vestindo um casaco de pijama, que achava a coisa mais chique do mundo. Lembro-me até da cor, um cinza esverdeado com desenhos em relevo, um bolso para caneta e lápis e dois outros para as tesouras. Nem no horário do almoço pa rava de vender. De cada amigo que atendia havia estórias para ouvir e contar. Aprendi ali as minhas primeiras lições de vida. Como morávamos em frente ao mercado, dava para ver até o fim da tarde, a feira cheia de carros de bois e de cavalos com cangalhas sem bruacas, segundo se dizia a mais rica da região.

Homem em tudo avançado no tempo, minerador de pedras e pepitas de ouro nos garimpos da redondeza, descobria também todas as novidades que São João do Paraíso nem podia sonhar. Já em 1938, meu pai tinha máquina de escrever, geladeira a querosene, lampião Aladim, aparelhos de gilete, uísque Cavalo Branco, casimira Aurora, camisa de colarinho trubenizado, barbeadores com gilete já cortando dos dois la dos. Quando de folga, lia em voz alta um livro de geografia com perguntas e respostas e ouvia um rádio de bateria, que fazia mais ruído que uma noite de tempestade. Em 1942, quando fui para a escola do professor Joaquim Rolla, todo o meu material escolar, inclusive a ardósia, era importado, com o “made in Germany” ou “made in England” me dando agradável sensação de importância, compensando até a minha pouca habilidade no mergulho no rio e nas bolinhas de gude.

Claro que as invenções do senhor José Arruda não ficavam só nos objetos de consumo e exibição. Era comprador e vendedor de peças de ouro, pedras preciosas, moedas, velhos relógios de parede, desenhos de nanquim, todo tipo de relíquias e quinquilharias, incluindo aí punhais de bronze e de prata. Foi minucioso o seu planejamento e realização da nossa primeira viagem de turismo: preparou, com absoluto conforto e decoração, um enorme carro de bois, com um guia andando a pé, que nos levou – ele, minha mãe, Nair, Dercy e eu – para uma visita a Condeúba, na Bahia, onde ficamos hospedados numa casa de três moças muito bonitas e de fino trato. Foi lá
que minhas irmãs e eu experimentamos pela primeira vez o gosto de azeitona e leite condensado… Pelo menos duas vezes
por ano, fazíamos viagens às fazendas dos velhos Vicente Ar ruda e João Morais, quando nossas avós Senhorinha e Ritinha se desdobravam em ordens para o capricho das cozinheiras no fogão a lenha e no forno. Para as visitas a melhor galinha ao molho pardo e o melhor bolo de farinha de trigo ou de mandioca puba, coco ralado por cima.

Quando moramos em Coqueiros, foi grande a sua luta para que eu aprendesse a tocar cavaquinho. Chegou a contra tar um professor particular com várias horas de aula por dia. Mas não passei da primeira posição, aquela em que a gente firma as cordas com os dedos da mão esquerda e sacode os da direita para tirar os sons do “besta-é-tu”. Valeu, porque aprendio do, ré, mi, fá, sol, lá, si, tornando-me quase um intelectual em música. Foi voltando de Coqueiros para o São João, em 1941, que vimos e ouvimos passar o primeiro avião, um barulho de assombrar todo tipo de viventes. A notícia que correu depois é que haviam morrido duas pessoas: um rapaz correndo de medo, caiu numa cisterna, e uma velhinha que, assando biscoitos, resolveu se esconder dentro do forno em brasa. Duas vítimas do progresso dos tempos de guerra…

Agradeço muito a meu pai por todo tempo de convivência direta e indireta: das jabuticabeiras que ele arrematava para a gente chupar jabuticabas até ficar entupidos, dos balaios de marmelo maduros e cheirosos que trazia das viagens ou comprava na feira, das casas com quintais grandes que ele comprava para vivermos divertindo. Agradeço mais ainda dos seus sonhos de conhecer mundos distantes, tão bem transmi tidos aos filhos que hoje realizam o que ele não pôde realizar!


DONA ANÁLIA MORAIS,
MINHA MÃE

Filha de João Morais e Ritinha, que era neta de índia, era natural do vale do Rio Pardo e crescida em travessias, tão boa em natação que carregava os filhos nas costas sem qualquer sacrifício. Os filhos e a cesta do almoço que ela levada, com rodilha na cabeça, para os trabalhadores do outro lado do rio. Sempre jovial, de menina a moça, considerava-se campeã de danças para qualquer toque, a exemplos das cinco irmãs e quatro irmãos, só gente entusiasmada, porque viver é demonstrar alegria no descanso e no trabalho. O pai, homem de músicas e cantorias, a mãe, gerente em todas as ações, da
cozinha ao pomar, do bater roupas no rio ao cuidar das hortas,
tudo escola para futuros administradores dos negócios e das
famílias.

Nunca vi minha mãe parada, a não ser nas de horas de rezar com o terço azul esmeralda, as contas passando devagarinho pelos dedos acredito até calejados. Cada dia de vida começava com a fumaça do cuscuz e o crepitar da lenha no fogão do café e o forno com os biscoitos. Chegado o leite do curral, era parte para a leiteira, parte para a despensa, destinado aos queijos, aos requeijões, aos doces caramelados com a maior gostosura do mundo, que só mineiro sabe fazer e guardar.

Dona Anália sabia cozinhar, assar, costurar, bordar, fazer
rendas para qualquer tipo de enfeites, mestra de belezas em
enxovais ou coisas do dia a dia. Lindas as suas toalhas, boni
tonas as colchas, importantes as blusas e os chales. Para as
horas da missa de domingo, até as fitas que ela ajeitava eram
chamativas, maravilhosas de causar inveja.

Dona Anália sabia ser amiga em todas as horas, cuidando de visitar e receber visitas, de amar e ser amada, admirar e ser admirada. Muita a sua simplicidade, sorrisos contidos, fala moderada, o olhar sempre direto nos olhos das pessoas, nunca muito alto por não ser arrogante, nunca tão baixo, porque jamais tímida. A forma que ela tinha mais no ser gentil era dar às pessoas alguma coisa de comer, principalmente aos filhos e netos. Era chegar a sua casa e só esperar um pouquinho, lá vinha um biscoito cozido e assado, um beiju, um pedaço de bolo, uma canjica, um manuê, um pão sovado, tudo feito por suas habilidosas mãos. Parece até que ela achava que a gente mastigando e engolindo, realizava a alegria da vida e do amor. Tudo parecia que era feito só para nós, presente especial guardado para marcar presença.

Nunca ouvi minha mãe cantando, que cantar nunca foi vocação da família. Jamais a vi solfejando ou assoviando. Jamais a vi em riso alto ou solto, pois de satisfação contida, educada, nos bons costumes. Sua alegria, sem tocar nas pessoas, era marcada só por um leve sorriso, um brilho intenso
nos olhos e no jeito de olhar. Nunca a ouvi dizer que alguém não prestava, que era ruim, pois sabia encontrar qualidades em todas as criaturas. Assim, não me consta ter tido qual
quer inimigo, alguém contrário aos seus interesses. Desejo de ser rica? Não e não, queria apenas ter o necessário para viver com certa fartura e segurança, o apropriado para criar bem a sua dúzia de filhos, muito embora só nove sobreviventes. Enfim, Dona Anália, uma grande, legítima e importante mulher mineira e brasileira!

Minha querida, Dona Anália Morais, quero dizer-lhe o que honestamente todos os filhos e filhas deveriam pensar e dizer de suas mães, mulheres criadas por Deus para dar sentido à vida e à luz do Amor, a verdadeira poesia da Criação. Os parágrafos seguintes, escrevi-os em forma poesia, agora trans formados em prosa. Acho que são perfeitamente válidos para um amor de mãe. Ei-los:

Amarás e servirás incessantemente, todos os dias da tua vida, eis o teu poder, a tua convicção, o teu trabalho santificado. Os teus gestos serão sempre movimentos de encanto, busca de paz, homenagens sinceras a Deus por ter permitido a vida a ti mesma e a teu filho, a tua filha, a todos os teus filhos, pedaços ou amplitudes do teu corpo e da tua alma... Amarás, mãe, os minutos e os segundos e tempo jamais te faltará em busca dos mais santos carinhos com que envolverás o fruto do teu amor. E maternidade, mãe, não precisa que seja do teu próprio ventre, célula da tua célula, porque ser mãe é passar pelo caminho da vida, oferecendo dádivas do amor e da fé, o melhor que exista no coração.

Ser mãe é passar com rastro fulgurante em cendal de estrelas, envolvendo em luz as trajetórias dos seres que lhes são entregues para cuidado e burilamento. Ser mãe é sofrer amorosamente, é sorrir na complacência, é sonhar com a esperança. Nenhuma tarefa é mais dignificante do que a de mãe, pois, em sua vida, dificuldade é ensino, problema é lição, sofrimento é bênção, tudo é alicerce divino na construção do bem. Ser mãe é transmudar-se em bálsamo de bom entendimento, é ter a vida dos anjos, é esparzir misericórdia em nome do que há de mais sagrado no amor. Ser mãe é curar o cansaço, é ame nizar a própria existência.

Filhos de todo o mundo reverenciai, hoje, as vossas mães. Elas são seres insubstituíveis, tesouros inestimáveis, maravilhas da criação. A elas, joias do mais fino labor de Deus, o nosso amor!

Há um bom tempo no Mundo Espiritual, desejo-lhe, querida e amada Dona Anália, todas as luzes mais bonitas e coloridas da Criação Divina. Pelo muito merecimento!


SILVINA MELANA, SEGUNDA MÃE

Já na minha experiência de cinco dias de vida, na praça do Mercado em São João do Paraíso, Silvina chegou para ficar e fazer parte da família até que deixou este mundo. Uma vida inteira de verdadeiro amor e dedicação a todos. Tratava minha mãe de Anália, meu pai de Compadre Zeca, a todos pelo nome: Alaíde, Nilza, que morreram criancinhas, e depois Nair, Dercy, Jurandi, Vilmar, Zildete, Deldi, Dalvany e Olwanda, Os outros, pelo apelido de criança ou da vida toda: Wandinho, que sou eu, Diquinha, Dalva, Dica, Deda, Wandinha. Nair, às vezes era Nai, e Jurandi, Jura. Meu nome para ela só passou do de batismo depois da minha matrícula na escola, mesmo com algumas mudanças, porque em Salinas, eu era Wander; e em Taiobeiras, Arrudinha. O nome dela sempre Silvina para todos,
só Diquinha e Dalvany a chamavam Silva.

Silvina foi fazer parte da nossa família quando desistiu do marido que fora para São Paulo e nunca mais deu notícia. Tendo só uma filha, deixou-a com uma parenta, e aceitou o convite de Dona Anália, que tinha na época dezoito anos, número da minha diferença de idade com ela. Casou-se com treze, e eu só vim nascer cinco anos depois, ela praticamente sem experiência de lavar e limpar menino. Aí, Silvina chegou para cuidar de tudo, da casa e do filho. Começando por mim, toda a filharada dormia no mesmo quarto que Silvina. Ela carregava e lavava os urinóis, dava banho, vestia as roupas, penteava os cabelos, dava os remédios, ensinava a rezar, dava verdadeiras aulas de religião, pois sabia quase tudo de bíblia. Aprendemos a comer pelas mãos dela, que adorava fazer capitão e colocar na boca de cada um. Nunca nos deixou esconder carne debaixo do angu, nem comer com uma colher maior do que as dos outros, porque saber viver honestamente era coisa séria. Sabia muito da história hebraica e cristã, porque, criancinha na casa de um parente (Clemente Batista), ele lia a Bíblia em voz alta e gostava de comentar tudo para que todos guardassem na memória. E Silvina guardou tudo na consciência e no coração, tornando-se assim uma competente professora de fé, de uma didática que nunca esquecemos, principalmente Nair e eu, os mais velhos.

As roupas dela foram sempre diferentes, preferindo um tipo de saia comprida com franzidos e pregas, além de um babado na barra. A blusa sempre branca, que ela chamava de camisa de morim ou de americano, conforme o tecido. As saias podiam ser de qualquer cor, quase sempre escuras, de um só tom, que podiam ser pintadas com tintol em água fervendo.

As blusas, com gola arredondada, eram embelezadas com rendas de vários modelos, que ela mesma fazia na almofada de
bilros. Para ir às missas, aos domingos, só serviam as saias e camisas consideradas novas, pois tinha que ser roupa de ver Deus. Depois de lavadas com sabão feito por ela mesma, com óleo de mamona, passava tudo com o ferro de brasas, soprado
de tempo em tempo. A verdadeira festa era fazer as rendas,
quando ela batia os bilros uns nos outros, como se fosse uma dança mágica, enquanto cantava músicas da igreja. Claro, que
a meninada ficava toda ao redor, acompanhando e admirando
tanta habilidade. Um encanto quase divino e inesquecível!

Silvina sabia também muitas histórias de reis e rainhas, príncipes e princesas, capitães valentes que defendiam os palácios com espadas e bengalas, todos vestidos com muitos enfeites, engalanados para dar mais força e autoridade. Os banquetes, nos palácios, eram sempre com carne de caças ou peixes que vinham de longe, um mar tão distante que ela nem sabia onde ficava.

As maiores autoridades eram sempre os bispos e cardeais, cada qual mais cheio de pompa, de forma a representar Deus Nosso Senhor e impor mais fé e disciplina. Em verdade, Silvina consciente da própria humildade e de muito respeito religioso, não tinha qualquer dúvida de não ir diretamente para o céu e ver São Pedro guardando a porta, deixando entrar só as almas boas. Dizia ela que nem precisava passar para o lado de dentro, bastando só ficar atrás da porta, vendo os anjos cantarem e os santos rezando terços e rosários. Lá de vez em quando, uma alma boa e caridosa passaria pela peneira fina de São Pedro. No céu, a reza era a água e o alimento de todos, fosse dia ou fosse noite.

Todos os filhos da casa consideravam ter duas mães, a que permitiu a vida, Dona Anália, e a que conservava a vida com o maior carinho, Silvina Melana. Dona Anália sempre presente, quase uma santa; Silvina, uma santa de verdade, com todos os direitos e privilégios de inquilina celeste. Um lindo paraíso, colorido e cheio de fitas de seda, plenitude de luzes e suaves músicas apropriadas para a eternidade. Grande Silvina!

Foi em homenagem a Silvina que Patrícia minha sobrinha, filha de Nair e Manoel, teve na pia de batismo e no cartório o nome de Patrícia Melana, o que muito agradecemos e pelo que nos sentimos soberanamente honrados. Para Silvina, o lugar mais bonito da criação divina tem que ser o céu. O ver dadeiro lugar dela!


TIA HONORINA

Voltando bons anos na linha do tempo, todos os passos possíveis da lembrança de menino, vejo com enorme alegria a bonita e charmosa moça Honorina Morais, princesa de encantos da fazenda do meu avô, numa beira de estrada de Salinas. A casa sempre cheia e movimentada de conversas, gente entrando e gente saindo, meu avô contando estórias na varanda, vovó Ritinha comandando a cozinha e o pessoal do trabalho da casa. No terreiro, entre o curral e a entrada, o jardim com plantas em jiraus e canteiros; no quintal, uma riqueza só: galos, galinhas, capãos, cocás, perus, um pavão com ares de senador chefiando tudo; no pomar, a algaravia dos pássaros, meninos armando quebras e arapucas, o chão coalhado de frutas caídas. Um paraíso de doçuras, um mundo encantado!

A família do meu avô João Morais era bem grandinha, muitos filhos e muitas filhas, filhos de criação, filhos dos agregados, entre eles o mais temido era o meu primo Preto e o mais querido era Zé Pequeno, pau pra toda obra. Dos homens, tio Armindo e tio Agenor já casados; das mulheres, casadas eram tia Diolina, tia Maria, tia Ormezinda e Anália, minha mãe.

No time de solteiros, tio Abílio, tio Agenor, Tio Argemiro, tia Nininha e tia Honorina, tia Honorina sempre a mais ativa, a mais bonita, a dona das festas. Com ela e por ela, saía do forno um universo de gostosura: biscoito fofão, biscoito espremido, biscoito cozido-e-assado, manuê, bolo de fubá, pão sovado, além de broas e roscas; do fogão à lenha, goiabadas, marmela das, doce de leite, de manga, de mamão enroladinho, doces de casca de laranja, suspiros, sonhos e quindins. Eita mão boa! Se era tia Honorina que tinha feito, todo mundo queria, principal mente quando vovó mandava a gente pegar leite na despensa, aquele leite grossão, cheio de nata, tão espesso que vovó não dizia “tomar leite”, falava “comer leite”.

Em todo o universo da casa de vovô João Morais e vovó Ritinha, o nome sempre mais falado era o de tia Honorina e tio
Armindo, ele porque era quem sabia ganhar dinheiro, muito dinheiro, rico desde rapazinho; ela porque era a mais prendada, a mais admirada por ser portadora de todas as habilidades que uma fazenda exigia. Precisávamos assar uma codorna, limpar um peixe, fazer uma gemada?! - era sempre ela que dava encaminhamento. Boa ouvinte, ficava ao lado de vovô, quando todos se sentavam para ouvir os causos de Lampião, da Princesa Magalona, dos Doze Pares de França e dos revoltosos que passaram por lá e obrigaram todos a se esconder no mato por mais de um mês. Tia Honorina era quem dava conselhos, pregava botões, serzia meias, escrevia cartas, fazia remendos, quando a gente rasgava a roupa. Moça inventiva e prática que não podia faltar hora nenhuma.

Lembro-me de tia Honorina viajando de cilhão, com chapéu de camurça, calça largona quase atrapalhando as esporas. Era boa cavaleira e chegava a carregar a meninada no cabeçote, como faziam tio Abílio e tio Agenor. Lembro-me de tia Honorina rezando rosário, embora preferisse o terço porque era mais curto e a reza não demorava tanto. Na hora de dormir, ela mandava os meninos lavarem os pés e rezar para os anjos de guarda. Ninguém podia dormir nu, porque senão o bicho aparecia. Quem tivesse medo do escuro, podia dormir com uma lamparina de azeite ou um fifó que tinha de bem longe da cama, para não correr perigo de fogo. Assim, era ela que distribuía sorrisos dia e noite, de manhã e de tarde. Quando a
gente acordava, era a primeira a perguntar se já tinha rezado
para que o dia pudesse ser tranquilo e cheio de coisas boas.


Falei de tia Honorina em horas do almoço e de janta? Falei do casamento, do nascimento de Edes, de quando ficou viúva? Falei não, são causos que ficam para outra crônica, com muitas novidades.

Agora que tia Honorina completa bonitos oitenta anos de vida, com amorável comportamento no que ela é e em tudo que faz, com incondicional multidão de amigos, os abraços meu, da Olímpia, dos sobrinhos e netos e... do mundo todo. Feliz aniversário, tia Nora, melhor tia do mundo


A ALEGRIA DO MONSENHOR

Não me canso de ter saudades do tempo bom e gostoso das aulas do Colégio Diocesano, de quando podíamos, todos os dias, sentir e ouvir a alegria do Monsenhor Os mar, a braveza do Padre Agostinho e a terna amizade do Monsenhor Gustavo. É de fato um momento inesquecível, de quando cada gesto era uma lição, cada atitude uma experiência de seres em luta e em paz com a vida. Os três juntos, ou cada um em particular, eram para nós, meninos-rapazes, o grau mais alto da sabedoria, a fonte inesgotável de conhecimento, os degraus por onde alcançar a segurança do futuro. É claro que, particularmente, um por um tinha o seu séquito de seguido res, dependendo da esperteza ou do grau de inteligência de cada aluno, ou mesmo da maturidade ou falta de juízo, como podíamos encontrar nos mais sérios como Geraldo Miranda e Nivaldo Neves, ou nos mais afoitos como Pai da Mata e João Doido. Em órbita havia gente de todo jeito, tipo Tereziano Dupin, Renato Pobre, Renato Almeida, Dezinho Dias, Ivan Guedes, Lazinho Pimenta, Raimundo Santana, José Maravilha, perso nalidades marcantes que iam do folclore à poesia, do trabalho sério à justa compenetração.

Cada dia era um novo esquema de novidades, de surpresas, uma sensação de estarmos construindo o mundo, preparando-o para a nossa geração e para todas as outras que poderiam vir depois de nós. Ninguém fugia da luta, tirar o corpo de banda, em qualquer tarefa, era um sacrilégio. Matar aulas era pecado capital. Durante a semana não valia nem cinema nem namoro. A ordem era estudar! Uma única transgressão era permitida e só ao Miranda, porque ele havia inovado o sistema, inventado uma saída, namorando com a professora Lourdes, inteligentão que era. O Dezinho Dias, já mais velho um pouco, falava de fazendas, de vez em quando. O Raimun do Santana era um importante, pois tinha bicicleta e tomava uísque antes das provas de matemática. Ivan impunha grande respeito: de vez em quando jantava em restaurante, sábado à noite depois do grêmio. A maioria, como eu, não tinha dinheiro nem para picolé ou quebra-queixo, e quando muito, bebíamos caldo de cana. Cafezinho era luxo!

Professor bom mesmo era o Pedro Santana, vibrante, grã-fino, dominante nas cadeiras de História, Ciências e Inglês, um terror para quem não tivesse as matérias na ponta da língua, a capacidade de responder, falando ou escrevendo, sem gírias. Pedro era tão imponente, que não repetia ternos e gravatas durante um mês, cada dia uma nova cor, hoje um três-botões, amanhã um jaquetão, tudo dentro do melhor figurino de Vavá ou Wilson Drumond. O cabelo, ah! O cabelo era que merecia o maior cuidado! A barba, de um barbear diário na barbearia de Antônio Guedes, com massagem facial, na mes ma hora em que também estavam sentados os grã-finos Júlio de Melo Franco e Nelson Vianna, fregueses de manhã cedinho. Errar com Pedro ou com o Padre Agostinho – outro elegante – era imperdoável. A nota menor que um bom aluno podia tirar era dez. O nove era um feito vergonhoso!

Havia outros professores famosos e entre eles o Tabajara, a Terezinha Pimenta, Doutor Carlyle, Maria Inês, D. Rosita Aquino e o Belizário, que falava latim e tinha o cabelo parecido com o de Castro Alves. Em certas ocasiões, o Bispo D. Antônio chegava a assistir a algumas aulas, sentado conosco, perguntando e participando, como se não soubesse de tudo! Foi a maior inteligência que conheci, uma cultura universal, um
poder oratório que Montes Claros nunca teve igual, nem com
o Simeão Ribeiro... Era um admirável mundo novo, principal mente para mim, que sem ternos e sem paletós – o primeiro foi o Vadiolano Moreira que me deu - achava tudo aquilo um sonho em realização. Maravilhosamente encantado, sedento de aprender, nunca cedendo o primeiro lugar a ninguém, uma coisa marcou-me profundamente a diretiva na vida e me tem servido constantemente de bom exemplo: a alegria de viver de
Monsenhor Osmar Novais de Lima, nosso diretor!


TIO ABÍLIO MORAIS

Sempre fico imaginando no jeito de ser das pessoas que foram as mais importantes na minha longa vida. De como elas eram e como se comportavam quando sozinhas ou no convívio com a gente de casa e as pessoas da rua e do mundo. Penso na postura em geral, na forma de falar e conversar, na posição de ficar quando em pé ou quando senta das. Sempre alegres? Tristes, preocupadas, ansiosas, cheias de cuidados? De bem ou de mal com a vida? Chegadas às rotinas, cheias de aventuras? Pensativas, falantes, sensíveis à aprova ção das pessoas? Tenho um mundo de ideias de como eram ou poderiam ser.

E é pensando assim, no todo e em geral, que imagino meu tio Abílio Morais, irmão de minha mãe e de quase uma dúzia de irmãos, homens e mulheres que tiveram excelente criação por parte do meu avô João Morais e minha avó Ritinha, mulher de todas as prendas, principalmente para fazer requeijão e doce de leite. Só em ser filho de João Morais, marca uma grande vitória, porque ninguém melhor do que o meu avô, que foi príncipe da alegria e do bom viver, seja com o embornal na roça, seja, à noite, deitado na rede, a contar estórias e narrar sonhos, multidão de gente ao redor, ouvindo cada palavra, sen
tindo cada pausa.

