Maria da Glória Caxito Mameluque
Cadeira N. 40
Patrono: Georgino Jorge de Souza
A
HISTÓRIA DA APAC
EM MONTES CLAROS
A
implantação da APAC (Associação
de proteção e assistência aos condenados)
em Montes Claros nasceu do sonho do advogado Pedro Mameluque
Mota, quando militando há mais de vinte anos na Pastoral
Carcerária, desejava encontrar algo que pudesse humanizar
a pena e recuperar o detento, o que as cadeias comuns, com problemas
de superlotação e condições precárias
nunca iriam conseguir.
Numa viagem a São José dos Campos teve oportunidade
de conhecer o advogado Mário Ottoboni, criador do método
naquela cidade e voltou determinado a implantá-lo em
Montes Claros. De lá para cá, foram muitas as
tentativas e muitas providências, mas até hoje
os desafios continuam.
O
QUE É A APAC?
É
um método de valorização humana para oferecer
ao condenado condições de recuperar-se, logrando
dessa forma o propósito de proteger a sociedade e promover
a justiça.
Por
que método? Porque se trata de uma metodologia que rompe
com o sistema penal vigente, cruel em todos os aspectos e que
não cumpre a finalidade precípua da pena: preparar
o condenado para ser devolvido em condições de
conviver harmoniosa e pacificamente com a sociedade. O método
cuida em primeiro lugar da valorização humana
da pessoa que errou e que, segregada ou não, cumpre pena
privativa da liberdade. Normalmente, os infratores condenados
são discriminados no mais amplo sentido da palavra. A
maioria é vista apenas como criminosos irrecuperáveis,
lixo da sociedade, não como pessoas respeitáveis
em sua dignidade, como imagem e semelhança de Deus. Aqui
vale lembrar: “Toda pessoa é maior que o seu próprio
erro.”
O
importante desse método também é a proteção
da sociedade, fato que ocorre evidentemente com a recuperação
de cada infrator, uma vez que cada preso recuperado é
um bandido a menos na rua.
São
elementos fundamentais do método APAC:
01 - Participação da comunidade
02 - O recuperando ajudando o recuperando
03 - Trabalho (tanto no regime semi-aberto como no regime fechado)
04 - A religião e a importância de se fazer a experiência
de Deus
05 - Assistência jurídica
06 - Assistência à saúde
07 - Valorização humana, base do método
APAC
08 - A família
09 - O voluntário
10 - O Centro de reintegração social
A
APAC nasceu em São José dos Campos, SP, em novembro
de 1972, idealizada pelo advogado paulista Mário Ottoboni
e um grupo de amigos cristãos que se uniram com o objetivo
de amenizar as constantes aflições vividas pela
população prisional da Cadeia Pública de
São José dos campos.
Tem por finalidade recuperar os condenados e proteger a sociedade.
A sua filosofia é matar o criminoso e salvar o homem,
usando o amor como fator básico da recuperação.
São seus princípios norteadores : o amor como
caminho, o diálogo como entendimento, a disciplina e
o trabalho como essencial, a fraternidade e o respeito como
metas, a responsabilidade para o soerguimento, a humildade e
a paciência para vencer, a família como suporte
E Deus como fonte de tudo.
O método APAC que ainda tem enfrentado dificuldades na
sua aceitação, é fundamentado na valorização
humana à luz do evangelho e objetiva a execução
de trabalhos com presos dos três regimes prisionais: o
fechado, o semi-aberto e o aberto, sendo reconhecido pela ONU
como o método mais eficaz para a ressocialização
dos encarcerados, servindo como órgão auxiliar
das autoridades constituídas na execução
da pena privativa de liberdade. Por maiores que sejam os esforços
do governo de ampliar o número de vagas com instalação
de novas unidades, esses atos por si só, não resolverão
a demanda principal no tratamento do preso que é a sua
ressocialização e retorno ao convívio social.
Isso só se consegue com um trabalho direto com o preso,
no local onde reside em companhia de sua família.
Apresentando baixo índice de reincidência , o método
socializador empregado pela APAC tem alcançado grande
repercussão no Brasil e no exterior, contando hoje com
mais de 100 unidades espalhadas em todo o território
nacional, em funcionamento ou em fase de implantação.
A
implantação da APAC em Montes Claros tem sido
uma luta constante e difícil. Fazia-se necessário
um terreno que pudesse abrigar o novo prédio. Após
várias tentativas junto à Prefeitura Municipal,
finalmente foi conseguida a doação de um terreno
durante a gestão do
Prefeito Dr. Luiz Tadeu Leite, sendo presidente da APAC o Dr.
Pedro Mameluque Mota, e sua legalização com a
lavratura da escritura e competente registro.
Providências também foram tomadas junto aos senhores
juízes, no sentido de destinar verbas para a APAC, no
que a diretoria foi prontamente atendida.
Agora era providenciar recursos para a construção
do prédio e fazia-se necessária a adesão
da comunidade e órgãos de classe para que o projeto
fosse executado. Com a posse de nova diretoria, comandada pelo
Sr. Edilberto Colares, em solenidade na Câmara Municipal
de Montes Claros, e a adesão de entidades, como a Justiça,
o Ministério Público, as Lojas Maçônicas,
o Rotary Clube, os três poderes constituídos, a
Copasa e a Igreja Católica através da Pastoral
Carcerária, uma esperança surgiu no sentido de
que o antigo sonho fosse concretizado.
Segundo Valdeci Antônio Ferreira, Diretor Executivo da
FBAC (Federação Brasileira de Assistência
aos condenados) a APAC nasceu em São José dos
Campos em 1972 e dois anos depois, ou seja, em 1974, constituía-se
juridicamente. Assim, um método inusitado de tratamento
de presos surgia no cenário prisional como extremamente
revolucionário e a Prisão Humaitá, no centro
da cidade, então administrada sem o concurso das polícias
civil, militar ou agentes penitenciários, se transformava
em um centro de atenção e peregrinação.
Durante 25 anos, delegações de todas as partes
do Brasil e outros países ali aportavam para conhecer
in loco o Centro de Reintegração Social –
APAC e a terapêutica penal aplicada, capaz de reverter
os altos índices de reincidência, além de
reduzir os custos, fugas, atos de violência, etc. De lá
para cá, já se passaram mais de 45
anos e várias comarcas do Brasil e diversos países
replicaram
a experiência da APAC de São José dos Campos
e deram seguimento ao carisma e ideal do fundador Mário
Otttoboni, de modo a manter acesa a chama do amor e da esperança
no coração das pessoas privadas de liberdade e
colocar em prática a filosofia “Matar o criminoso
e salvar o homem.”
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais lançou
em dezembro de 2001 o “Projeto Novos Rumos”, com
o objetivo de incentivar a expansão da APAC, como alternativa
de humanização do sistema prisional no Estado.
Apresentando índices de reincidência em torno de
7%, o método socializador empregado pela APAC tem alcançado
grande repercussão no Brasil e no exterior.
Em 1986, a APAC se filiou a Prison Fellowship International,
órgão consultivo da ONU para assuntos penitenciários.
A partir dessa data, o método passou a ser divulgado
mundialmente por meio de congressos e seminários. Em
1991 foi publicado nos EUA um relatório afirmando que
o Método APAC podia ser aplicado em qualquer lugar do
mundo.
Em Minas Gerais, a APAC pioneira foi fundada em 1986, na cidade
de Itaúna que sediou em 2002 um seminário de estudos
e conhecimentos sobre o Método para representantes de
14 países.
POR QUE O MÉTODO APAC É INOVADOR?
Todos os recuperandos são chamados pelo nome, valorizando
o indivíduo; é o único estabelecimento
prisional que oferece os três regimes penais: fechado,
aberto e semi-aberto com instalações independentes
e apropriadas às atividades desenvolvidas; não
há presença de policiais e guardas penitenciários
e as chaves ficam em poder dos próprios recuperandos;
a religião é fator essencial da
recuperação; a valorização humana
é a base da recuperação, promovendo o reencontro
do recuperando com ele mesmo; há um menor número
de recuperandos juntos, evitando formação de quadrilhas,
subjugação dos mais fracos, pederastia, tráfico
de drogas, indisciplina, violência e corrupção;
tem-se a assistência à família do recuperando
e à vítima ou seus familiares como uma das formas
de se manterem vivos os elos afetivos, reascendendo o ânimo
do condenado para se recuperar; a manutenção da
ordem é obtida com a ajuda de recuperandos designados
para representar os interesses da cela.
COMO ESTÁ A APAC EM MONTES CLAROS
Depois de muitos entraves burocráticos, finalmente a
APAC de Montes Claros, que tem projeto para 120 vagas, vai participar
de convênio com a SEAP – Secretaria de Estado de
Administração prisional., que é responsável
pelas APACs, a fim de conseguir recursos para a construção
do prédio.
Foram presidentes da APAC em Montes Claros: Dr. Pedro Mameluque
Mota, Edilberto Colares, Dr. Otávio Rocha Machado e a
partir de 2016 até o momento, o Cel. Inácio de
Loyola Goulart Araújo.
REFERÊNCIAS:
Ottoboni, Mário. Vamos matar o criminoso? Método
APAC – Paulinas, 2001 Projeto novos rumos na execução
penal . Tribunal de Justiça de Minas Gerais. (2004)
Doação
do terreno para a APAC: Antônio Augusto, Pedro, Glorinha,
Luiz Tadeu leite e Angela Dias Nunes
Nilson
dias figueiredo e Inácio Loyola
Pedro
recebendo um troféu como Presidente Benemérito
da APAC, em 28/09/2012
atual
presidente Inácio Loyola com o Deputado Tadeuzinho e
o SEcretário de Defesa Social Dr.Sérgio Menezes,
conversando sobre a construção da APAC em 22/08/2017
Manoel
Freitas dos Reis
Cadeira N. 75
Patrono: Manoel Ambrósio
SERTANEJAR
A CAMINHADA DE MANOEL FREITAS
O
homem do sertão, o Povo Xakriabá, pássaros
raros, animais do cerrado, entranhas da mata seca, tesouros
dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Destaques da exposição
“Sertanejar”, do fotógrafo Manoel Freitas,
que prossegue até setembro no Museu Regional do Norte
de Minas, em Montes Claros, no Corredor Histórico.
Na
mostra, mais de 100 imagens, na verdade a colheita de 20 anos
percorrendo carreiros, subindo montanhas. No âmago, registros
científicos nos Parques Estaduais da Mata Seca (Manga),
Lagoa do Cajueiro e Serra Azul (Matias Cardoso); além
da Reserva Biológica do Jaíba e Parque Nacional
Cavernas do Peruaçu, em Januária.
Em
2016, foi o sexto brasileiro no registro fotográfico
de aves na maior enciclopédia do gênero do país,
a Wiki Aves. Na atualidade, cataloga cientificamente 3.788 aves
de 288 espécies distintas, sendo dois primeiros registros
no Sudeste Brasileiro, três em Minas Gerais e dezenas
no Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha.
Desde
2004, acompanha no Vale do Peruaçu o rito da maior nação
indígena de Minas Gerais, o Povo Xakriabá, que
ocupa mais de 70% do território de São João
das Missões. Nesse tempo, percorreu suas 34 aldeias,
conheceu o rico artesanato, garimpou retratos de sua gente,
acompanhou o fortalecimento da cultura, da tradição.
Jornalista
e integrante do Instituto Histórico e Geográfico
de Montes Claros, Manoel Freitas é sócio-fundador
do Clube de Observação de Aves do Norte de Minas
e, durante sua exposição, fará palestras
para grupos de escola e visitantes. Além disso, em vídeo
será exibido um mosaico de mil faces das gerais, ou seja,
espelho da estrada afora...
Manga - Extremo Norte de Minas Gerais - Brasil
Maria
Clara Lage Vieira
Cadeira N. 100
Patrono: Wan-dick Dumont
D.
MODESTA
Corre
o ano de 1970.
A cena é de uma mãe inexperiente, sempre preocupada
com a filha primogênita, que é um bebezinho.
De repente, bate à sua porta uma senhora de rosto simpático,
gestos decididos, um sorriso largo. Ela faz geleia e corre pela
cidade vendendo seu produto. Mas ela não tem pressa,
apesar de já ter percorrido muitas distâncias e
ainda ter outro tanto para percorrer. Ela se apresenta, pergunta
pelas pessoas da casa, brinca com as crianças.
Dante de uma mãe ansiosa, ela pega o bebê de seis
meses e o senta na palma de sua mão, levantando-a. Enquanto
a mãe fica assustada, a criança ri.
E foi assim que tivemos a honra, a alegria, o prazer de conhecer
D. Modesta.
O nome se adaptou muito bem a sua pessoa: mulher simples, guerreira,
incansável, forte, sincera, encorajadora. E se chamava
Modesta, essa grande mulher!
Nasceu
entre nós uma amizade infinita.
Modesta de Souza Alves nasceu em Bocaiuva, MG, em 22 de abril
de 1919, filha única de Januária de Souza Moura.
Quando ela nasceu, sua mãe tinha apenas quinze anos.
Era uma criança, não sabia assumir a maternidade
e se ausentava por meses para trabalhar na roça.
Modesta teve infância pobre, sofrida. A mãe dela,
muito cedo, se tornou mãe solteira e se desorientou.
Mais tarde, casou-se e veio buscá-la, mas ela não
quis acompanhar a mãe.
O casamento durou pouco, separaram-se e ela apareceu já
doente, vivendo por pouco tempo.
Sobre o pai, Modesta não gostava de falar.
Diante de tudo isto, ela ficava aos cuidados da Tia Herculana,
com a qual conviveu por algum tempo, em Sentinela, povoado de
Bocaiuva.
Quando a tia faleceu, ainda criança, ela foi acolhida
por um primo que ela chamava de “papai Zé Moreira”
e que morava com a família no bairro Bonfim, onde é
hoje a Escola Municipal Maria das Dores. Era uma casa pequena,
mas acolhedora e ali ela recebeu carinho, e ali ela cresceu,
junto com os filhos do Sr. Zé Moreira e D. Eva Moreira.
Foram seus companheiros de infância: Odília, Elisa,
Maria José, João e Daniel.
Nesta época, a família tinha amizade com D. Bibiana,
avó de João do Lino Mar (João Besouro),
que chefiava um terno de catopé, desenvolvendo o folclore
em Bocaiuva.
Quando Modesta completou 14 anos, conheceu Mariinha, filha do
Sr. Pedro Tobá. Era uma moça solteira, trabalhadora,
muito dinâmica. Ela foi gerente do Hotel Bonfim, que existiu
em Bocaiuva, na Avenida Montes Claros, próximo à
Estação Ferroviária. Ela sabia
das
dificuldades da família que acolhera Modesta e, por isto,
levou-a para fazer pequenos serviços no hotel: lavar
louça, varrer o quintal, molhar plantas. Tudo isto a
adolescente foi aprendendo aos poucos, com muita boa vontade.
Trabalhava lá durante o dia e, à noite, retornava
a casa do Sr. José Moreira. Com o tempo, ela já
sabia todo o serviço e se tornou copeira do hotel.
Quando
Mariinha se casou com o Sr. Mário Coutinho, funcionário
da Central do Brasil, este, posteriormente, foi transferido
para chefiar a estação de Bueno do Prado. Modesta
já tinha 18 anos, o hotel havia sido fechado e, surpreendentemente,
o casal a levou para morar com eles.
Modesta
amou o primeiro filho do casal, cuidou dele com muito carinho
e o afeto entre eles cresceu, mesmo quando ele se tornou adulto.
Em
Bueno do Prado, ela conheceu Antônio Alves, que era natural
de Inhaí, cidade próxima a Diamantina. Ele também
era funcionário da Central do Brasil, solteiro, com seus
quarenta anos. Nasceu uma simpatia entre eles, que se transformou
em amor. Namoraram e se casaram em 1941. Ficaram morando em
Bueno do Prado, na “turma”, que consistia em casas
construídas à beira da linha, destinadas a funcionários
da Central do Brasil.
Foi
uma época feliz. Ele era um bom marido e ela morava perto
de Mariinha, que batizou a primogênita do novo casal,
Maurícia.
Moraram
em Bueno do Prado por muito tempo. Quando José, o segundo
filho, e Maurícia estavam na idade escolar, não
foi possível continuar morando ali porque a escola era
em Granjas Reunidas e as crianças, para estudar, caminhavam
pela linha do trem, correndo grandes perigos.
O
Sr. Antônio pediu transferência para Navarro, o
que facilitou os estudos de seus filhos, porque a escola era
bem perto de casa.
A
família gostava de morar na “turma”: os meninos
apreciavam ouvir o apito do trem e os passageiros acenavam para
eles.
Ainda
em Engenheiro Navarro, ela recebeu, com muita tristeza, a notícia
da morte de Mariinha, em um acidente. Foi muito grande o pesar
para Modesta, pois ela foi muito importante em sua vida.
Finalmente,
a família veio morar em Bocaiuva, no bairro Pernambuco,
longe do barulho do trem e trazendo consigo uma criança
de dois meses que o casal havia adotado aos oito dias de nascida
e que foi registrado com o nome de Adelson (hoje falecido, deixando
filhos e netos).
Fugindo
do aluguel, o Sr, Antônio construiu a casa da família,
uma casa grande que até hoje tem um vasto quintal, onde
se plantaram muitas árvores frutíferas, como mangueira,
abacateiro goiabeira, figueira, laranjeira, que estão
lá até hoje.
Modesta
era muito prendada. Além da geleia, que a cidade toda
conhecia, ela fazia doce de figo, de laranja da terra, de goiaba.
O marido sempre a elogiava por suas habilidades culinárias.
Apesar
de seu grau de escolaridade ser somente o segundo ano primário,
ela lia correntemente, escrevia e sabia fazer contas. E também
estava sempre atenta ao rendimento escolar dos filhos, seu comportamento
na escola. Fazia questão de conhecer todos os professores
de suas crianças. Nunca faltou incentivo seu para que
seus filhos estudassem, principalmente os meninos, que gostavam
de futebol e, às vezes se distraíam com isto.