Aí é que viveu meu simpático Tio Abílio, de boa altura, nem alto nem baixo, tamanho de que pode pegar peso e andar com pressa ou com calma. Sempre fazendeiro bem de vida, dos primeiros a acordar, pela manhã, o lugar certo de encontrá-lo era no curral, vacas já apartadas para tirar o leite. Uma acerta
da tarefa chefiada por ele, todos respeitando sua competência
diante dos latões que tinham que estar cheios. Na vasilha de apara, aquela brancura maravilhosa, o mundão de espuma a cada puxada no peito da vaca. Falo com muita autoridade so bre esses momentos, porque era lá que eu chegava, acredito
em primeiro lugar, já com o copo esmaltado limpinho, para receber a minha cota de cada manhã. Quentinho o leite que espirrava no copo, era só a gente ficar sorvendo e lambendo os beiços. De gostosura maior não me lembro. Encantador tempo de infância!

Muitas e muitas vezes viajei com o calmo e otimista, Tio Abílio, saindo de São João do Paraíso para Salinas, ou de Salinas, de volta para casa no São João. Mula bem arreada, Tio Abílio, para me dar tranquilidade, colocava um pano acolcho ado no cabeçote, onde eu me assentava com todo conforto, as costas apoiando em seus braços, rédeas do lado direito ou do lado esquerdo. Ele, de esporas prateadas, usava um cabrestinho leve para animar o cavalgar, quando preciso. Atrás da cela, os alforges com a matula, o cantil de água e alguma fruta para a sobremesa nos intervalos da viagem. A partida era sempre bem cedinho, depois de um fornido café com leite, bolos de puba e biscoitos cozidos e assados e espremidos, além da broa e do biscoito fofão, este entre o sabor doce e o salgado, uma delícia que mamãe colocava quentinho na mesa, em cima de uma toalha bordada. A viagem era mais gostosa que uma de carro de bois, de fordinho ou de caminhão. Além de tranquila, integrava a natureza, a gente vibrando com cada pedaço de estrada, vendo e sentindo os verdes da paisagem. Paradas, só para dar água aos animais ou mesmo para nos confortar, quando em momentos de sede.

Nas chegadas em Salinas ou em João do Paraíso eram sempre uma festança, com muita comida e muito café com leite. Bem melhores do que as passagens por Coqueiros e Taiobeiras, mesmo havendo muito o que comer e beber, além das prosas, dos casos e dos comentários sobre política e acontecimentos da vida diária. Nas chegadas, a primeira coisa que Tio Abílio fazia era desarrear os animais e colocá-los na sombra, para o mereci do descanso. Tio Abílio era, de natureza, um homem bom, sempre pensando no bem, das pessoas e dos bichos.

Para os meus leitores, principalmente os de Montes Claros, a melhor forma de identificar o meu Tio Abílio é dizer, que temos como nossos amigos, dois filhos queridos que ele criou e educou com todo cuidado: o doutor Oswaldo Morais, oftalmologista, e nossa querida professora Maria Inês Morais Ferreira, mãe das sempre meninas, Maíra e Talita, minhas primas, que coloquei como centro material e espiritual do meu poema “Quinze anos, menina-moça”.

Bom concluir, reafirmando minha admiração pelo sem pre calmo e importante fazendeiro, tio Abílio Morais, de ines quecíveis olhos claros. Declaro-me feliz e agradecido por ter participado por bom tempo da sua vida. Valeu!


A VOZ GOSTOSA DE EDITE PIAF

É preciso saber descobrir sempre o lado gostoso e nobre de cada momento de nossa vida. Buscar a felicidade é uma obrigação e a própria busca deve ser um motivo de ser feliz. É o que acontece comigo todas as vezes que entro no foyer do Teatro Nacional de Brasília, que desço a rampa aveludada e bonita e vejo aquela majestade de auditório, aquele conjunto monumental que só Niemeyer poderia imaginar e realizar. Ir ao Teatro Nacional de Brasília me oferece um gratificante prazer, um bom motivo de alegria. Foi assim a sensação que tive quando Dagmar, Anderson e eu tomamos o primeiro contato com a nossa turma, antes e durante a apresentação de Bibi Ferreira, na peça Piaf, um sonho de interpretação. Foi as sim quando nos sentamos, bem em frente, ao palco, num bom grupo composto por lasbek, Riza, Carlos Hetch, e Carmen, ven
do do outro lado bons colegas de trabalho, tendo como desta
que em mais de meio auditório o charme de Ângela Momm.

Curioso que tenha prevalecido em grande parte a cor vermelha, um vermelho forte, vivo, flamejante. Entre nós, e muito feliz, de vestido, bolsa e sapatos vermelhos, a Ivone. Íria, mais feliz ainda, com um rosa choque que, à luz da noite, ninguém diria que não era vermelho. Valquíria, Daniel, Eduardo,
Roberto, Cardenas, todos de camisas vermelhas. O Carlos, não
sei se menos ou mais, também com vários detalhes de verme lho. Quando acende a iluminação do palco, o fundo espouca em vermelhidão intensa, vivíssima como um campo de luta, formando conjunto com o foco avermelhado que iluminou Bibi durante todo o tempo. Em contraste, como num romance francês, o negro das roupas do luxo e da pobreza que, de início, apavoram a consciência e a visão do espectador. Para compor, de nosso lado, a negritude da camisa do muito mineiro Moacir. De lá e de cá sempre o negro e o vermelho.

A voz de Bibi Ferreira, a presença, os gestos, o pessimismo, o lado difícil da vida que ela faz explodir a todo instante, o minúsculo físico sem nenhum traço de beleza, tudo marca a alma de Edite Piaf. É Piaf purinha com a visão de contempora neidade, é realmente como se estivéssemos em presença dela.
Aliás, mais do que isso: as duas, se parecem, quase uma mes ma pessoa, todas duas famosas, marcadas visivelmente pela muita idade, com desgaste que a própria vida artística impõe e provoca. A voz, a princípio, miudinha, pedindo desculpas por existir, de repente enche e preenche o ambiente e vai tomando volume, ganhando corpo, envolvendo, límpida, num crescendo admirável como se representasse toda a força da sonoridade da eterna França. É como se estivesse no espírito dos cabarés de Paris, no Olimpia, o máximo da glória de toda a arte, muito mais do que o Carnegie Hall ou qualquer outro teatro do mundo, inclusive o Nacional de Brasília, em que estamos presentes.

Ouço e vejo Piaf e me transporto numa doce saudade para as ruas parisienses, as praças, os monumentos, os «bou-levards”, os museus. Sinto no acordeom, na harmonia do fun do musical, e atmosfera de cultura, do gosto de sensibilidade que os franceses sabem cultivar com tanto amor. Vejo-me no alto da Torre Eiffel, no Arco do Triunfo, na Place de la Concor de na Pigale, no Sena, dentro de um bateau mouche, na Nôtre Dame, nos teatros de revistas, no Louvre, no meu modesto ho tel de viajante solitário e muito feliz. Vejo-me correndo do frio, embevecido com o colorido das luzes, das bancas de jornais e revistas, das bancas de frutas vermelhinhas, com os brilhos dos restaurantes e cafés, ah! os cafés! Vejo me envolvido com a alegria das crianças e a beleza magra das mulheres, com a di
versidade de tipos, com as roupas que estrangeiros e franceses desfilam nos passeios e jardins. Sonho e vejo!
E depois de tudo, emocionado, agradeço à arte de Bibi e a oportunidade de estar em Brasília. Nada melhor do que matar uma saudosa saudade!


ADÉLIA MIRANDA:
25 ANOS DE FAFIL

Quase fim de 1988, vejo hoje Adélia Miranda, doce e querida amiga, como a vejo e tenho visto desde os dias em que, quase menino, cheguei a Montes Claros. Ela, também garota, novinha, estudante não me lembro se do Colégio ou do Instituto, era colega de Mary, filha de Dona To nica, proprietária da pensão onde fiquei morando. Adélia fazia parte de um lindo grupo de Tiana Osório, Belvinda e Lola Chaves, amigas da Mary, tudo gente fina, do melhor trato, um re sumo social do melhor que havia. Não demorou muito e todas se viram ligadas a mim, acredito mais pelo inglês que eu sabia e lhes era útil do que propriamente pela minha alegria de viver e pelo meu espírito brincalhão que as fazia rir o tempo todo. Elas grã-finas, elegantes, bem postas na vida. Eu, pobre estudante e balconista de duas mudas de roupa, um só par de sapatos, provinciano, salvando-me apenas pela garra de traba lho e estudos e pela confiança no destino que poucos jovens do mundo poderiam ter.

Mentalmente, escrevendo esta crônica, vejo Adélia ainda em nossa sala de estudos da casa de Mary, janela para a Rua Afonso Pena, esquina com a Padre Marcos, aquele bequinho que saia do Colégio. Fugindo das horas movimentadas do almoço e do jantar, o ambiente fazia silêncio para as almas jo vens, interessadas e estudiosas. Pouco se falava de namoros, de cinemas, de “footing”, mas muito de gramática, de história, de geografia, de latim, territórios em que eu, mesmo nos primeiros dias, já circulava com a maior desenvoltura, inclusive com experiência de redação. Tempo gostoso e bom, quando eu me sentia importante, bem-visto, cortejado por uma admiração que podia ser notada facilmente nos olhos de cada uma. Afinal, como po dia aquele garoto de São João do Paraíso saber tanta coisa que a escola não lhes ensinara? Adélia, então, chegava a fazer-me confidências do quanto os nossos encontros eram agradáveis e proveitosos. Ninguém faltava. Ninguém atrasava. Era satisfação que transitava em todas as direções!

Muitos anos depois, já longe das escolas secundárias, se parados pelo trabalho e pela própria dinâmica da vida, vejo-me, de novo, junto a Adélia nos primeiros dias de Faculdade de Filosofia, quase no mesmo espaço geográfico da Pensão da mãe de Mary, uma vez que a FAFIL se instalou exatamente no prédio do Colégio das irmãs. Lá estava Adélia, secretária de todas as horas, doçura de amizade, consideração sem igual, sempre presente em alma jovem e sincera, raro privilégio da vida. Adélia da mesma simpatia, sabor de mel no convívio ameno e prazeroso, suave em todos os momentos! “Quem não gosta de Adélia, de quem gostará?”, eterna pergunta que a beleza de sua própria voz apresenta nos cantos das serestas tão vivas de Montes Claros! Doce Adélia, que agora completa vinte e cinco anos de FAFIL, tão amada quanto no início! Estimada, admirada, querida de todos, linda presença de uma eficiência sem igual. Adélia, a própria FAFIL! Se não existisse, teria de ser inventada!

De todos estes anos de FAFIL, também com Belvinda, com Lola, com tantos e notáveis companheiros e companheiras de estudo e de trabalho, jamais será esquecida a figura quase santa de Adélia Miranda, grande secretária! Para este primeiro quarto de século, muitos tributos ainda serão cobra dos em favor da importância do trabalho de muitos dirigentes, de centenas de professores, de funcionários estimadíssimos, até de um punhado de bons alunos. Nenhuma figura, entre tanto, em nenhuma época, será tão importante como a de nos sa doce Adélia, grande Adélia Miranda amada e protegida de Deus e de todos os deuses da amizade e do amor!

Que o futuro lhe seja sempre luminoso e cheio de sono ridades. Tão lindo como as suas melodias na seresta de nossa Minas Gerais!


AVENTURA ANTES DO NATAL

Eu havia chegado de uma viagem de férias, começada em meados de dezembro, quando me entregaram aviso e um convite para receber um prêmio em Goiânia. A Segunda Semana de Artes de Goiás tinha escolhido um quadro meu - “Estrada em Movimento” - com premiação em dinheiro e diploma, e queria a comissão que eu fosse pessoalmente participar da festa. Como não estava em período de serviço ainda, nem pensei duas vezes e tomei o primeiro ônibus para Brasília, aonde cheguei numa manhã linda, com um sol de rara
beleza nascendo multicolorido no meio dos dois blocos do Congresso Nacional, coisa de muito agradar a quem pinte ou escreva qualquer pedacinho de vida ou de natureza. E foi aí em Brasília que descobri o aperto em que me metera, um sério
envolvimento de dificuldades em véspera de Natal. Não havia passagem para voltar a Montes Claros, a tempo de participar das festas da família. Tudo, além de difícil, impossível.

Quando as coisas não ficam fáceis, o pior que pode acontecer é esquentarmos o juízo, mas um pouco de calma será sempre o melhor caminho, já que cautela não faz mal a ninguém. Não ir para Goiânia, naquela hora, seria colocar a alegria e o sacrifício em total prejuízo. Ficar na capital não era bem o meu destino. Ir para outra cidade também não tinha graça. E o que fazer? Examinar todas as possibilidades, uai! E foi aí que achei a solução melhor. Rapidamente, vi que um velho sonho poderia ser concretizado, já que conhecer o grande sertão era meu mais velho desejo, principalmente se pudesse passar pela Serra das Araras e ver todas as matarias descritas por Guima rães Rosa nos seus livros. Comprei a última passagem, do dia
23, para São Francisco, previsão de saída às 7 e chegada às 5
da tarde, e nem mais pensei em prêmio de pintura, muitíssimo mais interessado em torno da nova aventura.

De volta de Goiânia, pouco antes das 7, em Brasília, uma multidão diante da tabuleta de nosso ônibus, gente que dava para quase três viagens. Faltando 5 minutos, o motorista avisou ao pessoal sem passagens que todos deveriam ir, a pé, até a W-3, aguardando lá por um tempinho, pois, só poderia sair da Rodoviária com viajantes sentados. Ficou na fila pouco mais de um terço, e uns sessenta saíram para obedecer à ordem.

O que vimos, em seguida, debaixo do primeiro viaduto, era para qualquer pessoa normal duvidar, pois não seria possível aquele carro suportar nem peso nem o volume de tão numerosa clientela. Foram seis longos minutos de acomodação,
ajeito aqui, ajeito ali, gente mais nova sentada no colo de gen
te mais velha, namorados e recém-casados bem juntinhos, os
mais afoitos sentados no encosto dos braços, uma verdadeira
lata de sardinha humana.

Antes de Unaí, umas duas paradas para mais passageiros. Não adianta dizer que não dava, não podia, porque sempre era encontrado um recurso, um aperto mais e tudo bem!

No ponto de café onde o motorista disse que era apenas um minutinho, só para sair gastamos um quarto de hora. Para en trar todo mundo de novo, aí já com mais seis passageiros, pelo
relógio não foi menos de quarenta minutos. Houve horário de almoço, mais três companheiros de aventura e mais demora
de entrar e sair, porque estômago cheio dá sempre preguiça.
Quando paramos à tarde para o café, não precisou ninguém descer, porque as laranjas, bananas, melancias, pastéis e brevidades, assim como rodelas de cana tudo foi comprado pelas janelas. Uma grande novidade e um milagre de salvação foi o aparecimento de água mineral, creio nada mais importante num dia de tanto calor.

Na Serra das Araras, um lugarzinho bem bonito, arborizado, com praça toda verdinha de grama, apareceu uma se nhora para viajar, com três meninos lourinhos e um engrada do com dois perus fazendo glu-glu-glu. De início, o motorista não concordou, dizendo ser impossível, pois, se houvesse lugar para ela e para os garotos, onde é que iria colocar os perus? Foi uma curiosidade geral, gente e mais gente botando a cabeça para fora da janela, querendo dar palpites e ajudar na situação. Realmente, onde colocar os perus? Problema para nós e para o condutor, porque, para ela, tudo normal. A dona chamou o trocador, mandou-o tirar três ou quatro malas e alguns sacos e embrulhos, olhou e reolhou o bagageiro e, como
velha viajante, enfiou seu caixote no meio dos tarecos do povo. Foi um alívio geral. De cabeça erguida, importante, ela pegou os meninos, sorriu, limpou o suor da testa, e com eles ocupou o primeiro degrau depois da entrada.

Quando chegamos a São Francisco, não às 5 da tarde, mas às 8 da noite, o ambiente interno estava tão carregado e tão cheio que a porta só podia ser fechada ou aberta por alguém do lado de fora. Ninguém precisava ter medo de cair ou escorregar, porque para isso não havia nenhum espaço vago.
Embora não fosse minha obrigação, julguei importante fazer estatística para o DER ou para quem interessar possa. Com motorista, ajudante e todos nós, cento e vinte e três passagei
ros desceram: 121 humanos e 2 perus. Só nós sobrevivemos
até o Natal. Os perus devem ter sido argumento de bom apetite durante as festas. Ou antes, porque sabemos que peru morre na véspera...


DE LISBOA

Minha crônica sobre a viagem a Portugal, quando Wladênia nasceu, há dezoito anos, foi muito gratificante. Muitas foram as palavras de carinho recebidas em casa, na escola, de amigos. Quando um assunto versa sobre alguma coisa de mais pessoal, fala mais ao coração, transubstancia sentimentos, vale pela carga ou sobrecarga de afetividade, diz o que muitas pessoas gostariam de dizer. Agrada e sensibiliza, graças a Deus! E o mundo está precisando muito de vibrações mais positivas, de alegria, de amizade sincera e franca. Assim, dou-me por satisfeito e volto ao assunto de Lisboa, o que estava mesmo nos meus planos ao falar das andanças pela pátria-mãe.

É possível que a parte maior da minha felicidade em Lisboa tenha sido pela companhia de bons companheiros de viagem, entre eles duas pessoas do mais alto valor, duas personalidades admiráveis e inesquecíveis, gente que engrandece o ato de viver. Dulce Sarmento e Antônio Loureiro Ramos. Que bons colegas e quanta jovial sinceridade naqueles dois! Como amavam a vida! Fazia gosto vê-los quedado diante da beleza, emudecidos de emoção diante do bem. Antônio Ramos era homem de conhecer o que havia de melhor no mundo e por isso, era viajante incansável ao lado de D. Flora, sua mulher. Dulce Sarmento, a arte personificada, uma fé que beirava à santida de, tinha na balança do belo a leveza dos anjos!

Foi assim no meio de um grupo admirável que vi Lisboa, a cidade que mais encanta os brasileiros e conosco se encanta
também. Não posso calcular quanto a “revolução dos cravos vermelhos” tenha modificado a capital e o povo da nação por tuguesa, depois da descolonização da África e das enchentes de retornados com diferentes costumes e muita revolta nos corações. Mas, por mais que tenham feito, acredito que Lis boa ainda é uma cidade muito interessante e para nunca se esquecer! Por lá, passei também duas vezes sozinho, solitário, ruminando emoções no Castelo de São João, nas ruas estreitas
de Alfama, nas margens do Tejo, na Estufa Fria, às margens da Avenida da Liberdade e até no barulho da Praça dos Restaura dores.

É preciso tempo e coração para descobrir Lisboa, eterna menina e moça, linda e encantadora. Como é gostoso ouvir falar do povo, principalmente os mais novos, os que, namorando, falam com a melodia do amor! Como é bonita a língua por tuguesa falada nas tascas, onde os bebedores ainda não bêba dos soltam a língua com a musicalidade que só os libertos pelo torpor do vinho conseguem! Tudo é bonito quando estamos felizes: o barulho das crianças, o anúncio dos vendedores, a algazarra dos desocupados! Sons, cores, movimentos, gestos, tudo é alegria!

É preciso saber viver cada momento, tirar da vida os encantos que a vida tem, agradecer a Deus cada momento bom que a existência nos oferece, nos proporciona, nos permite. Merecedores ou não, é gratificante aproveitarmos, fruirmos cada instante feliz. Não importa onde nem quando. Se for em Lisboa, leitor, então nem é preciso pensar: a realidade é mais do que o sonho!


DEZ ANOS DE TINTAS E PINCÉIS

Lembro-me como se fosse ainda hoje o dia em que, na casa de Samuel Figueira, eu dera palpites, mais do que o usual, na sua forma de pintar, no uso das cores, na escolha dos temas e creio que até na evolução dos seus quadros. Devo ter exagerado na função de crítico, e foi daí que veio o desafio: Por que eu, que queria saber tanto de pintura, não tentava fa zer um quadro ali mesmo, diante dele, de Mila, sua mulher, e de Shirley Durães, que os visitava naquela tarde de domingo? Insulto ou convite, chamamento ou convocação, fosse o que fosse, não me fiz de rogado e lancei-me ao trabalho, imedia tamente, pintando a minha primeira paisagem azul, branca e verde, chapada, lisinha e até com um pouco de transparência. Para começo, creio que foi até um sucesso, em pouco mais de duas horas, com ele Samuel orientando aqui, orientando ali, e até ajudando dar uns retoques nos coqueiros, porque me fal tava naquela hora uma certa leveza que, aliás, falta até hoje.

Há poucos dias, em Mirabela, Shirley me lembrou da façanha e perguntou-me se valeu a pena todos estes anos de aventura no mundo dos tubos de tinta, de pincéis, de espátulas e de telas. Quis saber também se eu me considerava mais feliz com a atividade de pintor, metiê que sofre tanta crítica de quem entende do assunto e até muito mais de quem não entende nada. E qual seria minha resposta?

Claro que tudo vai bem, a pintura tem sido um grande passatempo, um exercício de paciência realmente maravilho so, uma nova fonte de estudos, um encontro e reencontro com a arte que tem atravessado séculos de admiração e encanta mento. Quando estou pintando, as horas passam como ver dadeiros sonhos, interessantes, cheias de gratificação mental, gostosas mesmo. E quanto às críticas, principalmente as desfavoráveis, têm-me ajudado muito, contribuem para mudanças e busca de melhor desempenho.

Na verdade, não sei como ando, porque há muito tempo não me encontro com Samuel e com Konstantin, meus dois orientadores mais exigentes que, elogiando, ainda fazem repa ros, dão sugestões, nunca se mostram totalmente satisfeitos. Não falo de Godofredo, porque este nunca acha boa a pintura de ninguém e só raramente dá uma palavra de incentivo, tanto
faz para velho como para novos. É que o bom GG acha a profis
são muito sofrida, trabalhosa, difícil. E também para ele, pintura só vale a clássica – acadêmica - a real nas cores e na forma. Essas invenções nossas são coisas de gente que acha que sabe, mas, não sabe... Cristina, há poucos dias, olhou quase tudo que preparei para a minha exposição do dia 3 de julho, no Centro Cultural, disse que gostou, mas, perguntou por que eu havia abandonado a pintura de flores... Os críticos da família, a Olímpia, a Wladênia, a Rízzia, a Nádia, estas seguem cada trabalho e servem de “feedback” no exato minuto de cada pedido de avaliação. Wlader, Danilo, Denílson, Wanderlino Filho andam meio ausentes no momento.

É o que tem acontecido e não posso me queixar. Não me têm faltado os melhores e mais proveitosos momentos nestes dez anos de trabalho, exatamente quando vou completar o primeiro meio século de vida. Pintar tem sido uma distração, uma forma de paz interna e externa, uma evocação de viagens, um rememorar de paisagens. Depois que comecei a pintar, a Natureza jamais passou por mim (como eu tenho passado por ela), como página em branco. Cada estrada, cada pedaço de céu, cada folhagem, uma superfície de água, por menor que seja, é sempre uma festa para os olhos e para a imaginação. O pintor é um ledor de cores, de movimentos, de formas, um visualizador e dimensões que existem e que não existem...

Já ia me esquecendo de fazer um conserto sobre o re lacionamento de Godofredo com os seus colegas menores da arte pictórica. Ele não gosta é de pintura dos outros. Dos pintores ele tem sido grande amigo. No que me toca, o mestre Godô só tem me dado palavras de entusiasmo. Talvez seja eu a única pessoa a quem ele tenha procurado ensinar as técnicas de pintura. E sou-lhe muito grato por isso!


É BOM FALAR DE MARÍLIA

Wladênia chega e me diz que a professora Neide Pimenta quer que eu fale para seus alunos do segundo grau do Colégio São José.

O dia e a hora já estão marcados, dependendo do meu tempo disponível. No auditório estarão mais de cem alunos de várias turmas, tudo indica, interessados em conhecer mais um pouco sobre Marília de Dirceu, principalmente com relação ao conflito de estilos de Gonzaga na sua obra mais famosa. É que Gonzaga, como Machado de Assis o fez mais tarde, tinha por hábito assenhorar-se das habilidades do seu século, voltando ao passado e fazendo investidas no futuro, de modo a ser barroco, neoclássico e um incorrigível pré-romântico. De pronto, já sei que Neide, excelente professora de língua e literatura portuguesas, deve ter ensinado tudo ou quase tudo, querendo apenas um respaldo para aumentar o entusiasmo da moçada.

Pergunto a Wladênia o tema indicado, possíveis variantes, receptividade dos seus colegas ao assunto, gosto deles pela literatura, relacionamento com a professora. Pergunto mais: como a Neide tem abordado a matéria, qual o seu ponto de vista pessoal sobre estilos de época, quais as diferenças que ela faz de um para outro como elementos de ênfase didática. Pergunto mais ainda: que livro é adotado pela professora de literatura do Colégio São José e qual a atenção que os alunos têm dado a esse livro. Wladênia vai me informando de tudo sobre professora e sobre os colegas de trabalho. Não fico satisfeito completamente e peço seu caderno de anotações em classe, pois desejo saber a ordem imposta ou sugerida pela
mestra. Ela me mostra o livro e todas as orientações escritas. Parece muita exigência de minha parte, mas minha experiência de antigo político me diz que devo conhecer todos os dados possíveis antes de enfrentar um auditório, principalmente do São José, escola a quem tributo legítimo respeito.

Tudo em mãos, preenchidas todas as condições, adaptado o horário, confirmo e faço o compromisso. Inicia aí uma nova batalha, a parte mais complicada, a busca dos elementos que possam enriquecer os sessenta minutos de intercâmbio com meus jovens ouvintes. Por força de hábito profissional, Tomás Antônio Gonzaga já esmiuçado outras tantas, ele sempre passivo nas letras dos livros, mas um fiel orientador desde os meus muitos anos de estudos e de magistério. Imediatamente,
procuro o exemplar anotado de “Marília de Dirceu”, a Introdução à Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho, um dicionário de literatura, um dicionário sobre deuses e heróis do mundo antigo greco-romano, mais uns dois compêndios escolares de nível médio, além do manual adotado em classe.

Está iniciada a fase de pesquisa e todas as horas disponíveis serão ocupadas com o novo assunto.

Que grande prazer é voltar a “Marília de Dirceu”! Com que sofreguidão encaminhar-me no ritmo e na musicalidade da lira do Gonzaga! Quão gratificante é esse trabalho-ilusão, essa busca de poesia, essa viagem de reencontro com o que há de mais belo na literatura de nossa língua! Ver, sentir, com preender, acompanhar alegrias e tristezas! Analisar de perto o amor, as tramas do apaixonado, do lírico, do quarentão que se
embeiça pela menina de dezessete. Que bom!

Três dias depois, chego ao Colégio São José para falar a um auditório de garotas e garotos quase da idade de Marília, muitos com o mesmo tempo de vida da jovem de Vila Rica. Eu, mais vivido que Gonzaga. Mas, com um tema tão bonito, con fesso que me senti mais novo, bem mais...


FERNÃO CAPELO GAIVOTA

Na superfície do azul brilhante do céu, tentando a custo manter as asas numa dolorosa curva, Fernão Capelo Gaivota levanta o bico a trinta metros de altura. E voa. Voar é muito importante, tão ou mais importante que viver, que comer, pelo menos para Fernão, uma gaivota que pensa e sente o sabor do infinito. E verdade, que é caro pensar diferentemente do resto do bando, passar dias inteiros só voando, só aprendendo a voar, longe do comum dos mortais, estes que se contentam com o que são, na pobreza das limitações. Para Fernão é diferente, evoluir é necessário, a vida é o desconhecido e o desconhecível. Afinal uma gaivota que se preza tem de viver o brilho das estrelas, analisar de perto o paraíso, respirar ares mais leves e mais afáveis. Viver é conquistar, não limitar o ilimitável. Sempre haverá o que aprender. Sempre!

Olhar de frente, alcançar a perfeição, gostar muito, muitíssimo, do que se faz, eis o segredo de Fernão Capelo Gaivota. Só porque existem gaivotas que não pensam com os mesmos pensamentos, que não raciocinam com o mesmo raciocínio, não é problema para Fernão. Mesmo sendo apenas um entre um milhão, mesmo tendo de percorrer um caminho quase infinito, Fernão sabe, é intuito, de que na vida há algo mais do que comer, ter posição importante, ser amado ou criticado: viver é lutar. Uma, cem, mil vidas, dez mil! Até chegar à perfeição, à vitória da eterna aprendizagem, porque nenhum número é limite. A ninguém é permitido deixar de aprender, e para nada além de “vontade” e de “amor” haverá significação sincera.

Passa o tempo, passam os lugares, passam ou não passam os semelhantes, Fernão Capelo vai em frente, voa, aprende, treina, paira sobre o comum do comum viver. O destino é o infinito, o caminho é nas alturas! Tudo espontâneo, natural, pois quem se ilumina cumpre a missão da luz, que vale para si e para todas as criaturas. A grande maravilha do amor é o seu profundo contágio. O que vale para Fernão valerá para todas as gaivotas. O sentimento é o santuário, e a sua paz reflete e flui incessante. A fé testemunhada no esforço evolutivo é a bênção de dádivas de amor. Ela aclara e edifica e melhorando-se, melhora os que lhe percebem a trajetória.

Interessante, mesmo para uma gaivota voadora! Quanto mais Fernão treinava os seus exercícios de bondade, quanto mais trabalhava para compreender a natureza do amor, mais desejava regressar à terra, estar entre os seus, ser rodeado pelos do seu bando, por aqueles que não veem nem a ponta das próprias asas! O que vale é mostrar-lhes o paraíso! Um depois do outro, muitos, todos, um dia chegarão a voar. Todos voarão porque voar é muito bom. Francisco Coutinho Gaivota, Martinho Gaivota, velhos hoje, novos amanhã, não importa, o que vale é caminhar para o infinito, iluminar-se com a luz que ilumina a própria luz!

Excelente experiência a leitura do livro “FERNÃO CAPELO GAIVOTA”, leitura de letras e leitura de imagens, pois volume mais ilustrado não há. Enquanto eu lia e voava com Fernão, enquanto eu sentia o friozinho das alturas e a transparência de infinitude dos espaços, lembro-me porque os chineses colocam os homens tão pequenos em suas pinturas, principalmente nos panoramas. É que é preciso limitar o seu valor diante da natureza, fazê-lo ver a sua pequenez no pano de fundo da vida. Subir uma montanha, ou voar, limpa o humano peito de uma multidão de ambições tolas e desnecessárias. Sentindo-se pequeno, tornar-se-á grande, na grandeza da humildade. . .


FUNDAÇÃO DE BURARAMA

A decisão definitiva de mudar-se para a quase beira do Rio Verde, no Sapé, meio de mundo cercado, de matas compradas do Dr. Marcianinho, foi tomada em Belo Horizonte. Era uma decisão bem desenhada de sonhos, cheia de cuidados com um cheiro romântico e premeditado de aventuras na densa floresta e nos macios carinhos da mulher mais linda do mundo, que eu acabara de conquistar depois de seis meses de investidas. Maria Aparecida, Neném, maravilha de 20 anos, morena clara, olhos castanhos da cor de uma noite de Caruaru, pele nova e aveludada de doce mangaba, fala de uma musicalidade que só uma fada poderia ter, era tudo e muito mais do que eu poderia pedir a Deus. Era o que eu sempre sonhara em todas as horas fáceis e difíceis da vida. Estava de
cidido, e esta decisão jurada no bonito apartamento do Brasil Palace, de frente para a avenida, não poderia vir em hora me lhor. Neném não aceitava de modo nenhum morar comigo em Montes Claros, e em Belo Horizonte eu não podia ficar por causa dos negócios aqui no Norte. O Sapé era uma vilazinha velha, sem conforto, feinha até, mas nada me importava, pois a o lado de Neném eu haveria de criar uma cidade nova, novinha, onde ela fosse a rainha. Quem houvesse de viver, veria!

Neném ficou em Belo Horizonte mais duas semanas para dar tempo ao tempo, indo depois para mais uns quinze dias na casa de D. Altina, no Alto São João. Foi o prazo para eu comprar pneus novos para os caminhões, ajeitar alguma coisa nos motores, aprontar as ferramentas e ensacar o que comer e pegar gasolina tão difícil na época. Antônio Miguel, Mestre Severino, Epifânio e José Porfírio, além dos motoristas a postos, só esperavam a ordem de viajar. Foi uma dura travessia de muito esforço e suor, principalmente depois de Brejo das Almas, em estradas feitas para animais e quando muito para carroções e carros de bois. As enxadas e os enxadões, as picaretas e alavancas não pararam tempo nenhum pela tarefa de derrubar barrancos e tapar buracos, acertando aqui e ali, empurrando pedras nos carreiros das rodas dentro dos rios e córregos. Dos lados da mataria densa, com cheiro de terra molhada, a natureza espocava em flores e sons, numa alegria depois de chuva rara. Chegamos ao Sapé, afinal, na madrugada do dia 20 de janeiro, ano de guerra de 1942, depois de quase meia semana de pelejas. Foi um sono só para todos, nos catres sem conforto da casa já alugada, por carta, a D. Antônia, mãe de Elpídio da Rocha.

Instalada com a consciência de quem veio para ficar, Neném era, a meu ver, a mais jovem e mais bonita dona de pensão de todo o sertão brasileiro, competente, decidida, a gerir uma casa grande, bem assoalhada e de paredes brancas, logo mais
uma hospedaria para doutores da estrada-de-ferro em construção, entre eles os engenheiros Demóstenes Rockert, Novais, Laviola, e os médicos Eduardo Morgado e Darce, todos gente de maior simpatia. Para cumprir as exigências dela e salvar as aparências eu Enéas Mineiro de Souza, Capitão da Polícia de
Pernambuco, era apenas um hóspede a mais, empreiteiro de muitos serviços, desmatador chefe. Nada além disso, pelo me nos durante o dia e até a hora em que todos iam dormir... Com as duas empregadas que Neném trouxera de Montes Claros, tudo espelhava limpeza e arrumação, já com luz elétrica e água encanada, providenciadas por mim, para o seu maior conforto.

No mesmo dia 20 de janeiro de 1942, voltando pela velha estrada, Antônio Miguel e eu, no meio da esplanada de nunca acabar, capaz de abrigar dois milhões de habitantes se tanto fosse preciso, escolhemos um pé de tingui bem copado para localização da primeira barraca do acampamento. Nossa ideia era colocarmos aquela mataria toda no chão e encima das bancas das serras, começando logo uma frente de serviço, tão comum em nossas vidas... Era como se ali estivesse começando a história do mundo. E ainda bem, porque, um quilômetro abaixo, em casa, eu tinha uma mulher que valia por todas as minas de ouro da terra, e, na coragem dos meus companheiros e na minha vontade de vencer, apareciam os primeiros toques para a existência da fazenda Burarama, de cujas avenidas e praças eu daria mais tarde a formação da futura cidade que, depois de minha morte, receberia o nome de Capitão Enéas.

Haveria momento mais feliz?


HERMES DE PAULA
E O FOLCLORE

Com o terceiro artigo a respeito de Hermes de Paula e do seu livro sobre a história de Montes Claros e de sua gente, espero ter cumprido a obrigação de despertar muitos de nossos leitores do JORNAL DE DOMINGO para uma necessidade cultural de relembrar outros do vasto leque de interesse folclórico e genealógico de que dispomos nesta velha terra de Gonçalves Figueira. Creio que falar de Hermes de Paula, suas vivências, seus costumes, suas gentes é o melhor caminho para a construção do edifício histórico de Montes Claros. É bem verdade que muita coisa ainda deve e precisa ser escrita, no presente e no futuro, mas, mais verdade ainda é que ninguém poderá fazê-lo sem partir primeiro do alicerce erigido por Mestre Hermes de Paula.

Com Hermes, vemos e revemos o bumba-meu-boi, as folias de Reis, a dança de São Gonçalo, as marujadas, os catopés, as cavalhadas, as penitências para chover; com Hermes, ouvimos e aplaudimos as cantigas de ninar, as rezas e benzeduras, as cantigas de roda. Com ele, sentimos a dureza das secas de noventa, noventa e nove, trinta e nove, o tempo bom e o tempo bravo. Com ele, visitamos as lapas, lapinhas, laponas, que não são poucas; vemos os gambás, os caxinguelês, os tamanduás, os saruês. Com ele, reconhecemos todos os tipos de madeiras das nossas florestas tamboril-de-cheiro, violeta, sucupira, pau-de-abóbora, jacarandá-muxiba, catinga-de-porco. No seu livro, aprendemos as virtudes de todas as nossas plantas medicinais, entre elas a losna, a salsa, a alfavaca, o manjericão, a quina-de-barroca e a catuaba, estas últimas, no dizer do povo, mui valentes afrodisíacos, excepcionais para levan tar coragem.

Sobre a arruda, planta que dá sorte, diz Hermes de Paula que é santo remédio para cólica, como chá ou queimada na cachaça; serve como linimento usando a folha pura; o sumo é próprio para dor de ouvido e, no geral, atacado e varejo, é tiro-e-queda para benzer contra quebranto e mau-olhado. Esqueceu-se, no entanto, de dizer que arruda, folha ou galho, evita feitiço e é um tremendo escorrega-menino, na hora de parto de mulher.

“Montes Claros, Sua História, Sua Gente e Seus Costumes” é um repositório de ótimas informações sobre tudo que é Montes Claros: fundação de clubes sociais, de escolas, de hospitais, instalação de comércio e de indústrias, fundação de órgãos de imprensa, movimento religioso, incêndios maiores e até informações sobre o dia em que alguém, por aqui, chupou o primeiro doce gelado, também chamado de picolé. Algumas observações curiosas do livro: os jovens Antônio Augusto Veloso e Antônio Augusto Tupinambá foram os últimos que ganharam discursos e festas no dia da chegada depois da formatura do curso superior. Pedro Santos, o famoso Pedrão 70, senhor de muitas lendas, não é de Montes Claros porque nasceu em São João da Ponte e estudou em Ouro Preto, Juiz de Fora e Niterói. Curioso é que Pedrão foi o maior campeão de corridas de todos os tempos, jamais batido em 200, 400 ou 600 metros, o que o levou a ser também um bom craque do futebol nacional.

Tendo sido eu um dos colaboradores da segunda edição do “Montes Claros Sua História, Sua Gente e Seus Costumes”, sinto-me dono de uma gratificante tarefa, contente e bem re compensado pelo alto valor do livro. Afinal, não é todo dia que podemos ser companheiros de páginas de tão ilustrada com panheiragem, principalmente de Hermes de Paula, premiado com medalhas dos governos de Minas e São Paulo e detentor da mais vasta soma de conhecimentos sobre Vital Brasil, conferencista elogiado e aplaudido em muitas capitais, homem do sertão e das serenatas, defensor do pequi e do pequizeiro, intelectual e pragmático, sem dúvida alguma, o melhor fazedor
de arroz-de-tropeiro e de quentão do mundo...


HAROLDO, BARÃO
DE GRÃO-MOGOL

A história é bem normal de tudo de conformidade com os cânones do comércio de nossos dias, fruto dos princípios da oferta e da procura. Negócio de toma-lá-e-dá-cá, envolvendo naturalmente valores e moedas comuns de qual quer ato comercial. Só põe romantismo numa operação dessas quem pode vê-la com olhos de poesia, com traços românticos de filosofia literária. Em tudo, não resta dúvida, mesmo nos atos de pura barganha e interesses outros, a gente consegue dar um colorido de fantasia, bem própria dos que vivem do trato das artes de das letras.

É que a verdade é bem interessante, amigos. Haroldo Lívio, cidadão brasileiro, brasilminense de nascimento, montes-clarense de coração, agora assina um atestado de amor à terra de Grão Mogol. Assina e paga. Paga com toda a força que o dinheiro põe e dispõe no mundo moderno, mesmo em se tratando de coisas antigas. Haroldo Lívio – é bom dizer logo – acaba de efetuar uma transação comercial de alto coturno na cidade de Grão Mogol. Comprou e pagou e tomou posse, com registro em Cartório, mediante todas a cláusulas, inclusive a de evicção.

Haroldo Lívio, ou melhor, Doutor Haroldo Lívio de Oliveira, brasileiro, advogado, casado com a socióloga, D. Maria do Carmo, é hoje senhor de um solar antigo e sensorial na cidade de Grão Mogol. Senhor legítimo de uma antiga casa, grande e imponente, construída possivelmente por mãos escravas, de paredes de pesadas pedras, escavadas com o suor do século passado. Caso de amor à primeira vista, Haroldo embeiçou-se pela nobre vivenda e sentiu-se imediatamente na pele de um poderoso grão-proprietário, dono da segurança de uma forta leza ao mesmo tempo urbana e histórica. Viu e gostou. Gostou e comprou. Comprou e pagou. Pagou por ser o incontestável possuidor da possuída posse.

A casa de Haroldo, amigos, não é uma casa comum, que a escritura diz construída de alvenaria, de simples e perecíveis tijolos. É obra granítica, com paredes de meia braça, a sustentar janelas coloniais, portas imensas, de duas bandas, com pesadíssimas traves e ferrolhos, frutos, não só da segurança mineira como da senhorial competência de suados ferreiros de antanho. A casa de Haroldo, de telhado de aroeira lavrada a golpes de enxó por mãos competentes, tem repetidas ripas de jacarandá! As paredes das salas mais nobres são revestidas com lambris e o piso é digno das passadas de um comandante-centurião. Na frente, o arquitetônico ornato de uma resistente cimalha dá o toque do poderio e da força de uma escolha consciente do construtor e mestre-de-obras, orgulho da arte de cantaria.

O fundo do nobre solar, após generoso quintal de frutos opimos, divisa com as mais cristalinas águas do rio de areias brancas, leito de pedras polidas, barrancas atapetados de grama verdinha e capim gordura. Ao longe, mas não muito distante, o perfil elegante de centenárias árvores a formar moldura com o azul de ferrugem das serras e a linha cinzenta-celeste do horizonte. Tudo uma graça, um encanto para os olhos e um prazer para o coração...

Por tudo isso, pelo amor, pelo romantismo da decisão comercial, pela poesia, pelo gosto, pela nobre humildade e pela humilde nobreza de sã consciência, prevalecendo-me não sei de que autoridade, não tenho dúvida de atribuir a Haroldo Lívio, culto e intelectual senhor das Minas Gerais, o Título de
Barão de Grão-Mogol.


HOTEL SÃO JOSÉ

Há cerca de dois anos, venho percorrendo, aos poucos, a rua Doutor Santos, a pedido do colega Elton Jackson e em obediência a um esquema tempo/espaço traçado desde a primeira crônica sobre o assunto. O meu objetivo é chegar à Rua Bocaiúva e, aí, em atendimento a um sonho de minha amiga Nailê, fiel cobradora de minhas lembranças de vizinho, falar de quando ela era criança, quase menina-moça, dos tempos de nascimento do João Wlader e do José Danilo. Passo a passo, saí do Hotel São Luiz, de D. Nazareth Sobreira e do Bar de Adail Sarmento, no início da rua, e, hoje, chego ao Hotel São José, de D. Laura e, depois, de D. Emília e do inesque cível Juca de Chichico e do eterno gerente Geraldo. São lembranças agradáveis, grandemente gratificantes de um jovem que alcançava a idade adulta, já hóspede em hotel, com uma individualidade e uma privacidade nunca antes imaginadas
como morador de pensões.

No Hotel São José, cuja placa dizia o maior e o melhor, ser hóspede já era um grande privilégio, marcava, quer queira quer não, um status de matar de inveja os estudantes de repúblicas, ou aqueles que viviam desprezados nas casas de parentes, muitos em barracões de fundo de quintal. Foi lá que tive, pela primeira vez, um quarto só meu, com pia e guarda-roupa, inicialmente, no térreo, do lado de dentro do pátio, na ala da praça Cel. Ribeiro, e, depois, no primeiro andar, quase de frente para os dois mais importantes endereços: os apartamentos de Ademar Leal Fagundes e do diretor do DNOCS, de quem não me lembro mais o nome. Foi uma melhoria de situação social que quase não tinha limites, quando comprei, duas calças de tropical, uma meia dúzia de camisas, novas meias e... realiza ção de velho sonho, um rádio de segunda mão, rabo quente, que tocava músicas e dava notícias todas as manhãs.

O Hotel São José era um mundo à parte, bom, alegre, importante, chique, principalmente depois que “seu” Juca assumiu a direção e realizou uma grande reforma. A sauda de marcada com a ausência de D. Laura foi compensada com a elegância de D. Emília e a descontraída presença dos filhos, principalmente de uma menina que era a mais bonita da rua Doutor Santos, a Mercesinha, já quase em início de namoro com o João Walter Godoy. Zê de Juca, Lauro, Bernadete, todos eram também bastante simpáticos com os hospedes. A hora do jantar era quase sempre uma festa, exigindo-se a melhor roupa de cada participante do banquete diário, uma etiqueta fiscalizada de perto pelos garçons, principalmente pelo Fernando, que, até hoje, trabalha na profissão.

Poucos foram os estudantes que conseguiram a permanência no quadro de hóspedes. Um a um ia saindo, pedindo ou recebendo as contas, depois de uma brincadeira mais forte, ou
do não respeito à posição da gente importante e seria como era o sisudo e culto fazendeiro Ademar Leal, o milionário Manoel Rocha, a mais graduada figura do Exército na região, o sargento Moura, o advogado José Carlos Antunes, que falava
inglês corretamente, Lagoeiro, músico-chefe da regional da Rádio Sociedade, o diretor do IBGE, e o próprio dono, seu Juca, o único montes-clarense, na época, a ter feito uma viagem internacional de muitos meses pela Terra Santa e pelo Mundo Antigo. Pode ser exagero de minha parte, mas, para nós, lá era o centro da cidade e da cultura.

Bons tempos aqueles, justamente quando iniciava atividades, já com os pés no chão, o nosso O JORNAL DE MONTES CLAROS, não sei bem certo, parece já com a direção do Oswal
do Antunes, pois o ano em que estamos é o de 1955, quando recebi das mãos do Waldyr Senna a presidência do Diretório dos Estudantes e quando foi eleita a nossa rainha mais bonita de todos os tempos, nenhuma outra igualada em nobreza nem antes nem depois: Cibele Veloso Milo!


MANOEL QUATROCENTOS

Estou no décimo-quarto andar do edifício do Banco do Brasil, no centro de Fortaleza. Aqui dentro a temperatura é de 18 graus, cortinas fechadas em quase todas as janelas, menos em uma que dá visão direta para o mar. Lá fora o calor intenso, um sol que daria gosto se estivesse na praia. O céu de brigadeiro, de um azul que indica não haver igual em nenhuma parte do mundo. Fazendo moldura, abaixo da linha do horizonte, o Oceano Atlântico que mais parece de clorofila que de água salgada: o verde é intenso, quase um verde de esmeralda ou de turquesa, daquele verde tão lindo como a cor
dos olhos de uma bonita mulher de olhos verdes. É o mar de Iracema, a virgem criada por José de Alencar, de lábios de mel
e cabelos mais negros do que a asa de graúna e a pele mais macia que a pelúcia de um pêssego maduro em manhã de chuva. É aqui a capital do Estado do Ceará.

É aqui nesta festa urbana, onde trabalho e vivo cada minuto, que recebo um telefonema de Olímpia, com notícias de casa, de Montes Claros e da região baiana de Minas. Bebo com a audição cada detalhe, cada ângulo de comentários. Misturo tudo com uma profunda saudade dela e das coisas com sabor mineiro. Quem nasceu? Quem vive ainda? Morreu alguém conhecido? Ela me fala das mortes de dois prefeitos, das passa
gens súbitas de Caetana Meira, de Afrânio Tempone, da viagem eterna de Manoel Quatrocentos. Sente profundamente a ausência da Caetana, tão nossa amiga, quase nossa vizinha,
companheira da Casa da Amizade, do Elos Clube, do Rotary. Ninguém nasceu para viver definitivamente. Haverá sempre um último dia. Mas acostumar-se com a ausência física de pessoas amigas, mesmo que não estejam sempre próximas de nós, é sempre uma angústia. Não existe alegria na morte. Mesmo de longe, sinto a falta dos bons amigos. Penso em cada
um. Vejo méritos em todos. Da alegria de viver de Tempone, por exemplo. Há poucos dias, eu tinha convencido Caetana a ir com a Meira a uma convenção do Rotary em Caxambu. Fiz propaganda de maravilhas do encontro rotário. Ela aceitou.