Quando
tinha 29 anos, Modesta se tornou evangélica. O marido
era católico, mas isto nunca foi problema entre eles.
Quando
havia culto na casa deles, ele assistia e tratava a todos muito
bem e ela, por sua vez, arrumava sua melhor roupa para ele ir
à Missa.
Viveram
31 anos de casados. Em 1972, o marido faleceu, quando os filhos
já eram adultos.
Modesta
era de um caráter enérgico e incansável,
mas zelava bem pela família e pela casa. Alegre, sempre
cantava enquanto trabalhava. Os filhos dizem que ela tinha uma
voz muito bonita. Eles se recordam de que ela tinha momentos
de oração com os filhos.
Em
2002, aconteceu o inesperado. Ela sofreu um AVC e ficou hospitalizada
por vários dias. Quando voltou para casa, já não
era mais a mesma: a memória começou a faltar-lhe.
Mais tarde, os médicos diagnosticaram o Mal de Alzheimer.
Mesmo
assim, não deu trabalho. Falava pouco e o passado tornou-se
presente em sua vida, mas ainda cantava os hinos da Igreja Assembleia
de Deus.
Faleceu
em 2010!
A
família de Modesta e Antônio é:
Filhos:
Maurícia, José (já falecido), Sílvio,
Luci e Adelson (adotivo, já falecido).
Genros:
Guilherme, casado com Maurícia e Adilson, casado com
Luci.
Nora:
Maria das Graças, casada com Sílvio
Netos: Soraya, Siloé, Sidney, Leandro, Silmara, Leonardo,
Maria, Flávia, Renato e Fabiano.
Bisnetos: Lorena, Maria Júlia, Tainá, Maria Eduarda,
Maria Luísa, Maria Teresa, Maria Cecília, Amanda,
Fabiano e Maria Clara.
Modesta deixou exemplo e lições de vida para seus
filhos, netos, bisnetos.
O mundo atual está muito marcado pela violência.
Presenciamos ações hediondas de pessoas que não
têm a menor misericórdia para com seus semelhantes.
Há quem diga que criminosos são vítimas
da sociedade. Tiveram uma infância sofrida e, por isto,
são revoltados.
Pode
ser. Mas não é a revolta que pode resolver a nossa
vida. Somos todos filhos de Deus e, cada um a seu modo, precisa
carregar a sua cruz e enfrentar os senões que a vida
apresenta.
Modesta
é um exemplo maravilhoso da misericórdia de Deus
que ela recebeu e distribuiu. Não teve uma infância
feliz. Enquanto criança e jovem, viveu da ajuda dos outros.
Sofreu preconceitos por ser mulher, pobre e negra.
Entretanto,
quando se tornou adulta, foi arauto da concórdia e da
paz para com todas as pessoas que conviveram com ela.
Seus
filhos, netos, bisnetos sentem verdadeiro orgulho, admiração
e amor por ela. Sua lembrança vive no coração
de cada um E nós, que a conhecemos e que recebemos dela
somente palavras e gestos de simpatia e solidariedade, agradecemos
a feliz oportunidade de ter convivido e aprendido com ela a
arte de viver.
Fernando
Pessoa, grande poeta português, divagando sobre a fugacidade
do tempo e das coisas, dizia: “ Tudo o que é bom
passa o tempo necessário para se tornar inesquecível”.
Podemos afirmar esta verdade também quando se trata de
pessoas. Por exemplo, como D. Modesta, que passou entre nós
de tal maneira, que é impossível esquecê-la.
Sua figura enfeita o quadro de pessoas que enriqueceram a história
de Bocaiuva.
Marilene
Veloso Tófolo
Cadeira N. 95
Patrono: Terezinha Vasquez
RETALHOS
DA VIDA
Imagens,
fatos, casas e ruas percorrem o meu pensamento, sou criança,
a calçada é alta, o relógio do mercado
toca, os homens com suas mercadorias chegam ao local.
A
casa ao lado, com suas janelas azuis, ruas calçadas de
pedra, recebe um homem jovem que vai visitar o tio: Filomeno
Ribeiro, chefe político e tio do visitante.
Quem é este que chega? É Darcy Ribeiro, hoje conhecido
pelo Brasil a fora!...
Sou criança, olho da minha janela os transeuntes que
chegam, a pé, a cavalo e carro de bois!,,, No solar de
portas azuis, hoje Rua Governador Valadares, um homem na cadeira
de balanço recebeu os visitantes, que colocam aos chapéus
no cabide ao lado. Tenho medo do homem de bigodes e passo correndo!....
Quando ele não está, eu vou devagarzinho à
janela, para ver uma pedra grande de cristal e as cristaleiras
cheias de louças e cristais.
Sentada na cadeira alta, está a tia Laudy vestida com
saia longa e blusa, é esposa do Filomeno Ribeiro, uma
mulher enigmática e educada, que nos recebe cordialmente.
No quintal, cheios de plantas está a cozinha, onde as
pessoas fazem as quitandas do dia.
O
personagem citado, que agora chegou é sobrinho do político
Filomeno Ribeiro. Porque estou recordando isto? É que
estou lendo o seu livro Maira e as lembranças chegam
devagar....
Cidade
Montes Claros, estado de Minas Gerais, perdida no sertão
norte mineiro, outros tempos, outros dias, e as idéias
se intercalam. No meu registro de nascimento está escrito
testemunha Darcy Ribeiro. Este é o motivo de estar recordando
o passado!
Reminiscências,
fotos, palavras, personagens voltam à memória
como um filme. Onde está a minha rua? A minha história,
os meus brinquedos, o folclore da cidade com seus personagens
que se foram (catopés, cavalgadas, marujos, festa do
Divino, Igreja do Rosário, da Matriz)? Para onde foi
Maria Salomé, Geralda, Zita. Diola, Vovô Veloso
e tantos outros, que ai moraram ou conviveram?
Escuto
falar sobre a fábrica de tecidos do Cedro, da Igreja
do Rosário, dos Morrinhos, e dos “bois”.
Falam do padre Dudu, da rua Quinze, de João Alves, de
Tiburtina, do tiroteio dos coronéis e jagunços
do meu avô Jose Antônio Veloso, chefe político
em Mirabela, de Simeão Ribeiro Pires, João Alves,
Darcy Ribeiro e Teófilo Pires.
Foi
neste ambiente, perto da minha casa que o meu pai Sebastião
Souto Veloso, sempre acompanhou a política local. Escuto
ao longe a música “pisa na fulô, não
maltrate o meu amor”. A cantora Dalva de Oliveira veio
especialmente para o comício em Mirabela, na casa do
meu avô, e os chefes políticos foram convidados
(Malaquias Pimenta, Teófilo Pires, Simeão Ribeiro
e outros.).
São
imagens e fatos que vêem à memória. O tempo
vai, o tempo volta e como professora de História, hoje
aposentada, gosto de rever fatos e acontecimentos locais, regionais
e buscar as suas origens e conseqüências, ontem e
hoje.
A vida é um caleidoscópio, não sabemos
as ligações que virão e não poderia
supor que uma criança poderia reter a figura de homem
que transitou entre nós, correu o mundo, viveu, foi exilado,
mas hoje mora em outra galáxia, e continua na nossa história
com seu sorriso enigmático!
Narciso
Gonçalves Dias
Cadeira N. 9
Patrono: Antônio Lafetá Rebello
A
ASSOMBRAÇÃO DE
MANÉ CORISCO
Eu
não creio em assombrações, mas morro de
medo delas. Pois segundo a filosofia de Chaves, o simpático
herói do seriado de mesmo nome: “tenho plena certeza
que elas existem e as piores são as que nos espiam no
escuro e puxam o nossos pés quando estamos dormindo.
Pois é, pois é, pois é...”.
Veja
bem querido leitor, que num povoado do nosso querido norte de
minas, um caboclo de nome Mané Corisco, daqueles tido
como cabreiro ao extremo, sempre desconfiado, suspeitando que
alguma coisa invulgar está ou estará acontecendo
à sua volta. Toda vez que tomava umas cachaças
ficava muito bravo e fazendo artes assombrosas. Certa feita
chegou a brigar com o pai, noutro dia ralhou com a mãe,
num momento de ira rasgou o caderno de fiado do Seu Pedrinho
da venda. Estas dentre outra tantas malcriações
que dariam para fazer um rosário e ainda sobravam contas
para fazer um terço.
O
bondoso pastor evangélico do lugar, tentou levar Mané
Corisco para o bom caminho:
– Mané, você sabia que a bebida alcoólica
é um veneno?
–
Bobagem, Seu Pastor! Hic… A água já matou
muito mais gente!
– O quê! Você ficou maluco?
– Não Pastor. O senhor sabe quantas pessoas morreram
no dilúvio?
Foi ai que o Pastor descobriu que se tratava de um caso perdido.
Numa segunda-feira, Seu Domingos acabara de fechar sua Farmácia,
pois já estava tarde e estava iniciando uma chuva muito
forte e muito fria. Tão logo ele vestiu o pijama e se
preparou para dormir, Mané Corisco, cambaleando aproximou
da casa do farmacêutico e bateu na porta:
- Abra aí, Seu Domingos!
- Vai dormir Mané, eu não vou abrir, já
são dez horas. Amanhã você vem que eu atendo.
Mané voltou a bater na porta e agora com maior insistência.
A esposa do farmacêutico então lhe pede para abrir
a farmácia e atender o Mané, pois o escândalo
que ele estava aprontando indicava tratar-se de uma emergência
que justificaria o trabalho de levantar e atender o pobre diabo
que estava na chuva pedindo por socorro.
Contrariado Seu Domingos atende a esposa e decide abrir a drogaria
onde encontra Mané Corisco bêbado na porta todo
encharcado.
- Qual o remédio você precisa, fala logo que eu
lhe atendo e voltarei a dormir?
E Mané diz na maior tranquilidade:
- Não quero remédio não. Eu vim me pesar
na balança da farmácia.
Conta-se que Seu Domingos contraiu a Síndrome de Hulk,
que vem a ser um transtorno psicológico em que há
um descontrole desproporcional da raiva. E não suporta
nem ouvir o nome do Mané.
Tentativas
de se acabar com esse dilema nunca deram bons frutos e eram
tempo perdido por todos do povoado. O sonho da comunidade era
ficar livre das tormentosas atitudes de Mané Corisco
nas suas bebedeiras. Costuraram uma foto de Santo Onofre na
cueca do bebum, mas num dos pileques o Mané perdeu a
cueca, pois como se diz cueca de bêbado não tem
dono. Novenas foram feitas e todas as espécies de magias
conhecidas foram tentadas, mas tudo sem êxito.
Até que como de costume, numa sexta feira de lua cheia,
à meia noite, lá vem Mané Corisco bêbado
que nem um gambá, se segurando nas rédeas da sua
mula preta e bambeando como uma gelatina de cana. Com muito
esforço ele levantou os olhos em direção
a uma grande gameleira que fica bem no meio do caminho entre
a venda de Seu Pedrinho e sua casa. Ato contínuo lembrou-se
das historias que o povo conta que aquela árvore, nas
noites escuras ficava apinhada de Almas Penadas, Saci Pererê,
Mula sem cabeça, Sapo sem perna, Cobras Voadoras e um
monte de coisas ruins. Mas fazer o que? Já não
guiava o animal, e sim era levado por este à revelia
de sua vontade. Não detinha o controle da montaria, mas
o cérebro estava funcionando a mil e o medo já
tomava conta de todo o seu ser.
E para completar o terrível quadro de assombrações,
naquela noite sombria, o pessoal da comunidade resolveu dar
um susto no coitado para que ele parasse com as perversidades
com a comunidade e diminuísse o uso da cachaça.
Montaram um espantalho na galha mais grossa da planta, todo
vestido de branco, com olhos pintados de vermelhos, com uma
melancia como chapéu e uma vela amarrada na mão.
Com o vento, o espantalho balançava e se contorcia parecendo
dançar freneticamente.
A mula preta de Mané Corisco ao aproximar daquele aranzel,
soltou um relincho agudo e estridente, jogou o cavaleiro no
chão e disparou em correria alucinada, Mané já
caiu correndo e se benzendo, chegou sem fôlego em casa,
todo esbaforido e suado. Refugiou-se tremendo no colo de sua
mãe e desse dia em diante nunca mais bebeu, fez a primeira
comunhão e tornou-se o melhor sacristão da paróquia.
Já a mula preta do Mané Corisco, eu tive notícias
de que foi vista galopando
em altíssima velocidade, com seus sete palmos de altura,
nos belos campos do município de Coração
de Jesus. Atravessou o Rio São Francisco chegando a cidade
de São Paulo, onde virou moda de viola de muito sucesso
nas vozes de Tonico e Tinoco. Pelo menos é o que se conta.
A
Assombração de Mané Corisco
Wesley
Soares Caldeira
Cadeira N. 91
Patrono: Sebastião Sobreira Carvalho
ESPIRITISMO:
DE DIAMANTINA
PARA MONTES CLAROS
A
partir de 1853, jornais da Europa e das Américas passaram
a noticiar enigmáticos fenômenos que estavam empolgando
a população nos seus diversos segmentos sociais.
Naqueles dias, Victor Hugo pôde dialogar com Shakespeare
e Molière, durante o seu exílio, na ilha Guernsey,
sob a ação mediúnica de seu filho Charles
Hugo.
Allan Kardec, pedagogo francês e escritor que tratava
de educação até medicina e de gramática
francesa a astronomia, tomando conhecimento desses fenômenos,
empreendeu, em 1855, suas pesquisas sobre eles, aplicando o
método científico positivo. Suas conclusões
redundaram na publicação de “O Livro dos
Espíritos”, em 18 de abril de 1857, marco inicial
da doutrina e da religião espírita.
Em pouco mais de 60 dias, do outro lado do Atlântico,
no Norte de Minas, o povoamento originado na Fazenda dos Montes
Claros era elevado à condição de cidade.
Kardec
publicou “O Livro dos Médiuns”, em 1861,
e “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, em 1864;
“O Céu e o Inferno” e “A Gênese”,
em 1865 e 1868, respectivamente.
No Rio de Janeiro, entre 1875 e 1876, surgiam, em português,
as traduções dos livros espíritas de Allan
Kardec, através do Dr. Joaquim Carlos Travassos, médico,
político e senador da república. Graduado pela
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, integrava a elite educada
do Império, e conhecia muito bem o francês.
As traduções da codificação de Allan
Kardec se espalharam pelo País, provocando grande impressão.
*.*.*
Minas
foi sendo descoberta através de regiões que os
portugueses povoaram aos poucos, a Bahia e São Paulo.
Os baianos acompanharam o curso do rio São Francisco
em busca de mais pastagens para seus rebanhos de gado. Os paulistas,
com suas bandeiras, transpuseram as escarpas do maciço
da Mantiqueira, à procura de ouro e pedras preciosas.
A
Minas setecentista era uma província de escassos povoados,
esparsos aqui e ali nas artérias de seus caminhos e ao
longo de seus rios, surgidos na medida em que o ouro foi sendo
encontrado. Aos poucos, eles se concentraram na faixa que ia
do sul ao norte da província, da bacia do Rio Grande
às proximidades das nascentes do Jequitinhonha, entre
os pontos em que se formaram a vila de Lavras e o arraial do
Tijuco (TORRES, 1980, vol. I, p. 112).
Apareceram as principais povoações da capitania
mineira: São João Del Rei; Vila Rica, nomeada,
por fim, Ouro Preto; Mariana, a primeira capital de Minas Gerais;
Vila do Príncipe, fundada em lugar que os índios
chamavam Ivituruí na língua tupi-guarani —
ivi-vento, turi-morro, huí-frio —, daí Serro
Frio e, hoje, apenas Serro.
Bem nesse momento crucial, num documento que lavrou em 1701,
Artur de Sá, governador de São Paulo, batizou
a região de “Minas Gerais dos Cataguases”.
Os
ciclos do ouro e do diamante escreveram os principais capítulos
da história de Minas, de larga influência na história
nacional e até europeia.
O Norte de Minas, nesses tempos del-rei, viveu o ciclo do couro,
num papel econômico acessório: curral de Minas
Gerais. Mas o arraial do Tijuco se tornaria a sede do importante
Distrito Diamantino, cuja função era controlar
a exploração de diamantes,
descobertos nos primeiros anos de 1720, e cuja lavra alcançou
cerca de 3 milhões de quilates — uma riqueza tão
assombrosa que se dizia que o céu de Minas refletia os
diamantes do Tijuco, pois nesse arraial os diamantes perfeitos
eram chamados de “estrelas”.
A futura Diamantina se formou em local que os indígenas
designavam de Ybyty’ro’y, isto é, “montanha
fria”, onde havia um pequeno córrego de margens
lamacentas, por isso apelidado de Tijuco, ty-yuc, “líquido
podre”, “lama”, “brejo”, em dialeto
indígena. (FILHO, 1980, p. 9)
*.*.*
Tomando por base a vila de Taubaté, fundada em 1645,
as expedições paulistanas passaram a varar a Serra
da Mantiqueira pela garganta do Embaú.
Em 1674, Fernão Dias Paes — o estoico capitão
das esmeraldas — passou pelo Embaú e foi até
Itacambira (Norte de Minas), em bandeira integrada, entre outros,
pelo mestre de campo Matias Cardoso, que levou consigo o jovem
paulista Antônio Gonçalves Figueira, seu cunhado.
De retorno a São Paulo, Gonçalves Figueira não
conseguiu esquecer certa região onde a bandeira estivera.
Dezessete anos depois, Figueira voltou a ela para estabelecer
sua Fazenda dos Montes Claros entre o rio Verde e aqueles montes
esbranquiçados de xistos calcários.
A fazenda foi vendida em 1768 ao alferes José Lopes de
Carvalho. O novo proprietário construiu uma sede em área
aprazível e edificou uma
capela nas proximidades. O santuário atraiu vizinhança
na forma de casas domingueiras, para descanso das lutas da semana,
nascendo um povoado.