Do verde do mar, da imensidão do oceano, da fantasia do céu do Ceará, volto-me inteiramente para a ideia desta crônica, focalizando na memória as muitas vezes que vi e admirei a figura nostálgica e cavalheiresca de Manoel Quatro centos, um misto romântico de Dom Quixote e de Carlitos, último dos distantes conquistadores da beleza e do charme de mulheres famosas do velho cinema hollywoodiano. Sempre o verde do mar cearense o foco principal da lembrança do velho Manoel? De tudo que ele tinha na vida – e quase não tinha nada além do machado de cortar lenha – o de que mais se orgulhava era do verde dos olhos que herdara da mãe. Pode ser que seja isso, porque nos olhos do Manoel Quatrocentos estavam quase todas as suas maiores qualidades: a gentileza, a alegria, o humanismo, o desejo de conquista, a admiração por Montes Claros, a cerimônia com as mulheres, a ironia com os orgulhosos, a malícia com os velhos, a simpatia com os jovens. Grande Manoel!

Lembro-me perfeitamente dos meus primeiros tempos de estudante, lá pelos idos de 1951, quando íamos ouvir, aplaudir e anarquizar o jovem Manoel Quatrocentos, o “maior” cantor de boleros da Rádio Sociedade nos programas de auditório, no Cine Montes Claros e Cine Ipiranga. Chupando cana, comendo pipocas, fazendo bolinhas de papel de caramelos para jogar no animador e nos artistas, que grande alegria era cada manhã de domingo! Manoel Quatrocentos, mais romântico que o eterno romântico Adauto Freire, meu amigo, fazia poses de Gregório Barrios, lançava beijos para as belezas invisíveis de Ingrid Bergman, Vivien Leigh e Lauren Bacall. Era como se ele estivesse vivendo cenas de Casablanca e E o Vento Levou, só possíveis de serem descritas pelo companheiro Ângelo Soares Neto, outro fã incondicional do Manoel, que a esta hora deve estar também muito triste, chorando mágoas com Haroldo Lívio. Quantas vezes pedíamos bis, bis só para sentir as impostações de voz de quem se acreditava Tyrone Power, Charles Boyer, Errol Flinn, ou, nas horas de maior coragem, o
próprio Charles Starett ou o Flash Gordon.

Lembro-me também da mania do Manoel Quatrocentos em falar línguas estrangeiras, no enrolado dialeto dos gringos; S’il Vous Plait, Merci Beaucoup, Yes, Thank You, Buenas Noches, Oh Muchachas, Take it easy, Shut up, tão comuns aos artistas franceses, mexicanos ou de Hollywood. Era um tal de falar em Footings e Flirts que dava gosto! Lembro-me dos amores de Manoel Quatrocentos com o que parece ter sido seu único amor materializado – a Maria Tostão, lá no alto dos Morrinhos, quem sabe a sua alegria legítima. Perfumado sempre nas horas de folga, nunca sem gravata, castelhano gravado no sotaque, Manoel Quatrocentos foi um homem despojado de orgulho nas horas de trabalho braçal, dono de pouco, mas sempre sagrado dinheirinho para as próprias necessidades.

Do Ceará, quero mandar meu último aplauso a Manoel Quatrocentos, o maior candidato ao noivado com as mais lindas mulheres do mundo. Que a manhã de sábado, 23 de abril
de 1988, tenha sido para ele – Manoel Nunes da Silva – um fan
tástico momento de glória, uma contemplação maravilhosa do infinito azul do olhar de todas as belezas femininas da história. Ele muito fez por merecer.


MEMÓRIAS DE ADRIANO

Foi com incontida alegria que recebi de Raquel, minha cunhada, emprestado e ainda novinho, o volume de “MEMORIAS DE ADRIANO”. Ela, que é leitora constante, havia lido apenas as primeiras páginas, dizendo da falta de tempo para um assunto minucioso, tão repetitivo como as descrições
de Marguerite Yourcenar. Lê-lo-ia depois, não haveria problema. “Pode levá-lo e faça bom uso”, disse-me. “A mulher da Academia Francesa é sua, toda sua”, acrescentou com malícia. Recebi com gratidão antecipada e lhe confessei que só não havia comprado “MEMORIAS DE ADRIANO” por estar acima
da casa dos mil, muito caro. Não por falta de vontade, que eu já andava ansioso. Afinal, foi por causa desse livro que Carlos Drumond de Andrade havia ficado uma semana preso em casa,
com medo de alguém apontá-lo, na rua, chamando-o de “pobre velho que ainda não leu “MEMORIAS DE ADRIANO”.

E isso aí, é realmente pobre quem ainda não leu Your cenar. É pobre e não sabe o que está perdendo, pois “MEMORIAS DE ADRIANO”, que não se diz romance, é a maior joia da ourivesaria literária de nossos dias, um encanto de trabalho feito com o carinho que só uma mulher da Academia Francesa poderia ter. Bem haja que ela tenha ficado tantos anos, quase trinta, elaborando e polindo, ligando fatos e escolhendo palavras; para mim, vivendo e revivendo o atavismo do melhor
tempo de esplendor. Não é fácil assumir o papel de Adriano, ter a consciência de César, ser deus e ser gente, lutar na tessitura da alma de um povo e de um mundo, a um só lance guerreiro, político e amante de cada face da vida. Ninguém pode saber onde começa o autor e termina a personagem, uma vez que só Marguerite teria tão grande liberdade em sentir-se Adriano. A paixão por Antinoos é acima de tudo de alma feminina.

Sempre me encantei com o dinamismo do Império Romano, onde o poder nunca desprezou a cultura e o culto dos imortais, jamais deixou de lado a vida de cada dia. Mundo de patrícios e plebeus, de guerreiros e artistas, de livres e escra vos, Roma atravessou fronteiras com o sentimento de globalidade, fazendo de bárbaros bons cidadãos, mostrando a vida com beleza e civilidade, elaborando leis e diretrizes, ensinan do a viver.

Não creio que exista melhor modelo para a história que a descrição e a narrativa da “grande dama de literatura”. Nada mais apropriado para imitar a realidade. Uma penetração física e psicológica, um remoer de pequenos e grandes sentimentos, um improvisar momentâneo ou um consciente preparo de cada instante, de cada período. Adriano não se contenta apenas no viver, sente-se que é a mola maior do destino, um senhor do presente e do futuro, um gesto seu plasmando culturas, permitindo mudanças forjando consciências. Apesar de tudo, as incertezas, a busca de afirmação do ser humano, fraco e falível em toda parte, em todo o tempo, pois ninguém é dono da vida, nem o rei de Roma.

Fiquei mais rico de vivência e de amor depois de ‘’MEMORIAS DE ADRIANO”. Acredito na grandeza e no poder das letras, naquele sentido de canalizar momentos de felicidade, unindo séculos em frações de segundos, doação de patrimônio à curiosidade de cada espírito. De todas as invenções do homem a maior ainda é o alfabeto e, em decorrência dele, o livro. Depois que aprendemos ler, desaparece o egoísmo alheio, o mundo é nosso, ninguém pode impedir de que sejamos senho res da nossa própria cultura. O milenar passa a ser o agora, a história é a página que vemos diante de nossos olhos, somos participantes de tudo. De tudo mesmo.

Devolvo-lhe o livro, Raquel. “MEMÓRIAS DE ADRIANO” não pode deixar de ser lido. Em último caso, na falta de tempo, faça como a minha outra cunhada, a Laury: arranje uma doencinha qualquer e, deitada, penetre na alma dos livros; cavalgue sonhos, realize o irrealizável.


MESTRE DOUTOR JOÃO

De minha parte, já peguei o bonde andando, no agitado ano de 1954, logo depois que o Colégio Diocesano fechou o curso noturno, preparando-se para ser mudado em seminário. Toda a nossa turma, inclusive uma maioria que não estudava à noite, foi jogada à força no velho Instituto Norte Mineiro de Educação. Pobres, ricos, trabalhassem ou não trabalhassem, ir para lá era o nosso destino, pois outra escola não existia, de modo a darmos continuidade nos programas e na vida. Seguimos, então, o único caminho, único e natural, mudando de uniforme e trocando de filosofia, permutando uma preparação acadêmica por um trabalho de natureza prática, até certo ponto mais condizente com o futuro profissio nal, fosse qual fosse. Em vez de padres e seminaristas, agora a companhia de moças de lojas e de escritórios, pingando de vez
e quando uma ou outra dona de casa compenetrada e séria.
Reais alunos de curso noturno, cansados, suados, todos com
aquela disposição de vencer a qualquer custo.

O Instituto era escola de trabalho, destinado a formar profissionais para a contabilidade, redatores, datilógrafos, gente prática para a vida, gente para dar duro em todas as atividades, pau-pra-toda-obra. A propaganda maior era que, por lá, havia passado a fina flor de homens vitoriosos em todos os campos de atividade, entre muitos Ubaldino Assis, Necésio de Morais, Mário Ribeiro, uma maioria de bancários, contadores
e gerentes do comércio local, assim como alguns jornalistas, professores e intelectuais de nomeada. Ninguém poderia tornar-se um grande político ou um seguro homem de negócios
sem passar pela experiência do Grêmio do Instituto. Era lá a grande escola de civismo, uma espécie de bastião da liberdade
e do humanismo, do livre pensar e do melhor agir.

Lembro-me de lutas homéricas, antes, durante e depois das sessões do grêmio. Lembro-me de esforçados líderes e nervosos partidos criados depois do ingresso dos novos, dos recém-chegados, algo parecido com intrusos novos-ricos não acostumados aos ditames da casa. Os que se consideravam os
institutenses verdadeiros, os de primeira matrícula, eram os diletos, os preferidos da família diretora, gozando todos de uma liderança bastante expressiva do Newton Baleiro, do lado de fora, e do João Luiz Filho, do lado de dentro. De quebra, havia o Luizinho, o Nelsinho, a Nadir, de vez em quando a Nini e o próprio Doutor João, cada um com uma força, um prestígio,
um mando diferente, mas nenhum peso-leve. 0 Doutor João, quando aparecia com os cabelos alvoroçados como se não tivesse visto pente, testa franzida, sobrecenho carregado era um deus-nos-acuda, um furacão de fúria, fazendo aparecer tudo de errado que houvesse.

De sério, por parte dos alunos, também havia muita gente, compenetrados solteirões, dignos pais de família, e até gente nova com jeito de gente velha. Havia o Manoel Neves, comerciante bem de vida; o Joel Silveira, estudioso da Bíblia, quase pastor e fazendeiro; o João e o Terezo Xavier bem-pos tos alfaiates, ora caladões, ora conselheiros; havia o Raulemar
Couto e o João William, novos, quase meninos, mas de um respeito que merecia admiração. Pelo lado dos professores, lembro-me da fama de carrasco do professor Heráclides Leite Ferreira, baiano e matemático que havia se casado com uma aluna, a Nadeje; do professor José Márcio de Aguiar, ex-seminarista, literato e filósofo, meu conselheiro nos primeiros tem pos de jornalismo; o José Bispo, de boa fama na capacidade, mas tão terrível nas notas, que alguns alunos, por vingança, furavam, de vez em quando, os pneus da sua bicicleta. 0 Necésio de Morais foi o melhor mestre de contabilidade que conheci. Domingos Bicalho era a organização em pessoa. Mas de bom visual, além de um alentado time de mocinhas, havia uma bonitona, caixa das Casas Pernambucanas, bem vestida, bem pintada, tão elegante que, no primeiro dia de aula, todos nós nos levantamos para recebê-la pensando tratar-se de profes sora de muito respeito.

0 Instituto era um caldeirão fervente, com o Júlio Pereira e o Ferreirinha a fazer política; Thiers Penalva, Carlaide Pereira a jogar futebol; Zezinho Evangelista e Waldir Veloso a agitar a política; Sebastião Mateus e Norberto Custódio na seriedade, e Adauto Freire a comandar a jovial anarquia. No meio de tudo, uma figura com absoluta liderança, na violência ou na ternura, como pai e como algoz, como irmão e quase como colega: o velho mestre João Luiz de Almeida, autoridade máxima de uma
geração, o mais liberal de todos os ditadores.


MOMENTOS DE LUIZ DE PAULA

MOMENTOS, de Luiz de Paula, é amor e flor da natureza. Em Várzea da Palma, nas beiras do Guaicuí, em Montes Claros, ou em qualquer parte do mundo. Um livro realmente bom, mesmo que em leitura ligeira. Prosa e poesia de verdade, na seca ou nas chuvas. Tem quer ser, porque o autor foi batizado duas vezes, uma pelo ferreiro Bertolino, outra pelo padre da desobriga, e, por isso, virou poeta. MOMENTOS é livro desafio, trabalho em espanto de vida, aceitação de mistério. Suas páginas foram escritas em áureo e doce dealbar de músicas e de sonhos. Tudo plural: douradas iluminuras nas capas e, no interior, coloridos entre o branco e o preto, tudo bem serenado em universo de ideias. Um luxo!

Como disse o próprio autor, textos e pretextos de MOMENTOS nasceram como brotos das chuvas de São Miguel, multifacetada confissão entre o sacro e profano. Todo broto de vegetação foi visto em lupa de saudades. Visíveis encanto e filosofia, memória poética e pinceladas de vida. Tudo pintura
com acenos de ser em tudo fiel às origens. Escrivão de sonhos, menestrel de doces lembranças, Luiz é compositor de ritmos, sem direito a esquecimento. Que tenham registros os currais
de gado, os caminhos entre veredas, os bois de cem oitavas, a arte de navegar e fazer telhas, imortalizem-se os bandeirantes, os vaqueiros, as partes da cozinheira ladina... Imortalizem-se a grandeza das pequenas coisas e os mínimos pedaços de espaço-tempo.

Que bom e agradável foi ler MOMENTOS! Que bom foi conhecer Dona Biló, assadeira de roscas, Neco Meireles, oficial abridor de cisternas, a parteira Siá Clara! Todo respeito para a professora Júlia, sessentona, de régua e taboada, todo respeito para a rezadeira Regina, sacerdotisa de benzeduras para cura de um tudo, palavras e gestos seus como que tirando doença com a mão. Carinhoso desfilar de antigas profissões, com toda a certeza de que o tempo não atravessa duas vezes o mesmo rio.

MOMENTOS é o registro fiel de um maravilhoso tempo de pura ternura, trato vivencial de gente parceira de Deus. Só podia ser escrito por Luiz de Paula Ferreira, autor de Montes Claros Vovó Centenária, garimpador do ouro mais puro. De claro-me feliz, muito feliz, e sinto-me identificado com o Vale do São Francisco, por estar manuscritando estas mal traçadas linhas numa mesinha da Estação das Docas, Belém do Pará, de onde contemplo as infindáveis águas da Amazônia e sinto uma imensa saudade das planícies e dos claros montes do Norte de
Minas.


DONA DINA PAULINO

Os noventa e três anos de coragem e alegria, que sem pre marcaram e marcam nobreza, nunca envelheceram em Enedina Paulino Correia - nossa querida Dona Dina - a sua crença de amor à vida. Tem sido quase um século de invenção e reinvenção diárias, cada momento dedicado ao melhor da consideração humana. Sempre pensamentos de bondade e beleza irradiando positividade e fé, sempre o mais fino trato no ser, no estar e no compartilhar. Definitivamente marcante o amor à família, aos colegas de trabalho, aos amigos. Máxima elegância sempre! Filha de pai advogado e cronista da Gazeta do Norte, Dona Dina nasceu em Grão Mogol no quatorze de maio de 1919 e só veio para Montes Claros dois anos depois. Morou em Pires e Albuquerque oito anos, casou-se com dezenove. Porque o marido Geraldo de Paula Correia foi para São Paulo e voltou doente, a ela sozinha coube criar e educar os filhos Pedro, Theodomiro, Terezinha, Nadir, Carlos, Itamar, Geralda e Cláudia. Antes da aposentadoria aos trinta e cinco anos de trabalho na Escola Normal - direção de D. Taúde, de Luiz Pires, de Francolino e Sônia Quadros - sei que muitos foram os biscoitos e doces feitos no forno e fogão do Alto do Santo Expedito, casinha humilde, embora imponentemente rodeada de bonitas mangueiras. O terreno era de Neném Barbosa e ficava mais ou menos onde está o Montes Claros Shopping Center. Era de lá que o filho Theodomiro saia com a bandeja cheia para as vendas em domicílio. Dona Dina fazia questão de ter, fora do horário da escola, todos os filhos e filhas também trabalhando para garantir a lenha da cozinha e a feira dos sábados. Ela dava o melhor exemplo e fazia ques tão de ser seguida. Fui colega de Dona Dina, por duas vezes, no sobradão da Coronel Celestino, em 1954, quando lecionei inglês, e na Avenida Mestra Fininha, de 1965 a 1970, quando eu era professor de português e literatura para as turmas do científico. Foi um tempo maravilhoso em nossas vidas, pois muitas e muitas amizades feitas naquela época duram até hoje
e nos seguirão ao longo da jornada terrena. Dona Dina foi sem
pre uma colega perfeita, dedicada, presente, para mim e para
todos os companheiros de trabalho, uma amiga insubstituível. Sua educação de berço, a voz sempre comedida, os olhos sempre brilhantes de consideração e amizade eram marcas de
uma personalidade inesquecível para qualquer tipo de histórico pessoal. Podemos nos esquecer do que as pessoas nos dizem, mas jamais olvidaremos da forma que elas nos tratam, de como elas nos fazem sentir. Como nunca virou as costas para a vida, Dona Dina tem milhares de amigos e um milhão de admiradores. Para cada dificuldade e cada desafio, ela descobriu as respostas e a melhor forma de superá-los. Uma criatura de muitas vitórias! Com bom humor espalhando mais do que sim ples felicidade, Dona Dina é digna de todas as riquezas do mundo, de todos os horizontes de esperança, de todo o despertar dos sonhos. Fazendo sempre a sua parte e, muitas vezes, até a
dos outros, nossa homenageada é força visível e invisível do bem, suficientemente poderosa para transformar para melhor qualquer um dos nossos momentos. Se vivo fosse Henfil, ele poderia dizer que, em toda existência de Dona Dina houve frutos e valeu a beleza das flores, houve flores e valeu a sombra das folhas, houve folhas e valeu a intenção das sementes. Nas comemorações destes anos vividos nos mais de noventa, pedimos convictamente ao bom Deus que sempre protegeu Dona Dina e os que lhe são queridos - oito filhos, vinte e cinco netos, vinte e três bisnetos - continue amparando a todos com uma infinita e majestosa luz de amor!


NA VENDA DO MEU PAI

Luiz de Paula Ferreira é um milagre. Tudo na sua vida deu certo. Tudo: sonhos e realidade, jeito de ser e de viver. Comportamentos, atitudes, hábitos, numa receita sábia, e manhosamente aviada desde os velhos tempos de Roma: “Não basta ser, é preciso parecer”. Luiz – em todos os decênios que marcaram a idade do menino, do jovem e do adulto – foi e pareceu inteligente, intensa e fervorosamente, quase por um dever de fé e destinação. Querendo - quem sabe - até sem querer, jamais pôde fugir das luzes de uma generalizada admiração de próximos e distantes. Conservador e revolucionário, sempre teve como medida o comedimento, coisas de antigo PSD, que não fazia reunião sem antes de tudo estar resolvido. Luiz sabe ver e antever, vestido e revestido de inigualável poder de avaliação. Sabido, tranquilo e limpinho como um gato, no dizer do nosso saudoso João Valle Maurício.

Neste livro – conjunto fantástico de retalhos intensamente coloridos da vida interiorana brasileira do Século XX – Luiz de Paula é narrador e personagem, iluminador e fotógrafo, ao mesmo tempo retratista e retratado em cenas que ele próprio sempre se inseriu. Dono de poder material e imaterial, agora produz um texto mais do que vivo - do seu e do nosso agrado – encarnando e reencarnando uma tradição oral de esperteza, que muito será discutida no futuro, quando as máquinas e os chips ocuparem com primazia a diretiva humana. Os relatos, as crônicas, a prosa poética, até os contos que ele - por segurança e sabedoria, diz de ficção - representam o que a Literatura pode ter de melhor na fixação de imagens e vivências, conteúdo importante porque só possível aos que o
viveram com entusiasmo.

Li, reli e tresli as três divisões – “NA VENDA DO MEU PAI”, “SANFONA DE OITO BAIXOS” e “ALGUMAS HISTÓRIAS”. E quando lia e revivia cenas da vida de menino do interior, testemunha real e virtual de tudo que acontece, pensei calculada mente em registrar neste Prefácio dezenas ou centenas de no mes de pessoas e de lugares, antecipando para o leitor o cheiro e o gosto de todas as acontecências, assim como as cores e a sensação táctil de cada paisagem.

Um pouco mais novo que Luiz, tendo vivido pelo lado de dentro e de fora de uma casa comercial - ouvinte e visualizador atento - bem sei do quanto o relar o umbigo no balcão valeu para nós. Ali nada passava despercebido no universo das pessoas e das coisas, seja ouvindo uma sanfona de oito baixos, seja engraxando sapatos ou controlando os movimentos sinuosos dos bêbedos. Era a vida imitando a vida, para criar memórias que só o livro pode fixar. Com este livro, Luiz eterniza Maria Velha, Maria Suruca, Mariazinha Palpitosa, o lambe--lambe Vitorino, Chico Boa Palavra, João Velho, João Raposa, Gregório Barba à-toa, além – é claro – um amplo universo de situações que marcam a malícia e a esperteza do dia-a-dia de Várzea da Palma, de Montes Claros e deste pedacinho gostoso do sertão mineiro. Resumindo, um musicar e um cantarolar de lembranças que só um narrador bom como o Luiz consegue pôr no papel.

Plurissignificativa, a Literatura faz com que certas personagens e situações ofereçam liberdade na interpretação dos textos, poucas vezes os mostrando imutáveis ou ensinando uma aceitação pura e simples. As palavras e o encadeamento de palavras sugerem visões que nunca pertencem somente àque les que as escrevem. Uma vez materializado, o texto pertence
mais ao leitor, à sua forma de pensar e agir, influenciado pela experiência linguística e pela cultura de cada um. Assim, “NA VENDA DE MEU PAI” vem para marcar época, com lembranças e vontades mais do que gratas para quem as viveu e para quem gostaria de as ter vivido. Aqui, não há fotos em preto e branco, não há figuras esmaecidas ou distantes: tudo é colorido, cada movimento tem uma surpresa como se estivesse acontecendo e sendo vivido agora. Luiz é um cinegrafista sortudo – pode-se dizer com efeito Kirlian – que além de gravar o visível e tangível, consegue divisar nuances que só aos privilegiados Deus permite contemplar. Bom para ele, melhor pra nós!

Purista corajoso do idioma, Luiz de Paula Ferreira conduz o leitor à excelência da fala brasileira, com todo o condão de quem sabe fazer mágica com a inteligência e o gosto do verdadeiro contador de causos. Alegre, otimista, sinceramente
claro nos conceitos, oferece-nos o que há de melhor na vida sua e das outras personagens. Vale realmente ser lido. No meu
ponto de vista – e aqui não vale a amizade que nos une – “NA
VENDA DE MEU PAI” é o melhor de todos os registros regionais que a argúcia literária impõe a um leitor interessado. No que toca à missão do homem no viver e conviver, no amar e no sonhar, Luiz é um cronista indubitavelmente universal.

Experimente-o como quem sabe sugar o sumo doce de uma jabuticaba bem madurinha, o andar de bicicleta em tem po de Primavera e o ver e ouvir o sapateado de um cantador de coco.


O BAR GUARANI DE VADINHO

Elton Jackson ao me fazer um pedido para escrever sobre a Rua Doutor Santos, deixou-me na liberdade de voltar ao assunto quantas vezes forem necessárias, pelo menos até a hora em que eu chegar na esquina do Hotel São José, onde morei muito tempo. Na primeira crônica, com não podia de ser, procurei avivar todas as lembranças que marcaram a história recente do quarteirão do Hotel São Luiz, quando ficava de um lado o Bar de Manoel Cândido e, do outro lado, o Banco de Crédito Real, tudo muito próximo da área dos aflitos. Fui subindo, esquina por esquina e, agora, já estamos entre as ruas D. Pedro II e Dom João Pimenta, pedaço de mundo que me marcou profundamente, pois, ali passei alguns dos melhores
momentos de minha vida de estudante e comerciário, de jovem repórter e de soldado do Tiro de Guerra, além das muitas atividades como radialista amador e como líder estudantil no Diretório dos Estudantes. Foi neste quarteirão que, de 1951 a 1954, morei nas pensões de D. Ismênia Porto e D. Duca Guimarães, levantando-me sempre pelas madrugadas para aprender as matérias das provas do Colégio Diocesano e do Instituto Norte Mineiro.