Por
conta de seus muitos formigueiros e de duas passagens assim
nomeadas no rio Vieira, o lugar foi apelidado de Formigas. Em
1817, o naturalista francês August de Saint-Hilaire visitou
o arraial e mencionou-o no seu valioso livro:
[...] Formigas é [...] um dos pontos principais da parte
oriental do sertão, e faz-se aí um comércio
importante de gado, salitre, couro e peles. O gado bovino e
os cavalos vendem-se para a Bahia; o salitre vai para o Rio
de Janeiro e Vila Rica, e, finalmente, parte do couro se consome
em Formigas e outra parte envia para Minas Novas [...] (SAINT-HILAIRE,
2000, p. 326)
O sábio professor do Museu de História Natural
de Paris descreveu o arraial:
A povoação de Formiga, sucursal da Paróquia
de Itacambira, está situada à entrada de uma planície
(...). Essa povoação, que pode compreender atualmente
(1817) duzentas casas, e mais de oitocentas almas, é
certamente uma das mais belas que vi na Província de
Minas [...]. (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 326)
O arraial de Formigas foi elevado a vila em 1831, ocasião
em que foi desmembrado do distrito de Serro Frio, e se tornou
cidade de Montes Claros, em 1857, pouco mais de dois meses após
Allan Kardec publicar “O Livro dos Espíritos”,
em Paris.
No tempo dos currais de gado de Antônio Gonçalves
Figueira (primeira metade do século XVIII), uma estrada
foi aberta entre Diamantina e Montes Claros. O caminho serpejava
as serras e mergulhava em vales, expondo exuberantes formações
rochosas de tons incomuns, e o rio Jequitinhonha parecia brincar
com o viajante, cruzando várias vezes seu roteiro, rolando
lento e barrento.
O
zoólogo Spix e o botânico Martius descreveram a
região próxima de Montes Claros:
Quanto
mais nos internávamos nesta zona, tanto mais característica
se apresentava a feição das paisagens: planícies
desertas, com capim seco, árvores retorcidas, e, de quando
em quando, uma das já mencionadas palmeiras de espinhos,
o tucum [...]; as grotas, em forma de gamela, que se afundam
em diversas direções, são animadas pela
presença de emas, veados e tatus. (SPIX et MARTIUS, 19-,
p. 81)
Então,
em 1884, um jovem ourives deixou Diamantina e percorreu a bonita
estrada serrana, trazendo para Montes Claros, pela primeira
vez, as traduções de Joaquim Carlos Travassos
dos livros de Allan Kardec.
*.*.*
A
religião do povo mineiro, em toda parte, era o Catolicismo,
com foco no culto a Maria e na Paixão de Jesus.
O
culto marial era uma tradição em Portugal e na
Casa de Bragança. O tema da Paixão, aqui, era
dramatizado intensamente, seja na arte seja em procissões,
pela influência predominante dos franciscanos em Minas.
Essa valorização de elementos afetivos e estéticos
do Catolicismo retardou a introdução do Protestantismo,
que nega os altares, as imagens, a liturgia e as procissões.
(TORRES, 1980, vol. II, pp. 634, 636 e 637)
O
clero católico foi incorporado como órgão
do Estado no Brasil pela Coroa portuguesa.
Nas
classes dirigentes e cultas imperava o ceticismo e agnosticismo,
apesar de a educação mineira ser um produto do
Catolicismo. É lembrar a importância dos grandes
colégios, do Caraça, do Recolhimento de Macaúbas,
da Providência, e dos seminários de Mariana e Diamantina.
A
partir de meados do século XIX, formou-se um ambiente
de certa crítica liberal, em termos de religião
e cultura, pois foi o tempo da tribuna parlamentar e do jornalismo
político.
Os
diamantes deram a Diamantina palacetes mobiliados com requinte.
O luxo se completava na extravagância dos banquetes e
no refinamento do vestuário de suas festas, até
o declínio do ciclo do diamante. Suas lojas eram bem
abastecidas de mercadorias das fábricas inglesas e da
moda de Paris. Anotações do início do século
XVIII registraram sua vocação para a cultura.
Saint-Hillaire escreveu:
Encontrei
nesta localidade mais instrução que em todo o
resto do Brasil, mais gosto pela literatura e um desejo mais
vivo de se instruir. Vários moços (1818), cheios
de nobre entusiasmo, aprenderam o francês, sem terem mestres.
[...].
Os habitantes do Tijuco são principalmente notáveis
na arte caligráfica e podem a esse respeito rivalizar
com os mais hábeis ingleses. (SAINT-HILAIRE, 1974, p.
33)
No começo do século XIX, Diamantina já
contava com a instrução pública através
de suas primeiras escolas. A partir de 1841, possuía
um teatro. Em 1875, foi criada uma biblioteca municipal, com
1500 livros.
*.*.*
Imensamente
modesta era a vida em Montes Claros. Na medida em que se abeirava
o final do século XIX, seus dias eram normalmente calmos.
Suas noites claras eram cheias de encanto. Enquanto aguardavam
que a temperatura abrandasse, seus moradores iam formando amáveis
reuniões nas portas das casas, com cadeiras nas calçadas.
Ouviam-se vozes, às vezes violões e o festivo
tinir dos sinos da Matriz. (VIANNA, 1972, p. 40)
A religião católica era exclusiva. Gonçalves
Figueira transformou a sesmaria em fazenda e construiu uma pequena
capela rústica, batida de barro, em homenagem à
mãe de Jesus. Mais tarde, em 1769, o alferes
Lopes de Carvalho edificou uma capela melhor a Nossa Senhora
da Conceição e São José.
Somente por volta de 1912 o Protestantismo chegaria a Montes
Claros, com a fundação do primeiro núcleo
da Igreja Batista, por iniciativa dessa comunidade em Belo Horizonte.
A Igreja Presbiteriana implantou-se na cidade em 1945.
*.*.*
A chegada a Diamantina das traduções feitas por
Joaquim Carlos Travassos, em que pese o domínio católico
no lugar, é fácil de compreender, se considerada
a disposição de sua gente para a cultura, especialmente
literária.
O jovem ourives Augusto Dias de Abreu estava com 17 a 25 anos
de idade quando essas traduções em vernáculo
lhe foram às mãos. Ele nasceu em 2 de junho de
1859 num arraial de Diamantina chamado Rio Manso, no futuro
renomeado de Couto Magalhães.
O historiador Nélson Vianna informou (VIANNA, 1964, p.
620) que Augusto era filho de Manoel Dias de Abreu e Dora Idalina
Freitas Abreu, descendentes de portugueses. Aprendeu cedo o
ofício de ourives, tornando-se um dos melhores do seu
tempo. Com a morte do pai, em data ignorada, ele assumiu os
encargos da família e decidiu se mudar para Montes Claros
em 1884, com 25 anos de idade, em companhia da mãe, duas
irmãs e um sobrinho. Depois traria seu irmão,
Joaquim Dias de Abreu.
Por que um ourives de qualidade deixaria uma região em
que os diamantes e o ouro ainda eram extraídos em quantidade
expressiva para buscar outros horizontes profissionais?
Talvez a explicação seja encontrada na crise provocada
pelo descobrimento das minas de diamantes na África do
Sul, em 1869, que fez cair drasticamente o preço dos
diamantes brutos. Até aí, essas pedras em Diamantina
eram exportadas na forma bruta, para que fossem preparadas por
lapidadores holandeses, os mais prestigiados nessa
arte. Com a crise, tornava-se importante valorizar o produto
brasileiro, com sua exportação já lapidado.
Comerciantes de diamantes se arruinaram nesse período,
diante dos preços pagos pelos europeus, embora a superioridade
das pedras brasileiras. As remessas para o exterior foram interrompidas,
propositalmente. Uma fábrica de lapidação
foi instalada em 1873, por iniciativa local; era a primeira
fábrica dessa natureza, no País, com a produção
ao encargo de um técnico holandês, vindo da Europa
especialmente para isso. Nos anos de 1880, havia várias
fábricas de lapidação na região.
Aires da Mata Machado Filho, em seu livro Arraial do Tijuco,
cidade de Diamantina, pouco se estendeu sobre a ourivesaria
diamantinense, tradicionalíssima. Afirmou, porém,
que ela foi iniciada por artistas portugueses. (FILHO, 1980,
p. 193)
Possivelmente, foi essa conjuntura que limitou a prosperidade
dos ourives em Diamantina naquela época: a recessão
no comércio de diamantes e joias, a chegada das fábricas
de lapidação e a presença de muitos ourives
na cidade.
Eis, então, Augusto Dias de Abreu residindo em Montes
Claros e se casando com Francelina Gonçalves Pereira,
com ela recebendo um filho: Olímpio Dias de Abreu, que
seria espírita importante na posteridade, e cuja filha,
Josefina, casou-se com o médico e incomparável
historiador de Montes Claros Hermes de Paula. De atributos de
espírito elevados, Augusto era músico e foi um
dos fundadores da União Operária de Montes Claros,
vindo a falecer em 15 de dezembro de 1924.