Era quase na esquina da Rua D. João Pimenta que ficava o Bar Guarani, um boteco alegre e bem frequentado desde os dias de sua fundação, pelos idos de 1950, pequeno, de poucos metros quadrados, quase que de centímetros, tão curtas eram as dimensões pelo lado de dentro e pelo lado de fora. Quando passava de uns cinco fregueses, necessário era que alguns já ficassem de pé, no passeio, encostados ou não na parede velha e pintada de verde. Havia umas duas mesas pequenas e algumas cadeiras para o pessoal que gostava de jogar damas, tomando cerveja ou bebendo pinga.

Foi por volta de cinquenta a cinquenta e um que o Vadinho, Vadiolano Moreira, chegou a Montes Claros, um dos poucos rapazes de Taiobeiras que não veio para cá para estudar, mas, para ganhar dinheiro. Renato, Murilo, Nenzinho, Dedé, Valtinho, Alfredão, Tone, Quincas, eu, todos nós viemos para enfrentar a realidade e os sonhos dos livros. Vadinho não. Vadinho veio para trabalhar muito, trabalhar dia e noite, trabalhar o quanto fosse necessário para ficar rico, se possível muito rico. Foi assim que o Vadinho botou o olho no Bar Guarani, simpático, gostoso, e não teve dúvida, ali estava a primeira mina de sua vida montes-clarense.

Nunca conheci melhor comerciante que o Vadinho. Costumo dizer que, se ele instalar um boteco, um barzinho ou mesmo um restaurante em cima de um pé-de-mandaca ru, ainda assim teria constantes e eternos fregueses e amigos para todas as horas. É que ele vive cada momento, participa interessadamente de todos os assuntos, respeita reverente a alegria ou a tristeza de todos que dele se aproximam. Quando o Vadinho comprou o Bar Guarani, fez as primeiras mudanças, ampliou-o com mais um espaço lateral, foi como se uma luz nova iluminasse a paisagem e iniciasse um novo sistema vivencial para velhos e novos, pobres e ricos, principalmente para os que gostavam de futebol e de cervejas e batidas de limão. Por lá passavam obrigatoriamente os hóspedes e moradores de todos os hotéis e de todas as pensões do centro da cidade. Nenhum estudante que se prezasse poderia deixar de ir lá pelo menos aos sábados e domingos, antes ou depois do cinema. Uma coisa era muito importante: na hora do futebol
no rádio, nos momentos dos gols, o Bar Guarani era o epicentro do mundo, o lugar mais barulhento da terra.

Mas, como sempre existe o lado contrário de tudo, o Bar Guarani também teria de ter um fim. O seu último dia de real movimentação foi o dia em que Vadinho o vendeu. Vendeu-o por um preço de fazer inveja, por ser o lugar de melhor frequência de Montes Claros. A essa altura dos acontecimentos, Vadinho já era um fazendeiro rico!


O DIA EM QUE
CHIQUINHO SUMIU

No dia de novembro em que Chiquinho sumiu eu não estava em Brasília. Viajara semanas antes e nem vira o bichinho nem na chegada nem na saída numa permanência de muito tempo. Hospedado no St. Paul Hotel, nem uma vez fui à Setecentos e Três Sul, não sei se por comodismo ou ingratidão, embora lá estivessem muitos dos meus colegas e amigos e também o Chiquinho. Foi uma pena. Agora que o Chiquinho desapareceu é que eu vejo a perda, a dor de uma ausência mesmo não deliberada. Perto de lá, passei apenas duas vezes: uma à noite, indo à casa do Nelson Pereira de Souza, presidente brasileiro do Esperanto, e outra, numa manhã de domingo, num passeio circular pela cidade para uma visita à Walkíria e Nabiran. Mas à casa da Concessa e do Chiquinho, eu não fui.

Soube do sumiço do Chiquinho por notícia do colega Geraldo Eustáquio, que lá ficou hospedado durante um mês por sugestão minha. Ele contou-me do choro da Concessa, da angústia dos hóspedes, da tristeza da Neide, da sensação de perda de todos, na hora do café, na hora do jantar, e, principalmente, na hora da televisão, quando era mais firme a lembrança do Chiquinho deitado na almofada de fina seda, entusias mado com os programas da Globo da viúva Porcina. Eustáquio contou-me ainda que a Concessa ficou intolerável, nervosa, cheia de queixume, longe da gentileza normal de que ela é a maior portadora do mundo. Acabou até a alegria da casa e houve até reclamação!

Também triste, mesmo longe do epicentro da tragédia, não aguento ficar sozinho com a notícia, e telefono incontinenti para o Recife e falo do acontecimento com o meu grande amigo Tiago Marcos, ainda mais amigo da Concessa do que eu, pois quase conterrâneo, ela do Rio Grande do Norte, ele de Jaboatão, em Pernambuco. Tiago diz-me que nem pode acreditar, deve haver um engano, o Chiquinho deve estar esperando a hora de voltar! Falo-lhe do desespero da Concessa, de que fui informado, e ele me promete que logo estaremos em Brasília para ajudar a amiga. Se eu quiser, posso até esperá-lo no Aeroporto, no domingo dia 4 de janeiro, à tardinha. Vamos chegar juntos à 703, Bloco J, como já fizemos de outras vezes em que trabalhamos em tarefas de treinamento de colegas do Banco do Brasil. Tiago sempre foi um dos maiores admiradores de Chiquinho, e com ele sabia até conversar...

Quando telefono para Concessa para confirmar a reserva do apartamento em que vou ficar, e apresentar os meus sentimentos pela ausência do Chiquinho, ela me diz que o Tiago já chamara para ele e dera conta dos dois recados, para ele e para mim. A presença telefônica dos dois amigos, parece, minorara um pouco o seu sofrimento e só Deus sabe quanto é importante a solidariedade! Narrou todos os acontecimentos, dizendo que, no dia do desaparecimento do Chiquinho, ela e muita gente vasculharam com malha fina nada menos de nove quadras, da novecentos e três até a quinhentos e cinco. Mais fizera se não fora para tão longo amor tão curto o dia!

Não vejo a hora de telefonar para dar a notícia ao Jorge, ao Kalunga e ao Moacir, no Rio Grande do Sul, à Ivone, à Mitsu, ao Hiroshi, em São Paulo; ao Geraldo, em Teófilo Otoni, e, quem sabe, a mais alguém neste grande Brasil que do Chiquinho sempre gostara.

Esqueci-me de dizer, minha senhora, que Chiquinho é o gato mais querido da Concessa!


O PROFESSOR
PEDRO SANT’ANA

Em primeiro lugar, eu gostaria de saber quem foi o professor de História de Pedro Martins de Sant’Ana. Professor ou professora, tem de ter sido uma pessoa notável, metódica, eficiente, capaz de despertar grande interesse no aluno. Ninguém encaminharia tanto saber a um discípulo se realmente não o tivesse. Não se transmite gosto e amor, sim patia ou paixão, quando não se tem essas qualidades. Pedro, como fruto, tinha de originar-se de árvore de primeira cepa. Era realmente um homem de grande saber histórico, mestre da didática, capaz de ensinar até a estátuas de gelo que estivessem sentadas em sala de aula. Aliás, ele não só ensinava, vivia como artista cada página da história.

Pedro Sant’Ana, nos velhos idos do Colégio Diocesano, fim da década de quarenta, início da de cinquenta, era um árbitro da elegância, no vestir e no falar. Seus ternos eram mais bem talhados do que os da gente grã-fina da Rua quinze, de tecidos mais caros do que os do pessoal rico do Clube Montes Claros. Tinha-os tantos, que não os repetia durante um mês de aulas. Famosas gravatas de seda, camisas de colarinhos tru
benizados, engomadas com esmero, sapatos Scatamákia de
cromo alemão com tonalidades que iam do marrom claro até o escuro-preto.

Era uma época de ouro das alfaiatarias e das lojas de luxo, quando cada par de meias era escolhido como se o freguês estivesse minerando ouro ou faiscando diamantes. Aí, Pedro Martins de Sant’Ana era o mestre do bom gosto.

Lembro-me de que o professor Pedro Sant’Ana era bom, humilde quase nunca, algumas vezes arrogante, consciente do seu próprio valor durante todo o tempo. Jamais concedia a si mesmo uma dúvida por menor que fosse. Era um monumento de saber, na História, nas Ciências Naturais, no Inglês. Primeiramente na História. Aí era inesgotável sua eficiência. Falava dos Césares e dos Antoninos, de Aníbal e de Alexandre,
de Ramsés ou de Napoleão, de Gengis Khan de César Bórgia como se fosse ele, Pedro, colega de campanha ou vizinho deles. Como percorríamos as ruas de Atenas e de Esparta, de Roma e de Alexandria, de Tebas ou Jerusalém, vivendo suas palavras! Com Pedro Sant’Ana, lutamos em Dardanelos, corremos em Maratona, navegamos no Rio Nilo, atravessamos o Mar Verme lho, fizemos nossa a Mesopotâmia!

Pedro Sant’Ana, que grande professor! Não me consta que jamais tenha trabalhado pelo salário, pelo vil dinheiro, somente pelo pão de cada dia. Trabalhava muito mais pelo entusiasmo, pela visão multissecular dos heróis da História, pela experiência milenar dos sábios. Alimentava-se, parece, pela retórica, tendo, como material da vida, a palavra, a palavra viva, sonora, marcante nas consciências jovens. Para nós, seus alunos, o verdadeiro descobridor do Brasil, o homem que abria as selvas, rasgava estradas, construía escolas, levantava templos, era ele Pedro Sant’Ana, o grande Pedro. O mestre com carinho de um velho guerreiro! Pedro Sant’Ana, sem favor nenhum, teve outro mérito: culto, vibrante, polêmico, destemido, desaforado, foi um dos dez melhores oradores da história de Montes Claros. Merece um lugar importante em nossa galeria de personagens!


O MULO DARCY RIBEIRO

O lançamento do segundo romance de Darcy Ribeiro - “O MULO”- na Academia Montes-clarense de Letras, numa descontraída noite de quinta-feira de dezembro, foi um reencontro de alegria e de contrastes, com um amado e temido filho da terra a derramar nos ouvidos o mel e o fel de santas heresias e virtudes. Ora terno, doente de romantismo, saudoso filho de dona Fininha Silveira, ora demolidor, prenhe de força belicosa, irmão de Mário Ribeiro, ora compulsivamente criativo, primo espiritual de Konstantin Christoff. É que Darcy Ribeiro nasceu pouco adaptado ao modo e ao jeito dos mineiros, nunca afeito ao silêncio, ao retraimento, mas, ao contrário, incômodo para inteligências e sentimentos preguiçosos, bisturi ou látego auto conduzido e sempre a si mesmo proclamado.

Ao contrário de Ciro dos Anjos, outro montes-clarense famoso no mundo das Letras, este sereno, machadiano, universalista, acomodado como um velho funcionário público, a curtir um silêncio invisível, Darcy Ribeiro é e afigura-se agita do, fogoso, tropicalmente brasileiro, aquecido de alma e corpo, de lufa e de luta, instintivo, felino como um condor. De inteligência selvagem, incontida, Darcy raciocina como uma ventania de amor a tudo que é cultura. Curtido primitivamente no sol e no solo do sertão de Montes Claros, fruto telúria de ternura e de instinto, de voluptuosa ambição de mundo. Darcy é um caldeirão efervescente de ideias como a querer viver em uma
só vida todas as vidas. Mortal, tem pretensões de imortalidade
e imortal se fez pelos feitos multifeitos.

Bem brasileiro, latinamente apaixonado, traz na alma o Mulo Darcy retalhos de peles de todas as cores: a cor do índio, a cor do negro, lembranças atávicas do misticismo dos celtas, aguerrida força de velhos godos, gosto de mando da alma ibérica, uma noção tão grande de espaço e de glória que só nave gadores fenícios poderiam ter impregnado o sangue de ma rinheiros do velho Portugal. Tem mais: Darcy é lúbrico como um cristão novo, fogoso como um nômade cavaleiro árabe. Na verdade, é um homem com a alma da raça, e não só da portuguesa, da índia e da africana, misturadas no cadinho brasileiro. E da raça humana, pois portador de muitas virtudes e de muitos defeitos, um caldo bem temperado de semens jorrados do chuveiro eterno, não sei por que nascido em Montes Claros.

O MULO é esta cidade sedenta de força humanamente parceira de Deus na distribuição da vida e da morte; divinamente sequiosa na busca de amor, criadoramente envolvente na caça do mando e do poder. Sensual, oportunista, material, religiosamente mística, faminta da novidade, sonhadora de fu turo. O MULO é um pedaço de cada criatura que viva ébria da própria terra natal, homem ou mulher. O MULO tem muito de João Valle Maurício na palavra e na sutileza, muito de Konstan tin no arregalo da anatomia, no desenhar das forças; muito de Crispim da Rocha no faro do homem do mato, forte e inteligen te; muito de Filomeno na sede do ter e do governar; muito de Plínio Ribeiro, no misticismo, no gosto do idear, no ser e não ser da vida. O MULO é Darcy e é Mário Ribeiro, inconsequentes
e perseverantes, sempre determinados.

O MULO, centro de uma bem romanceada trama de Realismo e Naturalismo, barroco talvez pelos contrastes, hereditariamente marcado pelo destino, fruto do amor e do desamor, sem peias, sem origem e sem destino produto da terra e da carne, somos-isso é verdade-todos nós, pequenas grandiosas criaturas no sofrer e no gozar.

E que Deus nos perdoe. Amém


ONDE O AMOR É MAIOR

Permita-me continuar alguns comentários sobre o Livro “Montes Claros, Sua História, Sua Gente e Seus Costumes”, do nosso companheiro Hermes de Paula, o maior amado-amante da cidade, um dos melhores, montes-clarenses de todos os tempos. Foi, aliás, outro bom montes-clarense, hoje ausente morando no Rio, o Newton Prates que, prefaciando a obra na primeira edição afirmara ser o relato histórico de Hermes de Paula um trabalho valioso, um modelo de honestidade. “Do alvorecer aos dias atuais, o livro é um quadro colorido, cheio de vida, um testemunho palpitante da força criadora de gerações”. Para ele, “o livro não é apenas de interesse regional, é uma contribuição para o estudo do folclore, dos usos e costumes, da marcha da civilização no interior do Brasil”, pois, “Montes Claros é o milagre do sertão”. “Quem nela viveu nunca a esquecerá. Se está distante, a lembrança da cidade querida permanecerá sempre ao seu lado carinhosa, fiel”.

Como Newton, também o seu parente Juca Prates, famo so pelo amor a Montes Claros, é personagem de Hermes de Paula. Também estão no livro Gonçalves Chaves, Honorato e João Alves, Celestino Soares da Cruz, o Cel. Antônio dos Anjos, José Correia Machado, Honor Sarmento, os dois xarás Simeão Ribeiro dos Santos e Simeão Ribeiro da Silva, além do atual Simeão Ribeiro Pires, todos ou quase todos, hoje, nomes de ruas da cidade. Homens e mulheres foram um contínuo desfile de trabalho e de saudade e Hermes os traz para o nosso conví
vio em ameno bate-papo, lembrando velhos tempos quando a televisão ainda não ocupava o lugar principal em nossas horas
antes de dormir.

Com Hermes de Paula, vemos chegar a Montes Claros o primeiro “bicho caminhão”, em 1920; ouvimos os tiros de prérevolução de 6 de fevereiro de 1930; vemos acender as luzes dos lampiões de querosene, de 1912, e da usina hidrelétrica do Cel. Francisco Ribeiro, em 1917. Aparamos águas nas bicas do século passado e nas torneiras do século presente, no sonho finalmente concretizado depois de 82 anos. Com ele, assenta mos os primeiros paralelepípedos, na rua 15, e os primeiros “blokrets” na Rua Rui Barbosa e na Praça Dr. Chaves; em 1950, com o Doutor Alpheu de Quadros; em 1955, com João F. Pimenta; e em 1957, com Geraldo Athayde. Com Hermes de Paula, pavimentamos até o pavimento a que ele não quis se referir, as muitas ruas calçadas pelo Capitão Enéas Mineiro de Souza, seu adversário político na campanha para prefeito de 1950.

Com Hermes, ficamos sabendo de velhos nomes de logradouros públicos: Rua do Pedregulho, atual Gonçalves Figueira, ex-Joaquim Nabuco; Rua da Assembleia, atual Afonso Pena; do Bate-Couro, a Governador Valadares; do Pequizeiro, a Cel. Antônio dos Anjos; Largo da Caridade, a nossa Praça Dr. Carlos; do Urubu, a ainda velha Floriano Peixoto. É ele quem afirma ser o esdrúxulo nome do Roxo Verde proveniente de personagem de Alexandre Dumas da literatura francesa, etimologicamente Rochefort. É Hermes que põe o nosso saudoso Pedro Mendonça fundando os Santos Reis, dividindo as terras em lotes para evitar a solidão. É Hermes que faz funcionar uma liga contra o alcoolismo e a faz acabar com as licenças dos as sociados de goelas secas. É ele quem põe o povo entregando um relógio de ouro ao Dr. João Alves, depois de uma terrível epidemia.

É por isso que ninguém sabe onde é maior o amor, se em Hermes de Paula, se em Montes Claros, uma vez que o autor se mistura com as personagens, numa paixão de nunca acabar.


POR QUE SÃO TOMÉ?

Se o assunto está espichando muito, a culpa pode ser debitada ao leitor. A culpa ou o mérito, porque o leitor, em primeira e última análise é quem determina o caminho que deve ser seguido pelo cronista. Quando escrevemos em jornal, nosso maior prêmio é a leitura imediata, a apreciação do conteúdo, os comentários que fazem amigos e adversários, conhecedores, doutores ou simplesmente curiosos. Não adianta escrever para não ser lido. Quem escreve para si mesmo não deve publicar o que produz e os escritos poderão continuar guardados, em gavetas ou dentro de folha de livros, embora esse ato possa prejudicar a um virtual leitor, muitas vezes ne cessitando de uma talvez preciosa informação.

Mas qual é mesmo o assunto que eu estou espichando? Nomes de ruas, uai!... Esse manancial que Montes Claros oferece a mancheias, rico, quase folclórico, divertido, de certo modo até com características históricas, o que poderá ser útil, no futuro, a alguém que queira inventariar ou associar fatos da vida da cidade.

Combinei com Haroldo Lívio para ele escrever o que sabia, já que ele foi o puxador do samba, mas o meu caro amigo e colega, num terrível silêncio, bateu asas e voou para um congresso de oficiais de cartórios em plena realização na bela Fortaleza do Ceará. Pode ser que, de lá, o Haroldo mande pelo
menos um postal para o Lazinho, dizendo não ter se esquecido
dos tão saudosos Montes Claros dessa iniciante primavera.

Minha história de hora é ainda do bairro Todos os Santos, pedaço de terra que o Simeão Ribeiro Pires santificou desde o papel vegetal do projeto-piloto, quando ele tinha escritório ao lado do Colégio Imaculada, naquele velho prédio da fábrica de tecidos de sua família. Digo minha história, porque nesta eu to mei parte, parte ativa. Foi uma pacata sessão de nossa Câmara Municipal, com todos os senhores vereadores presentes, num dia em que alguém disse não poder o bairro Todos os Santos ter uma rua com o nome de Antônio Narciso, não sendo ele santo de papel passado, embora membro de uma tradicional e respeitável família, a mesma do colega Paulo Narciso, o homem da FM. Haveríamos, então, de achar um nome de santo, para a rua que hoje é chamada de São Tomé.

A primeira sugestão de projeto partiu de Jonas Almeida, que propôs o nome de São Judas Tadeu. Neco Santamaria não gostou da ideia e protestou na hora: São Judas não podia ser, porque é nome de traidor, que tinha vendido o chefe para os judeus. Não sei se foi o Humberto Souto que tentou um conserto de situação, indicando o nome de São João Nepomuceno. Ainda aí, Neco não concordou, dizendo que esse nome também era suspeito, muito complicado. Explicado tudo muito bem explicado, que S. Judas Tadeu era outro que não os Isca-riotes, que São João Nepomuceno era até nome de cidade, tão bom que era, o Neco continuou irredutível. Além disso, havia muita rua com o nome de São João, inclusive no bairro. Que arranjássemos um outro.

Foi nessa hora que me lembrei de um velho amigo que, antes da abertura da rua, já morava naquele local, atrás do campo do Cassimiro de Abreu. Era um servente de pedreiro muito bom, alegre, trabalhador, casado com uma senhora muito distinta, boa lavadeira, boa doceira, prestativa. D. Pedrelina.
Nunca ninguém jamais havia ouvido falar mal dele, era bom companheiro e bom vizinho, e tinha um nome muito sugestivo, de santo muito conhecido: chamava-se Tomé. Tomé de que, não sei. Tomé nome de santo. Neco protestou, ainda, dizendo que esse santo não tinha fé, e precisou de colocar o dedo na ferida de Jesus Cristo para acreditar na verdade. Não teve jeito, a Câmara estava decidida. Convencemos o Neco, que esse São Tomé era muito bom, tinha até os méritos das ciências exatas, porque queria ver e tocar para crer. A decisão não demorou e foi unânime. Hoje a rua chama-se RUA SÃO TOMÉ, e tem mora dores muito importantes...


PRIMEIROS PASSOS

Não sei bem, mas ser jornalista era um sonho que eu acalentava há muito tempo, bem antes de ter-me mudado para Montes Claros, nos meus adolescentes dias de Taiobeiras, tempos de convívio com tudo que um ainda quase menino poderia sonhar. Escrever para jornais e revistas, naquela época já não me parecia uma coisa totalmente impossível, tinha cheiro de realidade, com boa marca de prazo por acontecer. Na verdade, foi de lá o bom começo, nos meus primeiros exercícios de charadismo e de palavras cruzadas, quando não me limitava à passividade das decifrações, mas indo com determinação a bem mais do que isso: passei a com por charadas e a construir os primeiros desenhos e armar as primeiras batalhas de vocábulos e siglas, encaminhando-os à Revista “Libertas”, que a Polícia Militar publicava em Belo Horizonte e à “Revista da Marinha”, que o Ministério da Marinha editava no Rio de Janeiro. Era uma experiência e tanto, uma grande alegria ao ver textos e nome publicados em letras de imprensa. Aníbal Rego, amigo e companheiro de estudos, um dos melhores professores que já tive, muito me incentivou, procurando valorizar meus primeiros passos nesse tipo de atividade na imprensa. Desenhar a nanquim eu sabia de alguma forma, o que eu não sabia era datilografar, que era coisa difícil em cidade de interior. Foi aí que Ageu Almeida, outro amigo, nas horas de folga da farmácia, me deu grande ajuda, ensinando-me, corrigindo e, mesmo, passando a limpo minhas primeiras produções. Foi uma boa escola, coisa de jamais me esquecer.

Depois, vendo meu esforço, meu interesse, meu pai comprou uma máquina de escrever e um método simplifica do de datilografia. Foi para mim, não tenho dúvida, uma fase de encantamento e alegria. Ainda me lembro de tudo como se fosse hoje: coloquei máquina e livro em cima da canastra de madeira e couro, que havia no meu quarto, bem em frente à janela para aproveitar a claridade, e passei a gastar nos exercí
cios resmas inteiras de papel almaço, batendo e rebatendo as quatro carreiras de teclas - dedos das duas mãos - até adquirir razoável destreza para escrever bilhetes, cartas e pequenos relatos de acontecimentos de cada dia.