Nelson Vianna relatou (VIANNA, 1964, p. 620) que logo que chegou
a Montes Claros, Augusto fundou o primeiro núcleo de
estudos e vivência espírita da cidade; isso em
1885. Mas não esteve só na empreitada. A tradição
e historiadores como Henrique de Oliva Brasil (BRASIL, 1983,
p. 128) indicam ao seu lado dois outros personagens que se lhe
associaram para o cometimento. Trata-se de Euzébio Alves
Sarmento e Daniel Pereira Costa.
Euzébio
Alves Sarmento nasceu no antigo distrito de Brejo das Almas,
atual cidade de Francisco Sá, filho de Manoel Alves Sarmento
e Maria Duarte Sarmento. A data do seu nascimento é imprecisa.
Sabe-se, entretanto, que faleceu em 3 de agosto de 1904, com
aproximadamente 50 anos de idade. (VIANNA, 1964, p. 385)
Passou a infância na fazenda dos Mangues (Vaca Brava).
Estudou gramática e francês com o professor Esequias
Teixeira e se tornou também professor no antigo Brejo
das Almas.
Após o seu casamento com Maria Balacha Miranda, transferiuse
para Montes Claros e requereu exame de farmacêutico licenciado,
obtendo aprovação e autorização
para funcionar na cidade em setembro de 1886, através
da Diretoria Geral de Higiene.
Igualmente empreendedor, Euzébio Alves Sarmento fundou
a União Operária de Montes Claros, como já
referido, coadjuvando Augusto Dias de Abreu, e constituindo-se
em um de seus presidentes. Fundou o jornal O Operário,
em 1894, do qual foi diretor e editor. Fundou ainda a primeira
fábrica de sabão do município, em 1894.
No mesmo ano, fundou a banda de música Filarmônica
Operária. Quatro anos depois, fundou o jornal O Agricultor.
Foi vereador, com posse em 2 de janeiro de 1895, tornando-se
vice-presidente da Câmara dos Vereadores entre 1895 e
1897.
Através do Projeto-lei nº 04/1971, a Câmara
de Vereadores homenageou Euzébio Alves Sarmento dando
seu nome a uma das ruas do bairro Jardim São Luiz.
*.*.*
O Capitão Daniel Pereira da Costa nasceu em Montes Claros,
filho de pai homônimo e de Carolina de Paula Souto. Casou-se
com Ana Cândida Dias Pereira.
Foi comerciante, fazendeiro, delegado de polícia e compôs
pelo esforço do seu trabalho considerável patrimônio,
principalmente em imóveis no centro da cidade, formando
expressiva fortuna.
Porque
não possuía filhos, no seu testamento, registrado
no 1º Cartório de Ofício, constou:
É nosso desejo que o acervo destes bens seja vendido
em hasta pública ou como possa alcançar melhor
preço, sendo a importância dos mesmos dada a juros
à União ou ao Estado e estes juros repartidos
em duas partes iguais, uma para a Casa de Misericórdia
e outra para distribuição aos pobres desta cidade.
(VIANNA, 1964, p. 131)
Com seu falecimento, em 12 de março de 1915, aos 69 anos
de idade, o legado de seus bens se destinou à Casa de
Caridade de Montes Claros e aos mendigos locais, sem distinção
de cor, política ou qualquer seita religiosa.
Niquinho Teixeira, antigo farmacêutico, empresário
e fazendeiro em Montes Claros, em obra por ele publicada —
Um caso antes dos noventa — , escreveu que Daniel Pereira
da Costa, conhecido como um estudioso da Doutrina Espírita,
ante a ausência de herdeiros resolveu doar todos os seus
bens para uma instituição espírita na cidade
de São Paulo. Mas, no cartório, quando foi apresentar
seu testamento, foi demovido desse propósito pelo tabelião,
seu amigo, e, ao invés disso, acabou por legar sua fortuna
à Santa Casa de Misericórdia de Montes Claros
e aos pobres da cidade.
Daniel Pereira da Costa também foi homenageado com uma
rua no bairro Jardim São Luiz.
*.*.*
Esses homens notáveis — Augusto Dias de Abreu,
Euzébio Alves Sarmento e Daniel Pereira da Costa —
estabeleceram o triunvirato sobre o qual se assentou o Espiritismo
iniciante na cidade, instalando o seu primeiro centro espírita.
Hermes de Paula escreveu sobre esses e outros personagens das
primeiras horas:
Há
tempos tem sido o Espiritismo cultivado em nosso meio. Entre
os primeiros convictos e honestos, podemos citar: Euzébio
Sarmento, Augusto Dias de Abreu, professor Cícero Pereira,
tenente Ulisses Pereira, Ezequiel Pereira, José Versiani
dos Anjos, etc. Estes fundaram um centro espírita —
o primeiro organizado exclusivamente
com fins religiosos e bem orientado, disseminando a boa semente.
Entretanto, com o falecimento de alguns e a mudança de
outros, o primitivo centro espírita fechou as suas portas.”
(destacamos) (PAULA, 1957, p. 295).
Portanto, tudo começou assim!
BIBLIOGRAFIA:
BRASIL, Henrique de Oliva. História e desenvolvimento
de Montes Claros. Belo Horizonte:
1983.
CALDEIRA, Wesley Soares. O Espiritismo em Montes Claros. Montes
Claros: 2001.
FILHO, Aires da Mata Machado. Arraial do Tijuco, cidade Diamantina.
3ª edição. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Edusp, 1980.
PAULA, Hermes. Montes Claros, sua história, sua gente
e seus costumes. Rio de Janeiro: 1957.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo distrito dos diamantes
e litoral do Brasil. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Edusp, 1974.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do
Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Tradução Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Editora
Itatiaia, 2000.
SPIX, J. B. von, et MARTIUS, C. F. P. von. Viagem pelo Brasil
– 1817/1820. Tradução Lúcia
Furquim Lahmeyer. Vol. 2, 2ª ed. São Paulo: Ed.
Melhoramentos, 19-.
TORRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas
Gerais. Belo Horizonte: Lemi; Brasília:
INL, 1980, 3ª edição, volumes I, II e III.
VIANNA, Nelson. Efemérides montesclarenses. Rio de Janeiro:
Irmãos Pongetti Editores, 1964.
VIANNA, Nelson. Serões montesclarenses. Belo Horizonte:
Editora Itatiaia, 1972.
Zélia
Patrocínio Oliveira Seixas
Associada Correspondente
VIDA
DE LOURIVAL SILVEIRA,
O LÔ DOS IRMÃOS PATROCÍNIO
De
Monte (Azul) em Montes (Claros)
Ao mundo ele foi se revelando
De bebê chorão a jovem lutador.
Jovem que a si, por si, se foi fazendo
E um homem de belo futuro virando
Quando em Beagá viveu e amou.
Então, Brasília os braços (Asas!)
Lhe abriu, chamando-o ao encontro
De seu futuro e daquele novo Brasil.
Na UnB, que os militares invadiam,
Com o irmão estudou e se formou:
Economistas! Como a Nação pedia.
Pros
EUA, com a família, então ele foi
Fazer Mestrado em Economia pra sua
Pátria querida melhor poder servir.
Produtor rural também veio a ser:
Uma fazenda no cerrado de Goiás
Outra maior nas matas do Tocantins.
Foi um agente da integração nacional
Vivente capaz de traçar o próprio destino
Sonhador em cujo peito morava a paixão!...
(Colaboração: Beto Patrocínio)
Estou
falando do Lourival Patrocínio Silveira, o Lô dos
irmãos Silveira, ou, melhor ainda, o Lô dos irmãos
Patrocínio, filhos de Dário Dias Silveira, rio-pardense
do distrito de Serra Nova, e de Edite Gonçalves de Oliveira,
montes-clarense. O nascimento do apaixonado, veemente irmão
na certa estava escrito nas estrelas que enfeitam as noites
serenas do sertão norte-mineiro: após concluir
os estudos na Escola Normal de Moc, nossa mãe foi lecionar
em Rio Pardo de Minas, onde conheceu e se casou, em 1939, com
nosso pai. Ali tiveram o primeiro filho, mudando-se depois,
por força do ofício da professora, para Monte
Azul, onde, a 14 de junho de 1944, Lô veio a nascer.
Por
que o terceiro filho do casal se chamou Lourival, um nome, convenhamos,
austero e pouco comum, ninguém sabe explicar. À
época, como forma de homenagem, o costume era dar aos
filhos que iam nascendo o nome de algum antepassado da família,
como um avô ou avó, ou então o nome do santo
do dia em que a criança nasceu. Como no caso do mano
não era uma coisa nem outra, vai ver seu nome veio da
inspiração do pai, que desde a pia batismal já
moldava para o novo filho a virilidade e os louros da vitória,
já que
etimologicamente “Lourival” significa “do
vale dos loureiros”, árvore essa com cujas folhas
se faziam as coroas que na Grécia e Roma antigas eram
colocadas na cabeça dos heróis e vencedores. Porém,
fosse porque esse nome era grande ou sério demais, fosse
porque sua pronúncia exige certo esforço labial,
o mano sempre foi chamado simplesmente de Lô.