Foi assim que – quase datilógrafo - cheguei a Montes Claros, em janeiro de 1951, já com meio caminho andado para trabalhar em jornal. Quando o prefeito Enéas Mineiro e médico Luiz Pires fundaram “O Jornal de Montes Claros”, alvoroçado, vi abrirem para mim as portas de uma nova profissão, sentindo mesmo que o grande sonho poderia transformar-se em realidade. Nada, porém, aconteceu, porque o excesso de trabalho no comércio, as tarefas no Colégio Diocesano, a leitu ra de pelo menos um livro por semana, as cartas para Olímpia, tudo, tudo não deixava tempo para o futuro jornalista. Na faixa
dos sonhos quase reais, num querer muito, acompanhei, mais
do que interessado, a primeira fase do jornal, principalmente as polêmicas entre professor Pedro Sant’Ana e o jovem médico João Valle Maurício.

Depois veio a política estudantil no grêmio do Instituto Norte Mineiro, com eleições perdidas e eleições ganhas, liderança construída quase a ferro e fogo. Foi também nesse tempo que recebi de Waldir Senna a presidência do Diretório dos Estudantes, numa velha sala da rua Doutor Santos, em frente
ao Hotel São José. E daí, para quem vinha de tão longe na vida estudar de favor, o novo cargo era um brilho súbito, uma quase consagração, nome diariamente no rádio e pelo menos duas vezes por semana nos jornais. Deve ter sido por isso que o professor José Márcio de Aguiar, que não era tão meu amigo como o era de Haroldo Lívio, resolveu atender o pedido de Oswal do Antunes e me mandar para o JMC. Antes, recomendou-me o máximo de respeito à gramática, cuidados no contato com o público, e mais do que isso:
nunca esperar do jornalismo a riqueza de saldos bancários, porque jornalismo teria que ser sempre um sacerdócio, ou mais do que isso.

Trabalhei três meses sem ver cor de dinheiro, tudo com pletamente de graça e até com alguma despesa saída do meu próprio bolso. Depois, Oswaldo destinou ao jovem e apressado repórter o diminuto salário de mil cruzeiros, quantiazinha que nem dava para pagar um mês inteiro à pensão de D. Duca.

Um bom começo. Claro, um bom começo!


PROFESSOR ZECA

Acho que esta crônica deveria estar sendo escrita por Haroldo Lívio. Ele a faria bem melhor, com mais sabor telúrico, uma vez que ele sente muito mais de perto a força da terra de Grão Mogol, o cheiro do amor metafísico que perpassa pelas ruas tortas e pela velha praça nominalizada pela placa mais bonita que já vi, a placa da Praça Prof. Ezequiel Pereira, bem o no centro da velha cidade. O Professor Zeca é de Grão Mogol, de lá mesmo, município cheio de pedras escuras de verde-musgo e maduras de amarelo-dourado, lugar de águas tão claras como o cristal mais claro, árvores de um verde tão intenso que faz doer-nos a vista. Nascido lá, ali tomando contato com a natureza e com o mundo, lendo e escrevendo as primeiras letras, construiu, desde menino, um feliz alicerce de vida feliz.

Não sei quantos anos tive de convivência com o Professor Zeca nem posso precisar bem a época dos nossos primeiros encontros, de quando eu comecei a beber na fonte inesgotável de sua sabedoria, do manancial de erudição tão maravilhoso que ele sabia muito bem guardar envolto numa sincera e natural simplicidade. Foi o Professor Zeca um dos homens maiscultos e mais humildes que pude conhecer até hoje, cultura que a gente tinha de minerar aos poucos através de perguntas, de colocação de assuntos que pudessem provocar sua obriga ção de ensinar, de esclarecer. Sabendo muito, por demais preciso nos seus conceitos de ciência, de filosofia, de religião, de linguística, parece que tinha medo, ou mesmo por excesso de amor evitava ofuscar os que sabiam menos ou quase nada.

O Professor Zeca era impecável na limpeza. Limpeza física e de coração, limpeza de ideias, de vocabulário, uma limpeza alegre, descontraída, despojada de qualquer tipo de pompa ou de orgulho. Sua presença colocava as pessoas tão à vontade como se elas estivessem numa respeitosa festa de família. Era
um homem de bem, tudo indica, sem qualquer defeito visível ou invisível. Os que conviveram mais tempo com ele – Olímpio Abreu, Ney David, D. Deuslira Filpi, D. Lisbela, D. Lia Rameta, João Afonso -, todos dizem nunca terem notado nele qualquer
faceta negativa. Espírita desde os treze anos, juntamente com
seu famoso irmão Cícero Pereira, Professor Zeca foi estudio so da doutrina até os 84, paciente nas anotações, firme e sem desfalecimento até o fim. Um erudito, obediente à codificação, firme no escrever e no proferir palestras, mestre admirado de muitas gerações.

Terminamos, hoje, a semana de comemorações do centenário de nascimento do Professor Zeca. Foram dias de repasse de feitos grandiosos de um homem que jamais sonhou com grandezas. Professor, coletor do Estado, chefe político, guarda-livros na antiga fábrica do Cedro, foi sempre metódico e seguro nas suas decisões. Foi um dos fundadores do Centro Espírita Canacy, no início do século, companheiro também de Aristeu de Melo Franco e de Sebastião Sobreira. O Professor Zeca não estudava só em português e não podia assim fazê-lo numa época em que muitos livros importantes não haviam sido traduzidos para nossa língua. Lia diligentemente em francês, inglês, italiano, espanhol, esperanto. Eram excelentes seus conhecimentos de grego e de latim. Um intelectual exemplar.

O Professor Zeca, Ezequiel Pereira, foi sempre um ho
mem de bem!


REIVALDO E OS ARQUITETOS

É claro que venho acompanhando, de muitos anos, a vida de jornal do meu amigo Reivaldo Canela. De quantos, não sei. De muitos, desde quando ele começou a cometer os primeiros poemas e sonetos, todos, por sinal, já de boa qualidade, acredito por influência ou por críticas de Cândido pai. É que Reivaldo tem, por natureza, alma e coração de poeta, sem pre ligadão a tudo que toca o sentimento, a beleza do existir. Homem dos passarinhos de vida livre, isto é, passarinhos que vivem fora das gaiolas, Reivaldo conhece línguas e dialetos de aves e de mamíferos também. Homem do verde ecológico, fisca liza pelo amor até as estações que começam a terminam quatro vezes por ano. Um caso de paixão existencial, alimenta e escreve, sonha e realiza sonhos de pequeninos tizios e domiréis da sua praça e do seu quintal.

Agora, vem Reivaldo fazer a sua melhor crônica, a mais direta, a mais enxutinha de adjetivos, leve, gostosa, tranquila, plena de uma atualíssima dose de romantismo montes-clarense, quando fala de dois arquitetos bem nossos: o joão-de-barro e o joão-doutor. Foi o escrito mais descontraído que o JMC publicou nos últimos tempos, falando de dois profissionais donos da nossa maior admiração, o João Carlos Sobreira e o joão-ma-rido-da-joana-de-barro, dois entes sertanejos, pacíficos bichos do mato, ambos admiráveis pais de família, cidadãos brasileiros de uma simplicidade de fazer gosto! Como Reivaldo soube descrever tão bem os dois engenheiros amassadores de barro lá do bairro Jaraguá e de toda a cidade dos Montes Claros! Como ele falou com jovialidade do marido de Baby e pai de Rafael e Isabela! Como agiu com justiça, gastando palavras com gente tão cheia de ternura! Foi bom, Reivaldo.

O João Carlos Sobreira, Reivaldo, é também velho amigo meu, embora como no seu caso, não de convivência tão amiúde como seria de desejar. Ocupados, e muito ocupados todos nós, não temos tido o tempo necessário para aproveitar a nossa sabedoria dos dois arquitetos-joão, um dos “savoir-vivre”, outro do “savoir-faire”, ambos operários da eterna construção. João Carlos, acredito o maior conhecedor do “Grande Sertão-Veredas, leitor infatigável do grande Guimarães Rosa, é realmente um irmão de tudo que cheire a vida. Sentimental, sem pieguismo, intelectual, sem afetação; homem de fé, sem idolatria; é ele um ser real da hinterlândia verdadeira enamorado da Natureza um Espírito do bem! Um joão-de-barro do gênero humano, Rei valdo!

Sobre este assunto, a Baby e eu conversamos com grande alegria, num intervalo de aulas na Fafil. Ela estava simplesmente encanada com o que Reivaldo escreveu, atenta, conhecedora de cada detalhe, alma sintonizada em cada movimento das frases. Quando lhe falei que Reivaldo tinha conseguido uma obra-prima, quanta felicidade pude notar nos olhos da mulher de João! Foi tudo muito gratificante, algo assim que valoriza o próprio ato de viver.

E como foi você, Reivaldo, que começou, cabe-lhe um cré
dito de alegria no calendário da eternidade. Agora e sempre!


ROTARY CLUBE
MONTES CLAROS - NORTE

A primeira vez que ouvi falar do Rotary Clube Montes Claros-Norte foi pela voz educada e amiga de Nathércio França, acredito num mês de março de 1969, quando ele me convidou para fazer parte da lista de fundadores. Era Nathércio o encarregado, a pedido do Governador do Distrito 452, de tomar todas as providências para a organização do quadro de sócios e apresentação dos documentos, assim como do levantamento das possibilidades de serviços à comunidade pelo novo clube. Trabalho difícil, suado, mas nunca impossível para o dinamismo diplomático de Nathércio. A confiança nele depositada pelo Rotary Internacional seria, muito antes do tempo previsto, marcada do maior êxito, com o clube oficializado já em maio, com as primeiras reuniões no Automóvel Clube. Foi Benoni Mota o presidente provisório. Trinta e dois eram os sócios, representantes de quase todos os campos profissionais da cidade.

Lembro-me perfeitamente do zelo com que o Nathércio França ensinava aos novos companheiros toda a trajetória de trabalho que deveriam seguir, de forma a fazer do Rotary as possibilidades de firme prestação de serviços. O cuidado dele em semear a boa semente era tanto, sua sincera pregação de
filantropia era tão grande, que muitos dos convidados preferiram afastar-se logo, nem chegando a oficializar a admissão. O Rotary Norte teria de seguir o exemplo de energia do Rotary Montes Claros, há quase três décadas campeão de progresso em todos os setores, decididamente um dos melhores clubes do País na década de cinquenta. Estava lançado um enorme compromisso, iniciada uma entusiasmada luta.

Dos velhos companheiros do tempo de recebimento da carta constitutiva, dos muitos que trabalharam pela afirmação do clube na primeira fase, olho hoje a relação, e pouco mais posso ver que uma imensa saudade.

Quanta distância o tempo tem provocado! De uns, uma eternidade: Antônio Augusto Barbosa Moura, José Comissá rio Fontes e Ricardinho Francisco Tófani, há muito no Mundo Maior, deixando entre nós um incomensurável vazio. De ou tros, que a vida ainda nos faz companheiros, inclusive em ou tros Rotary Clubes, uma vontade sincera de que voltem para o
nosso convívio a cada semana, a cada dia de atividades, com um recomeço de alegrias. Tenho certeza de que a felicidade de ontem seria a mesma de hoje!

Em 1989, no mês de maio, o Rotary Clube Montes Claros-Norte estará comemorando seus primeiros vinte anos de atuação. Será uma oportunidade de relembrar, perfilando ve lhas histórias de Hermes de Paula, toda a tradição rotária dos Montes Claros, o mundo de trabalho realizado pelo bom com panheirismo de várias gerações.

Afinal, foi exatamente aqui o local de fundação do terceiro Rotary Clube brasileiro, num sonho, que, sem dúvida alguma, muito deu certo.


ROUBARAM DE NOVO
O MEU TOCO

Para mim, mesmo como brincadeira de jovens, é um ato de violência tirar, na calada da noite, o meu toco de doze anos de serventia. E um pedaço de madeira velha estragada pelo sol e pela chuva, sofrido pelos maus tratos da meninada, pisado, rolado, empurrado. É tudo muito primitivo, com profundas fendas do próprio corte a machado, sem casca, um eterno banco de fim de rua, mas é meu, da minha família incluindo as moças que moram em nossa casa. Explico melhor: quando mudamos para a nova casa, também na rua São Sebastião, próxima ao Corredor do Pequi (perdoe-me Iara, Rua Cel. Francisco José Souto), na confecção de duas mesas, sobrou-nos um pedaço roliço de madeira, não usado por não ser de boa qualidade e estar um pouco estragado. Fora de uso, foi colocado na porta da rua em cima do passeio, bem colado ao muro, como se fosse um banco ou um cepo deitado. Foi uma beleza, útil todos esses anos, um ótimo lugar para se bater um
papo com a vizinhança, um ponto para as secretárias namora
rem, uma recepção avançada dos rapazes e moças para os seus amigos também jovens.

Durante doze anos, nosso toco ficou ali, como uma for taleza, uma garantia de bons encontros, um marco de muita felicidade doméstica. Os vizinhos se acostumaram com ele. Servia até de referência quando a gente chegava de táxi: “-Pare naquele portão, onde está o toco”. E os motoristas entendiam logo. Pois um dia aconteceu o pior, e o nosso toco sumiu. Enquanto eu viajava de Brasília para Montes Claros, na noite de seis para sete de setembro, quando vinha comemorar os meus cinquenta anos de vida e os da Pátria, já de madrugada, dei-me por falta dele. Foi uma tristeza! Quando os de casa acordaram, mesmo atarefados com a festa, sentiram o mesmo trauma, uma falta importante e constrangedora: o toco sumiu, sumira misteriosamente...

Já refeitos da perda, consolados todos, acostumados a uma ausência, Olímpia vai a Belo Horizonte e, lá, Wladênia dá-lhe a notícia que lera no jornal. O toco havia sido apreendido por soldados do Exército. Estava preso, retido ou depositado na Delegacia de Polícia, ao que tudo indica como objeto de uma possível conspiração, uma sabotagem ao desfile da Independência. É que rapazes, parece que dois, estaturas médias, cabelos lisos, aparentemente de 22 anos, de óculos, montados num Gol branco, haviam levado o toco para a avenida em frente ao Colégio Imaculada, justamente onde o desfile ia passar. E como a segurança precisava da passagem livre, deu uma carreira nos brincalhões (ou sabotadores, quem sabe o que se esconde nos corações), e levou o estranho objeto para a cadeia da Dr. Veloso, anunciando o acontecido para ser devidamente apurado. Foi assim, quase assim, que o jornal contou...

Pois bem, de volta a Montes Claros, eu ainda em Brasília, Olímpia conta-me a estória pelo telefone. O nosso toco estava
preso e precisava de libertação. Um caso complicado na Justiça, ou melhor, na Polícia, envolvendo problemas de segurança. Deveria ou não deveria acionar o advogado da família, liber tando nosso toco das malhas da lei? Claro que isso é que seria o correto, responde-lhe. O João Wlader não é advogado? É uma boa causa, se não rendosa, pelo menos interessante: que ele coloque os seus conhecimentos jurídicos em defesa do nosso toco... Que vá conversar com o senhor Delegado, uai! A Pátria e nós somos vítimas de uma injustiça, de um ato impensado dos jovens do Gol branco. Agora, além de nosso, o toco é patrimônio nacional!

O João Wlader, doutor, foi, conversou, explicou, muito disse de nosso amor pelo velho companheiro de doze anos. Sério, a principio, como autoridade, o Delegado acabou achando graça de tudo que aconteceu. Todo mundo, na Delegacia, parece, sabia só de uma parte do acontecido e o desfecho foi uma alegria! O toco veio de volta como uma pessoa querida que marca saudades! Uma festa e quantos e quantos sorrisos, inclusive o meu, na volta a Montes Claros! E a velha estória da
ovelha perdida...

Mas sabe o que aconteceu? O destino pregou-nos ou tra peça: quando chegou a Primavera, em outra madrugada, alguém, de novo, levou o nosso toco! A frente da nossa casa está limpa, desmobilada. Também uma parte secreta do nosso
coração... Parece que a nossa sorte é ficar sem!
Paciência...


SAUDADES DA IRMÃ
DE LOURDES

Minha querida irmã de Lourdes, como são lindos os teus versos nos cantos da manhã de azul! Quão saudoso é o São Francisco, teu vassalo e o rio-mar, tristeza e alegria de todas as lembranças da mocidade! Como são lindas as manhãs imponderáveis, os fios de horizontes de contras te com as horas mais doces! Quanta sensação de cheiros e de cores de todas as rosas dos arminhos dos verdes anos! Januária, Januária, há coisas mais lindas no amor? Todos os sonhos se realizam no espaço-tempo de um belo coração. Tua poesia, Irmã de Lourdes, teu ‘Caderno de Lembranças’ é a luz mais clara da infinitude da alma, um halo da cor do céu, reflexo de águas mansas que passam numa eternidade!

Teus pescadores singram um rio de sonhos e se alimentam de brisas de todos os mares da imaginação!

Gostei imensamente da amorosa adjetivação do ‘Cader no de Lembranças’, livro de poesia dos mais coloridos substantivos, abstratos para a vida comum e concreto para o pensar do artista. Versos de angelitude e de fé, gratificantes do mais santo poetar. No mundo sem ser do mundo, reais no aqui e no agora, jamais abandonam o espaço-tempo de quem sabe voar no mais verde da esperança. Irmã de Lourdes é namorada do azul e, queira ou não, suas personagens terão sempre o colorido das águas e do céu do São Francisco: Celeida, Celeste; Marina e até Dulce, com doce de perfume de infinito! Há no breza nas flores, há nobreza nas pedras, haverá sempre joias para enfeitar a amizade sempre próxima da pureza do encanto. Grata aos que sabem viver pelo estudo e pelo amor, Irmã de Lourdes desfila uma galeria de nomes de reconhecido valor: Yeda, Genoveva, Jacy, Heloísa, Luiz de Paula, Antônio Augusto Veloso, das Irmãs Guiomar e Edmunda.

Irmã de Lourdes, como irmã e como professora, tem, na turalmente, um seu mundo bem diferente do nosso.

Não tem como não poderia ter muitas das nossas imediatas preocupações, tão naturais à guerra da vida de todo dia. Seu universo é povoado de muito futuro, quando pensa nas outras pessoas, e de muito passado, quando pensa em si mesma. O presente não importa quando ela vê – e é bom que isso aconteça sempre – o lado bom dos que passam pela sua amizade e carinho. Assim, suas flores são lírios, rosas, jasmins,
miosótis, o tão grato manacá todas vivas de transparência, exalando perfumes de amor! O cristal, o diamante, a turquesa,
a esmeralda são nuanças do verde-azul do rio de Januária, ou
do mar de Olivença tão vivos no coração. Quando fala de rubis
não quer dizer outra coisa que o pulsar dos anti-crespúsculos
presentes no rio natal.

As cidades de Irmã de Lourdes acordam a voz dos séculos e marcam muitos sóis de primavera no texto suave da Boa Nova, na mais linda das mensagens de todos os tempos. Através dos versos o perfume do Líbano, lembranças dos cedros; a alma do Sião, mensagem de aguadeiras e de pastores, orvalho de manhãs de intensa luz; o barulho juvenil de Cades, movimentação de dançarinos e mercadores; e esperança de Jericó, lugar sagrado de encontro entre a verdade e a fé. As cidades da Irmã de Lourdes têm o azeitonado tom de Olivença, o brilho de névoa de Friburgo e todas as sequências de matizes das mais ternas de todas as cidades do mundo: Januária e Montes Claros.


SAUDADES DO MERCADÃO

Para ter saudades do velho mercadão da Praça Dr. Carlos é preciso ter algo mais de trinta anos, uma certa idade de jogador de futebol que já anda querendo deixar ou ser deixado pelo clube. Gente de menos de vinte anos de Montes Claros ou não conheceu ou não se lembra do velho casarão, que marcou tanto a nossa vida de jovens, pois lugar obrigatório de passagem diária ou de trabalho e ganha-pão. Velho, sujo, defeituoso, profundamente marcado pelos anos era, entretan
to, uma construção feita com ar de suntuosidade, grandalhona, cheia de grandes portas e largas janelas, escura e clara ao mesmo tempo, dependendo do ângulo de observação. Muito largo e espaçoso, tomava conta de toda a pracinha entre as ruas Rui Barbosa e Cel. Antônio dos Anjos, entre a São Francisco e a Dr. Carlos, onde hoje fica o “Cimentão”.

Celeiro de vida movimentada, o Mercado começava o barulho a partir das cinco da manhã, quando cavalos, burros, bestas e jegues de carga, resfolegando, eram amarrados nas árvores, nas argolas e nos morrões a eles destinados pela Prefeitura. As bruacas, os embornais, os jacás eram carrega dos calmamente para as laterais do lado de fora e do lado de dentro, cada um julgando-se dono do lugar, pela tradição ou simplesmente porque havia chegado primeiro. Fila não existia, quando muito uma carreira no chão, formando montinhos de maxixes, de panãs, de pequis, saquinhos de andu, de feijão de rama, de arroz com casca, de remédios, ou montões de raízes de mandioca, de batatas, de melancias, de abóboras de porco ou morangas. Era um colorido de fazer gosto, onde eram incluídas as laranjas, o bacupari, as tangerinas, limões verde-ama relinhos, a pimenta-de-cheiro.

Havia também barracas de lona, com toscas mesas, onde eram vendidas as talhadas de requeijão e doce-de-cidra, pedaços de queijo e rapadura. Normalmente, havia também um pote com copos feitos de latas e folhas de flandres para vender moreninha com bicarbonato, coloridas e transparentes de dar gosto! Para não esquentar, as garrafas e os litros ficavam sem
pre na sombra, assim como os copos de vidro, mergulhados numa bacia de alumínio cheia d’água. Quando o freguês que ria beber, o vendedor tirava o copo, sacudia-o para jogar fora as gotas de sobra e punha o bicarbonato com uma colherinha de chá. Para despejar o refresco, subia bem a vasilha, fazendo uma linda espuma.

Do lado de dentro, principalmente nas portas da Cel. Antônio do Anjos e da Rui Barbosa, os vendedores de carne, com varais e mesas engorduradas, cheias de panos de toucinho, de
tripas, de sebo e de fressuras. A carne de sol e mesmo a car ne fresca eram penduradas nos ganchos como o mais natural dos mostruários. No chão, os ossos grandalhões, as cabeças, os entrecostos, os mocotós, as rabadas, os miúdos vermelho-escuros. Bonito mesmo eram os pedaços de bucho branquinhos, bem limpos, convidativos, ao lado da carne de porco e das pas
sarinhas. De vez em quando, uma oferta de caça, uma cotia, um quarto de veado, um tatu, uma zabelê ou uma codorna. Peixe quase sempre ficava separado para não misturar os cheiros, sendo os mais bonitos os dourados e as pensas de lambaris, normalmente já secos e salgados.

O mais interessante, porém, era a paisagem humana, gente de toda espécie, num vaivém de se admirar, quase sempre numa interminável pechincha. Havia também muitos botecos, onde a cachaça corria solta, pura ou misturada com remédios ou folhas para dar cor mais agradável. Lembro-me, com saudade, das vendas de Jonas Almeida e de Tiano, parece as mais movimentadas, onde os fregueses eram atendidos com mais amizade e podiam deixar os tarecos enquanto faziam a ronda para encontrar vizinhos, amigos e conhecidos ou, sim plesmente, para dar uma olhada nos acontecimentos. Tudo muito familiar como uma grande casa de parentes, onde o barulho e a algazarra conviviam com a pressa de donas de casa que compravam as verduras pouco antes do almoço.

Será que vale a pena buscar a marca da saudade?


TEMPOS DE CASSINO

Não havia a Rua Lafetá desembocando ali na Rua Carlos Gomes. O que havia lá era só o esplendor do Alhambra, casa de mulheres grã-finas, chefiada com mão-de-ferro por Ana Reis, uma organização de dar gosto. A Rua Lafetá só foi aberta já no fim da administração do Capitão Enéas Mineiro, quando este a ligou com a Rua Visconde de Ouro Preto, que até hoje conserva o nome. Era nesse encontro de esquinas que ficava o cassino, casa de festas, de jogos, de encontros, que tinha na placa o respeitável nome de Clube Minas Gerais. Ao lado, em volta, pertinho, longe, dezenas de casas de mulheres, com janelas apinhadas de propaganda viva, contida algazarra de quem precisava acatar as exigências das famílias vizinhas. Durante o dia, certo respeito. A noite, agora sim, é hora de se
divertir, pode levantar o tom da música que é tempo de praze
res. Todos os homens, tendo dinheiro, estão convidados!