Irmãos Carlinhos, Lô e Tuca (Moc, 1945)
Lô
era bebê quando a família veio de mudança
para Montes Claros, onde se fixou em definitivo, e foi esta
a cidade que adotou como sua terra natal. Foi lá, na
nossa para sempre querida Rua Januária, esquina com João
Pinheiro, que passou a infância, adolescência e
começo da juventude. Desde pequeno, já mostrava
os traços fortes de
sua personalidade: passional, como já dito, e por extensão
autoritário, teimoso, impaciente e, quase sempre, intolerante.
De fora, ele nunca levava desaforo para casa – resolvia
tudo ali mesmo. Em casa, era o único que corria da palmatória
do pai, o que significava apanhar em dobro quando retornava
ao anoitecer. Mas, ao mesmo tempo em que era impetuoso, mostrava
a ternura do seu coração, sendo também
determinado
e destemido o bastante para encarar situações
novas e nunca fugir dos desafios.
A vida inteira foi apegado à mãe. Quando criança,
vivia de calundu e a puxar a barra de sua saia querendo colo,
não vendo quanto ela era ocupada e atarefada, como professora,
dona de casa, esposa, mãe de outros filhos pequenos,
etc. Demorou a falar, o que já causava apreensão
e estranheza. Até que um dia se desencantou, de um jeito
que deu o que falar na vizinhança e que nunca foi esquecido
na família. Aconteceu assim: ele estava metodicamente
brincando de enfileirar pedaços de tijolo, quando mãe
se aproximou e perguntou: “Filho, o que você está
fazendo?”. Sua resposta na forma de uma frase inteira
com sujeito e predicado – “Tô fazendo fila!”
– foi surpreendente, porque até então nunca
ninguém tinha ouvido dele sequer um balbucio. Depois
disso, nunca mais foi calado. O encanto, para não dizer
alguma cisma naquela cabecinha, tinha se desfeito.
Por falar em cisma, seu forte temperamento fazia dele uma criança
não muito sociável. Meio respondão, às
vezes emburrava nos cantos e rosnava quando seus irmãos
e primos o provocavam. Por essas e por outras, logo lhe deram
o apelido de “lobo mau” e, quando assim chamado,
ficava ainda mais enfurecido. Já quando estava para brincadeiras,
o que mais gostava era de correr, jogar bola de gude e brincar
de esconderijo. Na época das chuvas, nem bem parava de
chover, corria para fora de casa e se punha a fazer barragens,
represando a enxurrada que escorria pela rua – rua que
era de terra, conforme por muitos anos foi a Rua Januária.
Decididamente, fazer barragens era uma paixão e uma especialidade
sua, tanto que, num canto ali qualquer, dava seu jeito de fazê-las
também nos rios aonde ia em piqueniques.
Aos sete anos, Lô foi cursar o primário no Grupo
Escolar Carlos Versiani, onde os irmãos mais velhos já
estudavam (na época não havia pré-escola).
De cara se deu como sendo a própria mãe sua professora.
Aí o bom exemplo não podia faltar, o que gerou
trabalhoe preocupação. Era cobrança lá
e cá! Como não chegava a ser aluno nota 10, abaixo
de 7 também não podia ficar.
A
partir da idade escolar, seu espírito moleque e aventureiro
desabrochou-se. Ao encontrar mais espaço para liberar
a torrente de seus impulsos, o menino foi se encontrando e se
entregando às suas vontades, interesses e aptidões.
Mais do que nas traquinagens de rua, era nas incursões
pelo mato, de posse de sua atiradeira, alçapão
e anzol, e escapulindo das vistas da mãe, quando a ordem
era fazer o dever de casa (tarefa escolar) e molhar as plantas
(obrigação doméstica), onde mais se realizava.
Amigos com quem se lançar nessas aventuras, assim como
matas cerradas aonde ir, ali nos arredores e no alto das serras
de Montes Claros, não faltavam. O bando que então
se formava era tanto de caçadores (de passarinhos), como
de pescadores (de piabas, traíras, lambaris, bagres e
outros mais), num tempo em que os rios Melo e Verde eram caudalosos,
capazes de tragar vidas, só não acontecendo porque
se aprendia a nadar na marra. O mano gostava também de
penetrar nas grutas da Lapa Grande e Serra Pintada. Todos tinham
medo, mas ele se aventurava! O que procurava? Com certeza, era
muito mais alguma onça pintada do que a beleza geológica
daquelas cavernas.
Era
patente a felicidade que essas aventuras lhe proporcionavam.
Às vezes, no entanto, voltava muito tarde, quando em
casa mãe e pai já estavam aflitos de preocupação.
Então, para escapar da surra, ele batia na janela do
quarto de nós suas irmãs, o qual ficava de frente
para a rua, pulava sorrateiramente e se recolhia na cama a fingir
sono profundo. Trabalheira geral sobrava para nós mulheres,
que tínhamos a obrigação de limpar, secar
e fritar tanta piaba. Contudo, não há como negar
que as fieiras de peixe trazidas pelo mano sempre complementavam
a refeição da família, tornando-a mais
nutritiva. E já que era assim e havendo ele conseguido
evitar a surra na noite anterior, na hora em que pai mais estava
nervoso, o castigo acabava se tornando mais brando.
Entretanto,
melhor de tudo para ele, como de resto para cada um(a) de nós,
era quando, pelo pai, lhe era dada a oportunidade de passar
as férias escolares em... em... Serra Nova!!! Aquele
lugar de sonho, no sopé da Serra Geral e pleno de belezas
naturais, era o passeio mais disputado da família, isto
porque, já por falta de lugar no carro, nunca dava para
ir todo mundo. Lá era onde Vó Dadinha, mãe
de pai, morava e onde ele, em paralelo a sua profissão
de caixeiro-viajante, mantinha alguns pequenos empreendimentos.
O centenário povoado possuía uma rua só,
oferecendo dois rios para se banhar (vinham da serra, havendo
cachoeiras!) e toda uma vasta e verdejante amplidão a
explorar. Quando se via ali, Lô se soltava ainda mais,
mergulhando de cabeça nos poços dos rios Bomba
e Suçuarana, e em tudo mais que fazia, como, num passeio
que era proibido, subir a serra a caçar animais rasteiros.
Por gostar de dar seus mergulhos pelado, ganhou fama de “Peladão”;
outra fama, esta dos filhos de Dário em geral, era de
que eram “patos”, de tanto que eram vistos nadando
nos rios. Mas em Serra Nova também era preciso trabalhar,
e Lô bem que ajudava. Ora na lida da roça. Ora
tangendo a parelha de bois que faziam o moinho girar, espremendo
a cana-de-açúcar usada na fabricação
de rapadura. Ora também ajudando a fazer farinha de mandioca
e goma. Se sentia identificado e realizado com tudo e até
dizia que era ali que queria viver.
A
verdade é que Lô sempre teve apreço pelo
trabalho e isto nele se manifestou desde tenra idade. Como adorava
assistir às matinês de cinema no domingo, mas raramente
tinha dinheiro para comprar o ingresso, por iniciativa própria
ofereceu-se aos respectivos proprietários para ser o
baleiro dos cines São Luís e Coronel Ribeiro.
Pois não é que conseguiu! Enquanto a sessão
não começava lá estava ele, com o caixote
de balas e goma de mascar pendurado ao pescoço, a circular
pelo salão, oferecendo sua tentadora mercadoria ao público.
Para ele o lucro era duplo, pois, além de ganhar seus
tostões, assistia aos filmes de graça. A depender
da classificação etária do filme, o trabalho
se estendia até a noite. Em casa, seu retorno era esperado
com pois
nunca deixava de trazer bala para mãe (seu xodó),
de repente sobrando também para nós irmãs
e irmãos. Era, sem dúvida, o brotar do Lô
provedor e patrocinador, dois traços que sempre foram
marcantes em sua personalidade, conforme muitos, tanto de dentro
como de fora da família, podem atestar.
Havendo
entrado na puberdade, fase da vida marcada por importantes transformações,
passou aos doze anos a cursar o ginásio no Colégio
Normal Oficial Professor Plínio Ribeiro – outro
nome para a tradicional Escola Normal de Montes Claros e atual
Escola Estadual Professor Plínio Ribeiro –, localizado
à época no histórico sobrado que hoje abriga
o Museu Regional do Norte de Minas. Naquele que desde sempre
foi um reduto de grande efervescência cultural, artística
e educacional, por onde muitas cabeças pensantes da terra
passaram, na certa ele muito aprendeu e muitas emoções
viveu. Veneração, pode-se dizer, ele tinha por
certos notórios, e rigorosos, professores da época,
nomes como Rameta (Matemática), Francolino (Ciências),
Pedro Santana (História), Amâncio (Latim), Dulce
Sarmento (Música), Ivone (Português), Terezinha
Guimarães (Francês), que entraram para a história
da cidade como exemplos admiráveis de amor e dedicação
ao magistério. Se então o Lô gostava das
Letras, eu não sei, mas de Matemática e História
os indicativos eram que sim.