Foi por causa do cassino que não pude ficar morando na Pensão de D. Ismênia, na Praça de Esportes. Menino ainda, não ficava bem passar, toda hora, em frente das casas ditas de tolerância, subisse pela Rua S. Francisco, pela Carlos Gomes ou pela Altino de Freitas; pela rua Lafaiete, aí nem pensar, era lá o centro de tudo, a capital do pecado. Sabedor-mestre da situação, Dr. Carlyle Teixeira, meu conselheiro, mandou-me para a Rua Afonso Pena, no beco do Padre Marcos, para a Pensão de D. Tonica, lugar de gente muito mais seria. De lá para a Loja Imperial, durante o dia, ou para o Colégio Diocesano, durante a noite, era um pulinho, e bem a salvo da malandragem ou da perdição. . . Assim era mais seguro, pensava ele.

Engraçado é que, apesar de todo esse cuidado, por ser eu amigo de Anibal Rego, que, por sua vez, era amigo de Ana Reis, raro foi o dia em que eu não passava pelo Alhambra, para ouvir rádio ou escutar conversas do mulherio de luxo, não sei que tempo eu encontrava para isso. O cassino eu via por cima, da sacada, lá dentro a orquestra ou um tipo de conjunto musical dirigido por Godofredo Guedes, um mestre da clarineta, a de dilhar e soprar boleros, tangos e velhas músicas de jazz. Com dezesseis anos apenas, entrar na festa estava fora de qualquer cogitação. Este direito ficava com os rapazes mais velhos como Geraldo Borges, Geraldo Avelar, Dudu Cunha, Ildeu Gonzaga, Carlúcio Athayde, ou meninos ousados como Bebeto Prates.

De todos os frequentadores das casas de mulheres, o mais importante, o maior galã, era Dudu Cunha. Grã-fino, rico, bonitão, vivia a época de ouro dos donos de caminhão. Na noite em que ele chegava de Taiobeiras, toda a Pensão de D. Ismênia só falava nas suas aventuras, no cuidado que ele tinha com as roupas, com os sapatos, com o perfume, no demorado barbear. Os filhos de Nego do Ó, que vinham de Salinas, Gildásio Ramos, que parece, já morava em Montes Claros, todos ficavam alvoroçados para acompanhá-lo, tirando uma casquinha do seu sucesso. Era um espetáculo para todos nós, os mais novos, mais sensacional do que um episódio de seriado do Cine Cel. Ribeiro. Dizem que, com Dudu, até Nivaldo e Benedito Maciel, os donos da noite, ficavam ofuscados, Montes Claros se curva va perante Taiobeiras!

Fora dai, num outro circuito de que eu só ouvia falar, as estórias corriam por conta de um rico comerciante chamado Kalil, de Ludendorff Pinto Cunha, de José de Souza Zumba, de Benjamim Moura e de jovens doutores bem conhecidos, entre eles Mário Ribeiro, João Valle Maurício e Konstantin Christoff, todos bonitões, elegantes e bem postos na vida. O tempo do Cassino não era mesmo para todos.


TIO ARMINDO MORAIS

Os revoltosos iriam chegar a qualquer hora e, para passar por Salinas, a fazenda do meu avô João Morais tinha que ser caminho obrigatório. Como esperá-los seria loucura ou, no mínimo, ato bem arriscado, todo o pessoal da fazenda tratou depressa de tirar o time de campo e descobrir o lugar mais isolado e seguro que fosse possível encontrar. Aliás, isso não seria problema, pois, quem mais conhece mesmo a sua fazenda é o fazendeiro. Meu avô deu ordens expressas para que levassem de tudo, o necessário para uma agradável aventura de pelo menos trinta dias: material de cozinha, roupas de dormir e de vestir, vacas de leite, garrotinhos de carne macia, porcos, cabritos, frangos e galinhas, capãos, todas as abóboras e maxixes e raízes de mandioca mansa que pudessem tirar, sal, tempero, rapadura, açúcar de pedra, e mais todos os etecéteras – etecéteras. Também o mais importante para os trinta dias de festas: pandeiros, violões, sanfonas e um ou outro garrafão da melhor pinga do alambique, não muita, porque minha família nunca foi de beber lá esse tanto.

Quando penso nessa proeza, não posso fugir à lembrança de saída dos judeus para a Terra Prometida, com Moisés e Josué dirigindo o povo com todos os animais e todos os trecos de valor. Para governar o rebanho, foi nomeado o filho mais velho, o mais ajuizado, o defensor intransigente do patrimônio, já quase em ponto de se casar, o Armindo Morais. Todos contam,
ainda hoje, da pequena viagem, como uma grande saga, um ato de alegre heroísmo, um descontraído sacrifício de velhos e jovens, de patrões e agregados, Mamãe conta que, mesmo nas paradas para o descanso das mulas de carga, o sanfoneiro
tinha de tocar e a dança era obrigatória. Para qualquer fome zinha, morria logo uma leitoa, o arroz com carne, cozinhava fumegando de gostoso. Todos gozavam a vida e só o Armindo
dava o toque de responsabilidade no verdadeiro serviço, só ele
comandava para assunto sério.

Conto esta estória para dizer que talvez tenha sido nesse imprevisto contrarrevolucionário de 1926 o grande início de vida do meu Tio Armindo, um homem de sessenta anos de trabalhos, do dia que se entendeu por gente até a hora final por acidente numa fazenda do Pará. Todo o tempo de sua existência foi tempo sem férias ou feriados e, como não podia deixar de ser, a última viagem era também de serviço. O melhor descanso – dizia – era um bom exercício, uma atividade para ocupar a cabeça, dar tratos ao juízo. Quando sentiu terminar sua tarefa de fazer as fazendas de Salinas, Cachoeira de Pajéu e numa espécie de sesmaria que comprou de Filomeno Ribeiro pelas bandas do Rio Caititu e iniciou um novo império nas matas da Amazônia. Não era homem de pequenos lotes de terra, era um bandeirante e um colonizador.

Foi conversando com Tio Armindo, aconselhando-o e dele recebendo conselho, interrogando-o sempre sobre a importância de terra e da vida, sobre a pragmática do trabalho
e a vantagem de saber pensar, é que criei dentro de mim um grande respeito pelo fazendeiro, pelo homem do campo, a única nação de gente que sabe unir o suor à meditação, sabe remoer calado as fatias de beleza de todas as horas do dia.


UM PRESENTE PARA
O CORAÇÃO

Foi num mês de fevereiro, trinta e dois anos depois, que voltei a rever a minha terra, São João do Paraíso. Foi bem naquele fevereiro brabo de tantas enchentes, estradas intransitáveis, com um mundão de dificuldades para chegar lá, partindo de Taiobeiras. Foi depois de longa viagem por Valença e Nazaré, por Itaparica e Salvador, andanças de muito laudar pelo céu e pelo mar. Em São João, entramos num dia de intensa luz, depois das chuvas. E comigo estavam Olímpia, Rízzia e Gracielle, ao mesmo tempo que bons amigos como Jo aquim da Caixa Econômica, Mário Português e meus cunha dos, Anderson e Nelmy, todos para dar maior prestígio ao filho que voltava à casa. Nas ruas, o Lauro, colega de curso primário, fazia a surpresa com muitas faixas de saudação, tudo muito grato, bom demais para os olhos e para a alma.

Visitas, encontros, apresentações, um rememorar de saudades, o reviver de velhas e bem guardadas lembranças, uma alegria aqui, uma decepção ali, porque nem tudo que o coração registra fica imune à ação do tempo. Jovens transfor mados em velhos, velhos já não em vida. A paisagem já não a mesma e, ainda que melhorada pelo progresso, diferente. Não
mais a ponte dos banhos de meninos pelados e jovens lava deiras; não mais o canavial sem fim; não mais a serra verde
escura ligada às nuvens; não mais a igrejinha do alto do morro, nova em folha; a grama da praça, substituída por pavimenta ção e postos de gasolina; o matagal do cemitério já bairro novo. Tudo mudado. Os olhos procuram, o coração deplora toda a ausência de eternidade nas coisas e nas pessoas! Quanta falta!

A noite, o lançamento do meu livro, na Matriz, o louvor dos discursos, as explicações, os abraços, o rolar de tranquilas lágrimas de gratidão ao passado, a riqueza das lembranças boas que só a infância pôde dar, o olhar reverente de jovens professoras ao camarada da mais velho, amadurecido pelas dores da vida. Olímpia me pergunta baixinho o que me passa pela cabeça, enquanto olho a velha igreja, ouço o antigo sino,
sinto a paisagem pisada por pés descalços em tempo distante.
O que responder? As coisas que passam pelo sentimento não podem ser analisadas, não são lógicas. As imagens são superpostas, principalmente as do meu pai, ainda novo, do meu avô Vicente, de longas barbas brancas, e da tia Raquel e de D. Adelina, gorda e clara.

Vem o segundo dia e, enquanto dia, uma viagem pelo Mato Cipó para visitar os tios Júlio e Diolina, a passagem pela Lagoa da Viada, pelo rio, pelos mangueiros, a procura de velhas estradas por onde costumava passar, indo para a casa de Maria de Silvina, o caminho da fazenda do doutor Osório. A cada lembrança, uma fotografia, a promessa intima de pintar
um quadro. Na volta, à noite, depois do jantar, a palestra na Escola, uma espécie de acerto de contas, um desfiar de vivos sonhos, um voto de confiança e um incentivo às novas gerações. Mais tarde, o passeio pelas ruas, o mingau de milho na sala de jantar de D. Benzinha, o café com biscoitos a convite do padre João, madeirense culto, amigo solícito.

Foi durante o café, sentados em duros bancos, braços sobre uma mesa comprida sem toalha, daquelas feitas com madeira fornida, que resolvi fazer um comentário sobre meu primeiro professor, o velho Joaquim Rolla, mestre de régua e palmatória, de lousa e tabuada, de norma e abecê. Falei da escola, falei dos alunos, descrevi os objetos. Quando ia mostrar que me lembrava também dos móveis, Cristovina, a anfitriã, sorriu maliciosa, e com brilho no olhar me fez arrancar de dentro a mais querida das lembranças, pois aquela mesa, aqueles bancos, todo aquele ambiente era a minha primeira sala de aula. Havia eu, por acaso, me esquecido de que ela era a filha
do professor?

Estava ali o maior presente ao meu coração. . .


UM SONHO NA MADRUGADA

Normalmente, chegávamos à casa do professor José Oliveira Fonseca, na Rua Carlos Pereira, às cinco da manhã. Todos os dias, de segunda a sábado, lá estávamos para a aula de análise sintática e de outras questões mais objetivas da língua portuguesa. Não éramos muitos, mas, éramos bastante curiosos e interessados, principalmente o Mauro Lafetá, o Cor biniano Aquino, o Afrânio Nogueira, o Adil Oliveira e eu. Eles, candidatos ao vestibular de Direito em Pouso Alegre ou Niterói;
eu, estudante do curso de Letras, aproveitando a maestria do
professor Fonseca, o melhor que passou pela matéria em Montes Claros.

Era um tempo excelente, alegre, pleno de maduro entusiasmo, sonhos de pessoas que, a certa altura da vida, sabem o que fazer e com que se ocupar. O Afrânio acabava de deixar as aulas de primeiro estágio do Madureza e já cursava, à noite, as últimas unidades para enfrentar o segundo grau, num esforço tremendo de ano e meio entre a escola primária e a universi dade. O Mauro, com toda aquela pose que Deus lhe deu, sério, compenetrado, sonhador, quase já exigia que o tratássemos de Doutor. Era tudo uma beleza, embora o professor nunca nos tenha dado um cafezinho para espantar o sono do levantar tão cedo...

Foi por aí, madrugadas em transformação de aurora, manhãs de gostoso friozinho para pouco agasalho, que o professor e nós fizemos as primeiras propostas para a fundação da Faculdade de Direito. Entre uma análise e outra, entre um verso e um substantivo, uma nova observação sobre o futuro da segunda faculdade de Montes Claros. Quem estaria disposto a colaborar? Com quais advogados poderíamos contar para a formação do corpo docente? Quem poderia ser o primeiro diretor? Onde funcionar? Onde buscar apoio financeiro? Eram perguntas e mais perguntas, tão constantes e tão assíduas como os próprios formuladores. Não durou muito tempo a temporada de sonhos e cogitações e, em menos de um mês, já estávamos, na rua, buscando apoio, tendo-o encontrado no deputado Lezinho, tio do Mauro e homem próximo ao Governo, e no Inspetor Zezinho Fonseca, que ficou mais entusiasmado do que nós próprios. A luta tomara corpo, criava-se do espírito de séria decisão. O Mauro cada vez mais encantado e, antecipadamente, vitorioso.

Iniciamos as primeiras consultas aos principais advogados, através de uma comissão - Mauro, Afrânio e eu - num desdobramento de trabalho feito antes por Francolino Santos e Corby. Ninguém pode imaginar nem prever as reações humanas e profissionais diante de um desafio. Quem poderia calcular onde estaria o interesse pessoal, o desprendimento, o entusias
mo ou, ao contrário, o medo de futura concorrência? Quem poderia acreditar naqueles sonhadores, querendo fazer as coisas de baixo para cima, invertendo toda a lógica aceitável?

Realmente, diante da proposta, futuros mestres mostraram-se ora alegres, ora tristes, na maioria das vezes terrivelmente irônicos. “Quem” era mesmo que queria fundar uma faculdade de Direito em Montes Claros? Que saberiam aqueles três sobre espírito universitário? Loucos, era o que pensavam que éramos... Por que não iam estudar por correspondência como fizeram tantos outros, passeando de vez em quando? Seria mais fácil do que criar uma escola...

Dois fatores tornaram-se importantíssimos em nossa luta: O JMC ficou contra, afirmando a não necessidade de formação de novos bacharéis, o mundo já estava muito cheio de advogados; apareceram interessados em nosso trabalho o professor João Luiz de Almeida e os deputados Francelino Pereira e Cícero Dumont. Doutor João cedeu-nos as instalações do Instituto para funcionamento da escola e se dispôs a ser o primeiro diretor; Francelino levou as ideias e os planos ao governador Magalhães Pinto; Cícero organizou os estatutos da Fundação.

Ninguém poderia segurar mais. O contra e o a favor estimularam ainda mais nossa frente de batalha. A reação da imprensa provocou um desafio, a ajuda dos amigos poderosos deu o tempero que faltava.

Hoje um final feliz, com a Fadir completando vinte anos! Tenho bem guardadas as gravações do dia definitivo da fundação, reunião realizada na Rua S. Francisco, na Delegacia de Ensino, sala de trabalho de José Monteiro Fonseca!


FERNANDA RAMOS

Segundo Aristóteles, a grandeza não consiste em receber honras, mas em merecê-las. E conforme Edith Wharton, há duas maneiras de irradiar a luz: ser a própria fonte de brilho ou o espelho que a reflete. Grandeza, honra, luz, fonte, espelho, reflexo, um universo de palavras indicativas de valor e mérito. Em todas estas ideias e seus significados posso emoldurar a mulher corajosa e cheia de ideais, que foi D. Maria Fernanda Reis de Brito Ramos, Cônsul Honorária de Portugal no Norte de Minas, minha amiga e mestra de longo tempo em vários setores da vida.

A mesma D. Fernanda, que era capaz de elogiar sem rodeios ou demonstrar uma inconformidade sem indecisões. Foi para esta mulher guerreira, que fizemos uma festa espiritual em comemoração aos seus oitenta anos, mais do que bem vividos. Multiplicando os seus janeiros por meses e dias ou por horas e minutos, e pudemos sempre estar certos de que qualquer medida de sua existência veio gravada de proveitoso construir, do muito amar, de um esforço incrível para melhorar a vida e o viver.

Dela mesma e de muitos.

Dona Fernanda foi um dínamo sem medida de voltagem, uma criatura sem limites na busca da perfeição, exigência própria, exigência com quem estivesse à sua frente ou ao seu lado. Sempre chuva, nunca neblina, nada em D. Fernanda foi calma ria, nada. Para ela, a vida foi busca incessante do que fazer, do como agir, do assinalar exemplos, uma corrida olímpica de pistas e de pódios. Era vencer ou vencer!

A Montes Claros chegou D. Fernanda, jovem esposa de Artur Loureiro Ramos, para ser grandeza do comércio e da indústria, vivência e trabalho na Casa Luso-Brasileira, centro e coração da cidade. Universidade de Coimbra, onde a Faculdade de Engenharia lhe permitiu belíssima formação intelectual e liderança. Aqui o seu maior contato com a realidade regional e brasileira, a sua consolidação no trato de tudo e com todos.
Importantíssimas as atividades de D. Fernanda como líder elista: conselheira, diretora, presidente internacional. Sempre presente em encontros regionais e interpaíses, principalmente em convenções. Como presidente internacional tomou várias iniciativas de elevada repercussão, valorizando grandemente o Brasil e Portugal, além de benefícios aos países irmãos de fala lusitana. Um valioso exemplo de solidariedade e amor!

Três fatos marcaram definitivamente o seu prestígio: a vinda do Cônsul Sá Coutinho e esposa na fundação do Elos de Montes Claros, a homenagem que a dra. Manuela Aguiar, deputada federal em Lisboa, veio trazer-lhe pessoalmente na Sociedade das Amigas da Cultura de Minas Gerais e a sua escolha pelo governo português para o cargo de Cônsul Honorária no Norte de Minas. Quantos e quantos dirigentes do Elos Internacional vieram a Montes Claros a seu convite, por força do seu valor! Lembro-me como se fosse hoje da grande festa de inauguração do Consulado, na sua antiga residência da Avenida Cel. Prates, agora Praça Portugal. Muito difícil repetir o sucesso de D. Fernanda Ramos como o da sua presidência na ADCE, dias realmente dourados para o prestígio da instituição.

Com que entusiasmo D. Fernanda planejou, construiu e manteve o Hotel Fazenda Vista Alegre, local aprazível não só para hospedagens, como também para realização de eventos.
Léon Denis, o sábio pensador francês, sempre achou que não basta crer e saber. É sempre necessário viver e fazer praticar na vida princípios superiores. Nossa existência tem que ser alegre, harmoniosa, plena de bênçãos de paz e de amor, sempre e sempre despertando esperanças. Não há como negar ser o amor a realidade mais pujante, porque o amar é o grande
desafio. O amor deve ser causa, meio e fim. É por isso e por muito mais que Maria Fernanda Reis de Brito Ramos, nossa querida Cônsul, Companheira e Amiga, viveu e sobreviveu em razão dos seus muitos sonhos.


MEU PROFESSOR
JOAQUIM ROLLA

Minha primeira lembrança é do dia em que meu pai me conduziu para a sua escola, na rua de baixo. Foi no início de 1942, acredito no mês de janeiro. O mestre Joaquim Rolla vestia uma bata de professor de cor clara, não sei mais se branca ou em tom cinza. Um homem alto, magro, rápido nos passos, olhar firme e penetrante o tempo todo, com uma régua de madeira, pronta para descer no lombo de quem não estudasse direito ou não desse as respostas certas nos algarismos ou na pronúncia das palavras. No bolso, um lenço grande para secar o cuspe e limpar as lousas que todo nós tínhamos desde o primeiro dia de aula.

As lousas, também chamadas de pedras, eram de ardósia, com moldura de tábuas, utilizadas dos dois lados com lápis do mesmo material. Serviam para escrita de pequenos textos e principalmente para as contas, somas, subtrações, multiplica ção e divisão. Os exercícios eram tantos, que nenhum pai podia comprar todos os cadernos necessários, naquele tempo muito caros. Com seis meses de aprendizagem, eu multiplicava e dividia por doze números, coisa difícil de fazer hoje até com as maquininhas eletrônicas. As somas chegavam a trinta parcelas, conferidas pelo menos duas vezes para evitar o impacto da régua e da palmatória. Só não apanhávamos, se tudo estivesse certo para merecer nota dez. Um nove dava puxão de orelha e coques na cabeça.

Eli, filho de João de Bita e de D. Anísia, era o mais velho da turma. Cristóvão, seu irmão, sentava comigo na mesma carteira e usava o mesmo tinteiro. Um grande colega, mas que me atrapalhou, porque eu colava dele, mesmo não precisando. Durante os meses que estivemos juntos, eu estudei menos do que precisava. Uma pena, pois depois dele, nunca mais deixei de ser o primeiro aluno de qualquer classe, porque estudar muito e caprichar eu sempre soube.

Vou introduzir aqui um texto que escrevi em 1978, quando lancei em São João o meu primeiro livro, Tempos de Montes Claros, e narrei uma visita que fiz a Cristovina. Ei-lo: “Foi num mês de fevereiro, trinta e dois anos depois, que voltei a rever a minha terra, São João do Paraíso. Foi bem naquele fevereiro brabo de tantas enchentes, estradas intransitáveis, com um mundão de dificuldades para chegar lá, partindo de Taiobeiras. Foi depois de longa viagem por Valença e Nazaré, por Itaparica e Salvador, andanças de muito laudar pelo céu e pelo mar. Em São João, entramos num dia de intensa luz, de pois das chuvas. E comigo estavam Olímpia, Rízzia e Graciel le, ao mesmo tempo que bons amigos como Joaquim da Caixa Econômica, Mário Português e meus cunhados, Anderson e Nelmy, todos para dar maior prestígio ao filho que voltava à cidade natal. Nas ruas, o Lauro, colega de curso primário, fazia
a surpresa com muitas faixas de saudação, tudo muito grato,
bom demais para os olhos e para a alma.

Visitas, encontros, apresentações, um rememorar de saudades, o reviver de velhas e bem guardadas lembranças, uma alegria aqui, uma decepção ali, porque nem tudo que o coração registra fica imune à ação do tempo. Jovens transfor mados em velhos, velhos já não na vida. A paisagem já não a mesma e, ainda que melhorada pelo progresso, diferente. Não mais a ponte dos banhos de meninos pelados e jovens lava deiras; não mais o canavial sem fim; não mais a serra verde escura ligada às nuvens; não mais a igrejinha do alto do morro,
nova em folha; a grama da praça, substituída por pavimenta ção e postos de gasolina; o matagal do cemitério já bairro novo. Tudo mudado. Os olhos procuram, o coração deplora toda a ausência de eternidade nas coisas e nas pessoas! Quanta falta!

À noite, o lançamento do meu livro, na Matriz, o louvor dos discursos, as explicações, os abraços, o rolar de tranquilas lágrimas de gratidão ao passado, a riqueza das lembranças boas que só a infância pôde dar, o olhar reverente de jovens professoras ao camarada mais velho, amadurecido pelas dores da vida. Olímpia me pergunta baixinho o que me passa pela cabeça, enquanto olho a velha igreja, ouço o antigo sino, sinto
a paisagem pisada por pés descalços em tempo distante. O que responder? As coisas que passam pelo sentimento não podem ser analisadas, não são lógicas. As imagens são superpostas, principalmente as do meu pai, ainda novo, do meu avô Vicente, de longas barbas brancas, e da tia Raquel e de D. Adelina, gorda e clara.

Vem o segundo dia e, enquanto dia, uma viagem pelo Mato Cipó para visitar os tios Júlio e Diolina, a passagem pela Lagoa da Viada, pelo rio, pelos mangueiros, a procura de velhas estradas por onde costumava passar, indo para a casa de Maria de Silvina, o caminho da fazenda do doutor Osório. A cada lembrança, uma fotografia, a promessa íntima de pintar um quadro. Na volta, à noite, depois do jantar, a palestra na Escola, uma espécie de acerto de contas, um desfiar de vivos sonhos, um voto de confiança e um incentivo às novas gerações. Mais tarde, o passeio pelas ruas, o mingau de milho na sala de jantar de D. Benzinha, o café com biscoitos a convite do padre João, madeirense culto, amigo solícito.

Foi durante um café, sentados em duros bancos, braços sobre uma mesa comprida sem toalha, daquelas feitas com madeira fornida, que resolvi fazer um comentário sobre meu primeiro professor, o velho Joaquim Rolla, mestre de régua e palmatória, de lousa e tabuada, de norma e abecê. Falei da escola, falei dos alunos, descrevi os objetos. Quando ia mostrar que me lembrava também dos móveis, Cristovina, a anfitriã, sorriu maliciosa, e com brilho no olhar me fez arrancar de dentro a mais querida das lembranças, pois aquela mesa, aqueles bancos, todo aquele ambiente era a minha primeira sala de aula. Havia eu, por acaso, me esquecido de que ela era a filha
do professor?

Estava ali o maior presente ao meu coração...


VIAGEM PARA SALINAS

Era uma alegria sem igual quando meu pai avisava que iríamos viajar para Salinas, passando primeiro pela fazenda do meu avô Vicente Arruda, antes de chegarmos a Coqueiros, meio caminho de São João a Taiobeiras. Minha maior curiosidade era pensar em ver a espada com que ele brigava quando novo, uma espada que parecia de prata, com cabo de madrepérola. Muitos os arranjos para preparar as roupas, os chinelos, alguns poucos brinquedos que não pesassem muito. Nada mais que a idade não permitisse.

Para a madrugada de início da viagem, dois ou três dias antes o trabalho maior era de minha mãe e de Silvina para os arranjos de sustento, a lata de matula com galinha e farofa, as
latas de paçocas, cantis com água, os biscoitos cozidos e assa dos, os espremidos, os fritos, além dos bolos.

Com ou sem frio, as despedidas, a calma de Tio Abílio, papai de óculos escuros, chapéu de aba larga e guarda pó.

Durante o percurso, para o descanso dos viajantes e dos animais, a parada nos rios, nas lagoas, principalmente quando a fome chegava. Muita curiosidade quando meu pai queria procurar água no meio das matas, ao ver as pedras, as cruzes na estrada. Mais ainda quando da passagem por Taiobeiras, quando víamos os meninos correndo nos carrinhos, ou andan
do de bicicleta.

Logo após a chegada à fazenda de vovô João Morais e Vovó Ritinha, a primeira providência era lavar o rosto com água morna em bacias esmaltadas, enxugando depois com uma toalha bordada sempre muito bonita. Depois, o melhor era reparar as panelas de leite, o fazer requeijão, os varais de carne, as linguiças dentro da gordura, os chouriços, as mangueiras, a beira do rio. Ainda melhor o correr para o almoço
coletivo na cozinha grandona cheia de janelas. Era um tal de esconder a carne debaixo do angu, ou no feijão escaldado.

Fora da casa, a estrada em curva indo para Salinas, a rede em que vovô João Morais passava o dia e um pedacinho da noite, as estórias que ele contava, enfeitando cada passagem para produzir curiosidade e emoção em novos e velhos, todo mundo sentado ou acocorado para ouvir mais de perto – causos do coronel Horácio de Matos, da princesa Magalona, de Lampião, da Coluna Prestes, quando eles fizeram a maior festa num esconderijo em pé de serra. Mamãe contava estórias de quando eles moravam à margem do Rio Pardo e ela nadava levando o almoço dos irmãos em vasilha presa na cabeça, o curral, o engenho, a cozinha grandona e o fogão sempre com lenha seca e muita brasa, o regador para molhar as plantas, es
tórias de cobras que não morreram quando alguém batia nelas de vara, e aí, ficava magrinha, esperando o ofensor para picar,
as lavadeiras, batendo roupa nas pedras para clarear. Peguei varíola, viajamos de Salinas para São João, eu enrolado em palha de bananeira, única coisa que não grudava nas feridas, pois havia bolhas no corpo inteiro. Quando meu pai e minha mãe chegavam em alguma fazenda para hospedar eram muito bem recebidos como amigos, mas só até a hora que me viam doente, aí recebiam o casal, mas ficavam de longe com medo de contágio. Salvava um em quinhentos. Só vim sarar depois de dois meses de sofrimentos, tendo até hoje uma marca na coxa direita.

Foi em Salinas que meu primo Nenzinho me levou para conhecer e tomar sorvete. Foi lá que vi pela primeira vez uma
revista, a Vida Doméstica. Eu só conhecia jornais, que eram as
sinados não para leitura, mas para servir de papel de embrulho nas lojas e nas vendas. Foi em Salinas que vi pela primeira vez a luz elétrica nas casas e nas ruas. Funcionava só até às 9 da noite, o mesmo horário que meu pai marcava para todo mundo já estar dormindo. Quem chegasse por último, que trancasse a porta. Depois das nove, a luz era de candeeiro de querosene, de fifó de óleo de mamona, de lamparina com azeite doce, uma luzinha só para espantar a escuridão, mais usa das no quarto de mulher parida, após o nascimento dos bebês. Lampião com vidro móvel ou Aladim era só para ocasiões de luxo. O aparelho de rádio era quase redondo e funcionava com bateria ou uma pilha elétrica grandona.


HUMBERTO SOUTO

Tenho obrigação de mostrar conhecimento sobre Humberto Souto, porque tivemos em comum um bom tempo de vida, fase de convivência direta, ele 89 dias mais velho do que eu, ele de junho, eu de setembro de 1934, cinco anos antes da Segunda Guerra Mundial. Primeiro contato no setor de Contabilidade, profissão que começamos bem cedo, início de idade adulta. Ele em um escritório no segundo andar de um prédio da Rua Simião Ribeiro, eu escriturando todos os livros contábeis do Banco Hipotecário, ainda munidos de pena, tinteiro e mata-borrão. Pouco depois, eu como sucessor dele, fazendo a escrita da Cooperativa do DNOCS. Tivemos experiências comuns como estudantes no Colégio Diocesano e Instituto Norte Mineiro de Educação. Curso de Direito, um distante do outro: ele na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, eu na Universidade Estadual de Montes Claros.

Ano de 1953, fomos bons companheiros no serviço militar, Tiro de Guerra 87, esquina da Rua Tiradentes com a Praça da Estação, alinhamento da Rua Melo Viana, instrutor Sargento Moura. Humberto, soldado 40, Wanderlino, soldado 89. Na formação de desfile, um bem longe do outro: Humberto, mais favorecido na altura, na frente do pelotão; eu, um metro de sessenta e três, quase no final. Eu, com toda seriedade possível, aprendendo cada palavra do Sargento Moura, ele, o 40, brincalhão e gozador, parece o único tempo em que não foi sério na vida, quando até emprestar o uniforme para a bagunça de um colega - o Plampona - ele emprestou.

Não tanto mais tarde, já em nossos 28 de idade, 1962, eleição para a Câmara Municipal de Montes Claros. Mesma agremiação política, o Partido Social Democrático - PSD – boa turma de gente séria (de mais idade, o Cel. José Coelho de Araújo), Humberto sempre o líder, raciocínio político perfeito da cabeça e experiência de Neco Santa Maria. Foi de Humberto a ideia de me eleger Vice-presidente em 1965 e Presidente em 1966. Vencidos os quatro anos de mandato, fiz o que pude para ajudá-lo na campanha para deputado estadual. Mesma ajuda em quatro das suas sete candidaturas para deputado federal. Em todo o tempo juntos, um dando crédito ao outro. Humberto sempre com maior autonomia, principalmente em níveis estadual e federal, verdadeiro sucesso de atuação política e administrativa, chegando à Vice-presidência da Câmara Federal, muitas as atuações na Presidência da Casa.

Em plano federal, Humberto foi membro de dirigente de praticamente todas as comissões do Congresso, sem dúvida a grande escola de sua vida pública. Líder do presidente Fernando Collor, resistiu a todas as perseguições, fiel em todos os momentos, sendo o seu discurso final, no dia da destituição, no meu ponto de vista, sua mais poderosa e vibrante oratória, um discurso para jamais ser esquecido. Grande atuação como Presidente do Tribunal de Contas da União, experiência que ele usa até hoje, perfeição de quem sabe tudo das contas do setor público, o que lhe permite ser prudente e de seguro no controle administrativo e contábil.

Concluo, com a segurança de quem pode afirmar, que o Doutor Humberto Guimarães Souto, montes-clarense nascido no Corredor do Pequi, em todos os momentos da sua vida foi um cidadão honesto em tudo que a honestidade pode qualificar uma pessoa. Não sei e acho que nunca vou saber de um ato negativo seu em qualquer setor. Montes Claros e todos nós que amamos a cidade, podemos sempre bater palmas para ele. Nos dois mandatos de prefeito, foi e será de Humberto a maior soma de realizações na cidade e no município de Montes Claros.

Humberto, uma personalidade que será sempre lembra da com amor e carinho!


IVAN GUEDES,
O GRANDE BRASILEIRO

Louvemos as pessoas, em primeiro lugar, pelas obras com que beneficiam o tempo e o espaço e que beneficiam cada movimento do bom viver e da boa convivência. Consideremos, sobretudo, seus atos de fé, seus gestos de gentileza, sua atuação perante a família e os amigos. Consideremos, com o melhor da nossa consciência, os que vivem sempre para o progresso dentro e fora do trabalho. Benditos os que permitem a esperança, os que têm palavras de estímulo, os que são e que estão no caminho do bem e do socorro ao próximo.

Bem-aventurados os que, mesmo nos gestos simples de cada dia, se tornam benfeitores, que têm a felicidade não como estação de chegada, mas como um modo de se movimentar para o futuro. Para estes, não existem cargas mais leves, mas sim ombros fortes e apropriados à tarefa de cada dia; não há ponto final no amor, porque o amor é vida e a felicidade é o melhor jeito de ser e de viver.

Mesmo conhecendo com minúcias a vida do amigo e do meu mais considerado colega de escola, surpreendo-me com “IVAN DE SOUZA GUEDES, este grande brasileiro”, livro fruto das pesquisas e da lavra literária da historiadora Zorai de Guerra David, lente e foco ao mesmo tempo de uma vida cheia de grandeza, sincero retrato de corpo inteiro para o agora e para o sempre: Ivan e família – fundamento sólido; Ivan e Montes Claros, terra dadivosa; Ivan , o empresário; Ivan e a expansão da Minas Brasil; Ivan e sua inter-relação humana e comunitária; Ivan nas comemorações especiais e nas homenagens que tem recebido; Ivan, uma referência e o reconhecimento público. Tudo de vida e ação, tudo de fé e esforço, tudo certeza no valor do trabalho, e acima de tudo, uma confiante esperança de quem sabe o que quer e a que veio. O importante não é passar pela existência, é viver!

Ivan, o filho do alfaiate baiano e intelectual Nino de Souza Guedes e de D. Maria do Carmo, bocaiuvense da melhor estirpe, excelente mãe de família e educadora; Ivan, o marido da doutora Mercês Paixão Guedes e pai dos jovens administradores Leonardo, Lyntton José, Luciano Frederico e Leandro Ivan, tudo gente do melhor que a vida de trabalho pode oferecer, uma verdadeira equipe. Em realidade, uma biografia fértil e bem apropriada diante da riqueza de informações bastante conhecidas, sempre presenciadas por amigos e clientes desde a antiga Farmácia São José, de Juca de Chichico, onde Ivan vendia remédios durante o dia e aplicava injeções durante a noite, parte por ser balconista, parte para ganhar mais uns trocados para ajudar a família e para pagar os estudos no Colégio Diocesano e no Instituto Norte Mineiro de Educação, escolas em que fizemos o segundo grau e concluímos o curso de Contabilidade. Sempre de pé, sempre olhos nos olhos, sempre se movimentando, Ivan nunca se negou a ouvir um cliente em necessidade de um conselho ou do aviamento de uma receita médica. Atendimento nota dez, o selo do sucesso!

Inteligente, empreendedoramente fértil, determinado, consciente no ser e no agir, Ivan nunca teve um dia sem pro veito de aprendizagem e da realização do bem. Sempre ao lado
de Mercês e, ultimamente, dos filhos, cresceu e multiplicou ao
mesmo tempo em que Montes Claros progrediu em tamanho e em qualidade. Das pequenas drogarias das ruas D. Pedro II e Camilo Prates, fincou pé na Doutor Santos com Padre Augusto e, hoje, lidera o comércio farmacêutico no centro e praticamente em quase todos os bairros da cidade, cada ponto
comercial com mais recursos e mais modernidade. Viajante internacional bom observador, soube, juntamente com Mercês, e mais tarde com os filhos, fazer todas as adaptações que o seu comércio permitia e o conforto da clientela podia exigir. O último feito foi a instalação de uma luxuosa perfumaria, que nada deve à praticidade e à beleza das encontradas nos modernos shoppings e nas lojas duty free dos melhores aeroportos do mundo. Progredir é qualificar-se para o presente e para o futuro.


Bonita, admirável, material e espiritualmente encanta dora a vida de Ivan, meu companheiro, meu amigo próximo em quase sessenta anos, seja na escola, seja na vida. Bem sei das quantas dificuldades teve que superar, do quanto teve que se
esforçar, do quanto teve que aprender ao longo da vida. Agora, que Zoraide Guerra David grava em letras e imagens este por tentoso registro, muito mais justiça será feita por quem o conhece no dia-a-dia ou por quem tiver notícia deste livro “IVAN DE SOUZA GUEDES, ESTE GRANDE BRASILEIRO”. Ivan e sua família têm todos os merecimentos. E que Deus os conserve sempre e sempre!


A MAJESTOSA FEIRA
DE CARUARU

Se é maior do que a de Marrocos, eu não sei. Se é semelhante a um mercado persa, não posso saber, pois não conheço nem uma nem outra dessas feiras. Mas de uma coisa eu sei: a feira de Caruaru é ou deve ser a maior do mundo, maior mesmo do que a Feira de Santana, na Bahia, um respeitável conjunto de gentes e de coisas espalhadas por uma enorme praça e um emaranhado de construções, envoltas e rodeadas por um notável barulho de sons semelhantes ao burburinho e à algaravia. Diante de todas as outras, mesmo da de Teresina, a feira de Caruaru merece enorme respeito.

A feira de Caruaru parece aquelas serpentes chinesas, de papel ou não sei de quê, grandalhonas, intermináveis, sinuosas e tremelicantes, que nunca acabam, sem começo e sem fim. Isso mesmo, uma serpente ou um dragão chinês, bem colorido, brilhantes, de mil facetas e formas, com riqueza de pororoca misturada com geometria de Serra Pelada, multidão fervilhante entrando e saindo naquele afã de vender e comprar, um tupiniquim consumismo independente de qualquer plano cruzado. A feira de Caruaru é, antes de tudo, viva, vivaz, estuante de vida e entusiasmo.

Quanta coisa se faz na feira de Caruaru! Lá pode-se comprar jerimum, umbu, macaco, frango, carne seca, farinha de mandioca e de coco, cestos, panelas, coités, tapioca, chaves de bronze, litografias, cerâmicas, tapetes, tudo! Quer consertar um relógio? Quer cortar o cabelo, depilar, experimentar um batom? Deseja fazer uma costura, ajeitar um bordado, esquentar um pedaço de carne, comprar uma pena amarela para fantasia de carnaval? Até se você quiser uma miniatura de uma das naves Apolo ou de um esputinique, não tenha dúvida, vá correndo à feira de Caruaru, porque lá existe de tudo! Roupas de cama e de mesa, enxovais para batizado e casamento, gibão de vaqueiro, fio dental, porta-seios, sungas, anáguas, fitas para penteados, cintos, meias de homem e de mulher, meias de me ninos e bebês, tudo exposto à venda!

Na feira de Caruaru pode-se beber e comer, pode-se dormir e sonhar, pode-se andar e correr, pode-se até ficar parado. É um espaço enorme, para ver e sentir, fazer, escutar ou ler poesias de cordel, ter um encontro com os próprios poetas. De
voto do padim padre Ciço? Milhares e milhares! É o que mais tem! Nesta época do ano, a feira de Caruaru tem até chuva, água vinda do céu, milagre, um grande milagre, para contrastar com o sol do ano inteiro, ou do século!

Como é linda e gostosa a feira de Caruaru!


FACULDADE DE FILOSOFIA

Uma recordação forte, muitas lembranças desde a primeira conversa com Baby e Mary Figueiredo, a inscrição para o vestibular, as aulas de francês e português, as idas e vindas à Secretaria para ver Adélia, e sentir o peso de autoridade de Isabel, eterna diretora que não sai do nosso coração! Nas salas de aula, as presenças de gente que ninguém poderia pensar viver ainda em bancos de escola: Dr. Maurício, Dr. Mourão, Dr. Hélio Moreira, irmãs do Colégio, Omar Peres, quanta gente também da Pedagogia, tantos e tantos nomes de valor!

Inaugurar a FAFIL era quase um abrir de portões do fechadíssimo Colégio Imaculada para o grande público, principalmente para os homens, classe que ali não tinha acesso a não ser quando professores de reconhecida respeitabilidade. Abrir as portas da FAFIL foi um renovar de atitudes, um início interessante de experiências, quando recatadas freiras se sentaram receosas de contaminação com o público externo, quando moças e moçoilas foram se afirmando nas primeiras minissaias e uso de linguagem um tanto livre, em palavras novas da gíria nacional, ideias para época um tanto avançadas. Além de todas as sensações, mais a certeza de ser aquela a primeira escola de nível superior da região, um marco que mesmo os cegos poderiam ver e contar como escala de progresso. Tudo era motivo de curiosidade!

Creio que o grande laboratório de ideias a usina dos sonhos tenha sido mesmo as salas de aulas da Universidade Federal de Minas Gerais, onde moças montes-clarenses terminavam diferentes cursos, tão distantes uns dos outros que iam da História à Pedagogia, das Letras à Matemática, da Geografia às Ciências Sociais. Diplomatas, portadoras de muito saber e incentivo de antigos professores da capital, Isabel Rebelo de Paula, as irmãs Baby e Mary Figueiredo, Sônia Quadros Lopes, Florinda Ramos Marques, Dalva Santiago de Paula, ansiosa mente, se uniram a outros idealistas, e o resultado foi o nascimento da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Norte de Minas aqui em Montes Claros. Verdade é que não houve oposição ao seu trabalho e até não faltou crédito ou aquele sempre necessário voto de confiança. Todo mundo acreditou nelas, com o Colégio Imaculada Conceição cedendo espaço físico e moral, a Fundação Educacional Luiz de Paula fornecendo recursos e entusiasmo, professores como Jorge Ponciano Ribeiro, dando logo a sua quota de serviços.

Foi uma beleza o começo, um sucesso o primeiro cursinho de Montes Claros. Lembro-me bem, da primeira aula de francês que tivemos com a professora Baby Figueiredo, com texto solto, impresso fora de livro, uma novidade! Lembro-me de Adélia Miranda elaborando, como secretária, os primeiros relatórios, apertando os primeiros alunos retardatários para não atrasarem no pagamento das mensalidades ou início das aulas. Era uma experiência interessantíssima com passagens de se emocionar!

Era tanta sabedoria nova, um conhecimento tão organizado, uma perspectiva de aprendizagem tão grande, que problemas apareciam a toda hora, todos querendo aproveitar de tudo, sorver de vez todo um alimento que por não existir antes, estava sendo negado a quem muito o desejava. Acontecia então o troca-troca de salas, uma espécie de mineração de assuntos, um descobrir quem era o melhor professor, um abeberar de toda uma nova filosofia de vida. Não posso contar
tudo sobre as aulas de nossos cursos, nos primeiros dias do semestre, porque os acontecimentos vinham aos borbotões, quase sufocando a curiosidade, até confundindo as cabeças. Era como se fosse um vasto ciclo de conferências de palestras, um eterno comício. Hamilton Lopes, calouro, ensaiava os primeiros passos da política estudantil, João Valle Maurício, José Nunes Mourão, Hélio Vale Moreira, Mauro Machado Borges, alunos mais vividos, mostravam uma compenetração pouco natural de estudantes. Yvonne Silveira, esta numa santa vaidade de literata, se desmanchava em sorrisos e sutilezas numa alegria quase infantil.

Tudo foi uma longa festa intelectual, uma corrida de muita sede à fonte, todos considerando um grande privilégio, uma oportunidade a mais de vencer na vida, em campos profissionais já longamente seguidos. Pela primeira vez, vimos professorinhas ensinando para velho elenco de construtores do futuro!

Olhado de longe, vinte e sete anos depois, quase uma loucura. Mas que maravilhosa loucura! Que o diga Isabel Rebelo de Paula, a primeira diretora.


25 DE NOVEMBRO DE 2021
HOJE CEDO, A PARTIDA PARA O MUNDO MAIOR

Um breve “até logo”, minha querida e amada Olímpia. Um marcante momento de despedida, depois de mais de 72 anos de convivência, início de quando você ainda não tinha treze anos e eu ainda não tinha quinze. Só de vizinhança de travesseiros, como ela costumava dizer, são mais de 64 anos. Não sou capaz de dizer de mais Amor ou mais Amizade. O mais firme e positivo encontro e reencontro e compromisso do ser e do viver. Eu sempre trabalhando muito, estudando muito, tentando realizar muito. Você só alegria, sorrisos mais do que sempre, existindo para criar bem os nossos filhos e dar carinhos aos netos, agora, em final, também aos bisnetos.

Olímpia, a linda morena de olhos verdes, o bom senso em tudo. O mais sensato sentimento da razão de existir, sempre na vontade de Deus. Cada dia é para ser vivido, sentido, preenchido. Amizade incondicional. Queria que todos sorrissem, vivessem com alegria. Jamais se considerou melhor do que qualquer outra pessoa, mesmo as mais humildes ou mais modestas.

Tinha muita noção de hierarquia, mas não considerava ninguém melhor do que o outro. O que contava era forma de ser e de agir de cada um. Valia sempre o bom trato, a finura de tratamento, a capacidade de trabalho. Cargos para ela era só
encargos. Valia a atuação.

Amizade com todas as pessoas, em casa, no trânsito, em todos os lugares, principalmente nas viagens, mesmo nas internacionais. Viajando do Canadá para os Estados Unidos, ela sentou-se ao lado de uma senhora italiana, entenderam-se tanto, mesmo não falando uma a língua da outra, a italiana ficou tão amiga de Olímpia, que quando veio ao Brasil, passou um dia aqui conosco em Montes Claros, um momento de intensa alegria.

Grande capacidade física e espiritual para enfrentar situação difíceis. Sempre com fé. Grande poder de adaptação, fosse em família, com as amigas, em reuniões institucionais, no exterior. Foi assim em Portugal, na França, na Itália, no Uruguay, na Argentina, no Paraguai, na Bolívia, no Panamá, no Canadá, principalmente nos Estados Unidos, que conheceu praticamente de ponta a ponta. Centenas de reuniões, sempre a mesma Olímpia, segurança e simplicidade.

Lembro bem da nossa participação de um Congresso do Rotary International/Nações Unidas, em Buenos Aires, ela viveu e conviveu com grande alegria, com absoluta simplicidade e firmeza. No mais famoso teatro da América do Sul, o Colon, quando chamei a sua atenção sobre a importância de estar mos ali, ela somente brincou: ”E daí?”

Foi uma grande conselheira, falando tão diretamente ao coração das pessoas que a procuravam, que ela mesma ficava
admirada de como surgiram tantas palavras de valor.

Jamais contou vantagens, em qualquer época da vida. Para tudo, sempre houve uma razão de ser. A vida sempre uma missão divina, uma obrigação a ser cumprida.

Sempre encantada com a beleza das crianças, a inteligência delas, a espontaneidade. Quase todos os dias eu mostrava para ela, no computador, a beleza infantil, e ela adorava cada foto, conversava com elas, em tom de carinho, como se fossem reais. Todo encantamento com a beleza.

O que mais me encantava em Olímpia era a gratidão que ela tinha pela vida. Uma fé em Deus, com toda a harmonia do ser e do viver! Que as nossas lembranças, minhas como eterno companheiro, de todos os amigos e admiradores, seja a da alegria, do contentamento de ser como era e queria ser, uma pessoa do bem e do amor! Por tudo isso e por muito mais, os meus mais profundos agradecimentos ao Pai Celestial por essa
maravilhosa temporada de vida ao lado dela. Muitas as esperanças de novas oportunidades e novas chances de aprender mais.

No momento em que Wladênia julgou necessário levá-la para a Santa Casa, ela, ainda deitada, olhou-me com firmeza, e eu a vi, com seus olhos verdes, com a beleza máxima, como eu nunca havia visto nos 72 anos de convívio. Era a hora da despedida, do meu sentir e viver o mais eterno e verdadeiro amor.

Uma luz mais do que mágica!

Meu bom Deus, receba Olimpia com toda a claridade e a força da tua Luz e do teu infinito Amor. Sabemos, Senhor, Tu e eu que ela muito merece!


Este livro foi impresso em Montes Claros/MG, no ano
de 2025. Miolo com fonte Cambria, tamanho 12
e título com fonte Balerga, tamanho 20,
em papel Ap 75g e capa em papel triplex 250g


 

 

 

 

-