Continuava
com as aventuras no mato, mas agora estas tinham de dividir
a vez com novos interesses, como cinema, esporte, circo. Os
gêneros cinematográficos de sua predileção
eram bangue-bangues e épicos históricos, as comédias
românticas também tendo vez. Na Praça de
Esportes, onde por extensão escolar se praticava Educação
Física, era frequentador assíduo da piscina olímpica,
revelando-se um exímio nadador. Já o lendário
“Campinho do Bariri”, o qual ficava próximo
de casa, na junção da rua Januária com
a Coração de Jesus, onde à época
a rua Januária terminava, era onde ele jogava suas peladas,
estas congregando a moçada da vizinhança e acontecendo
geralmente no fim da tarde. E, quando algum circo chegava à
cidade e o carro passava
anunciando “Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor!”,
ele era dos primeiros a ir assistir, nem que para isso, quando
falto de grana, tivesse de entrar passando por debaixo da lona.
Problema que aí, na nossa casa, pai já o estava
esperando para dar-lhe uma sova. Fazer o quê... Ele sabia
que estava errado, mas o fascínio pelo circo era mais
forte que ele, tanto que, segundo dizia, queria ser domador
de leões.
O
rapazinho agora se juntava a grupos que saíam à
noite com o objetivo de paquerar, aqui numa esquina, ali numa
praça, ou onde mais, nas redondezas, houvesse garotas
dando sopa. De sua parte, maquiadas, perfumadas, bem vestidas,
lá vinham as meninas, também em grupos, desfilando
como se estivessem numa passarela – e não, consoante
diziam tentando disfarçar, “apenas fazendo o footing”.
À sua passagem, rapaz nenhum ficava calado, com uns proferindo
galanteios e outros assoviando, fazendo fiu fiu. A mana Dade
tinha umas amigas bonitas e era principalmente na direção
delas que o Lô dirigia seu olhar. Não havia contato
físico, era mais na troca de olhares (flerte) que se
manifestava a atração e a reciprocidade.
Também
acontecia de a molecada da rua se juntar para formar trincas
belicosamente territoriais, que como tais se empenhavam em manter
livre de penetras a área que consideravam ser seu território.
Havia a trinca da Rua Januária, da Cula Mangabeira, da
Tiradentes, da Praça Coronel Ribeiro e outras mais. Cabra
macho declarado, ainda
mais ele que adentrava grutas sozinho e pensava tornar-se domador
de feras selvagens, era o Lô quem sempre comandava a trinca
da sua rua, às vezes coligada com as de ruas próximas,
para o que desse e viesse. O estopim maior era o surgimento
de estranhos cobiçando as meninas do pedaço. Podia
até não se partir para a violência, mas
havia enfrentamentos e disputa de poder. Era a masculinidade
dos ainda meninos querendo se estabelecer.
Logo
o ginasiano passaria a dividir o estudo com o trabalho. Por
volta dos treze anos, Lô arrumou emprego na Fábrica
de Ladrilhos do Seu Odorico, na esquina da Rua Tiradentes com
Dr. Veloso. Pessoa generosa
e de espírito aberto, Seu Odorico sempre o estimulava
à prática do ofício e ali ele exerceu funções
que variavam de entregador
de mercadoria (office boy) a vendedor e auxiliar administrativo.
Da remuneração que recebia, nunca faltava um dinheirinho
para ajudar a mãe nas despesas da casa.
Ao
se desenvolver fisicamente, tornou-se um rapaz bonito e charmoso,
além de vaidoso. O perfil à la Alain Delon mais
os olhos repuxados e empapuçados davam-lhe um aspecto
estiloso – em casa, fazendo troça, os irmãos
lhe diziam: “Você abre o olho, que você não
é Tião Camurça”, numa referência
ao conhecido montes-clarense o qual tinha olhos empapuçados
e bastante fechados. A cabeleira vasta, às vezes dosada
com brilhantina, lhe garantia um topete sensual, que ele capitalizava
apresentando-se perante o público feminino sempre perfumado
e bem vestido. Adorava dançar ao som da música
orquestrada e era pé de valsa nas festas e bailes a que
tinha acesso. Como muitos outros jovens da época, aguardava
com ansiedade a manhã do domingo para se encontrar na
Boate da Praça de Esportes. Boate à luz do dia
pode hoje soar estranho, mas era a pura verdade. A tradicional
hora dançante matutina começava às onze
horas, após a missa dos jovens na igreja Matriz, e, na
alegria do valseado e da conversa fiada, se estendia até
às três da tarde. Também havia hora dançante
no Clube Montes Claros e os clássicos Bailes de Debutantes
do Automóvel Clube, onde ele sempre era convidado a compor
par com as colegas e amigas. Entretanto, embora cobiçado
pelas meninas, Lô não chegou a se mostrar galanteador,
nem muito namorador. Seus relacionamentos não iam além
de namoricos mais ou menos ligeiros, se bem que mesmo assim
ainda hoje há em Moc quem declare paixão eterna
por aquele bonitão, que realmente era de encher os olhos.
NA
SUA ESTRADA DA VIDA, BELO HORIZONTE
Enquanto
isso, naquele lar de classe média de número 34
da Rua Januária, número que anos depois passaria
a 435, por força da
expansão da Rua Januária ao encontro da Avenida
Mestra Fininha, a família não parava de crescer,
aumentando o número de bocas que alimentar e impondo
decisões. Certo também era que, ao ser registrada,
a criança teria “Patrocínio” em seu
nome, tal prática se configurando como uma devota homenagem
de pai a Nossa Senhora do Patrocínio, padroeira de sua
venerada Serra Nova. Tinha sido assim com os dez primeiros filhos,
e não seria diferente com os dois últimos, que
nascem, respectivamente, em 1960 e 1962.
Mil
novecentos e sessenta é também o ano em que Lô,
com dezesseis anos de idade, conclui o ginásio. Então,
mais como necessidade do que aspiração, a emancipação
financeira se impõe para ele. Era preciso procurar a
capital do estado, onde as oportunidades de trabalho eram melhores
e onde também se poderia continuar a estudar, com perspectiva
de acesso ao ensino superior. Confiante no potencial daquele
seu filho, tantas provas do mesmo ele já dera, o pai
assim determina, a mãe o entrega para Deus e para Belo
Horizonte lá vai o Lô.
Era,
sem dúvida, um grande desafio para o mano, que afinal
não passava ainda de um adolescente. Então, com
cerca de setecentos mil habitantes e com sua população
praticamente dobrando a cada década, Belo Horizonte era
já uma grande metrópole, podendo num primeiro
momento mostrar-se hostil para quem, de “mala e cuia”,
chegava vindo do interior. Começava para o Lô,
de um modo mais cru e com quase tudo quanto lhe era mais querido
tendo ficado para trás, o salve-se quem puder, que na
cidade grande é comumente anônimo, cada pessoa
não passando de um rosto a mais na multidão. Mas
pelo menos em Beagá a família tinha parentes,
além de contatos.
De
início, Lô fez morada na casa da Tia Judite, que
era o portal de entrada dos Oliveira (família pelo lado
materno) na capital. Quanto a emprego, as boas relações
de pai com a empresa H. Mascarenhas, da qual como caixeiro-viajante
era representante comercial, garantiramlhe uma colocação
no escritório da Companhia Fabril Mascarenhas, conhecida
indústria do ramo têxtil. Já quanto aos
estudos, estes teriam
continuidade no Colégio Anchieta, com o Lô agora
matriculado no antigo curso científico. Nesse embalo,
o mano não tardou em deixar a casa da tia para trás,
indo morar na pensão de propriedade de uma senhora, a
quem ele viria ainda a ser especialmente ligado. Uma das vantagens
da pensão é que nela estaria na companhia de colegas
seus de colégio que também eram conterrâneos
do norte de Minas.
Enquanto
viveu em Belo Horizonte, e foram quatro anos, Lô se manteve
trabalhando na Cia. Mascarenhas. Ali ele foi uma revelação,
numa demonstração do profissional de grande valor
que ele sempre foi. Tendo iniciado no cargo de auxiliar de escritório,
o mais elementar, em pouco tempo, aos dezenove anos apenas,
já era o chefe do escritório! Como a meteórica
carreira foi possível? Graças exclusivamente a
certas qualidades inatas do Lô, tais como capacidade de
trabalho e de organização, espírito de
liderança, zelo, interesse, comprometimento, inteligência,
sagacidade. No labor do dia a dia, a prática, mais que
a teoria, o levou a dominar os princípios de administração
e contabilidade que o cargo requeria.
Trabalhando e estudando (à noite) e mesmo assim não
deixando de fazer suas farras, precisou de um ano a mais para
concluir o ensino médio, o que se deu em 1964, quando
então era aluno do Colégio Afonso Celso. Vida
intensa aquela: ao mesmo tempo em que bastante ocupada, também,
conforme os jovens mais prezam, bastante livre. Embora fosse
muito bem tratado na pensão, resolvera junto com os conterrâneos
ali residentes fundar a “República dos Inocentes”,
a qual entrou para a história. Sempre sob seu comando
como gestor e embaixador, nela residiram vários futuros
doutores do norte de Minas, a exemplo de Péricles dos
Anjos, Antônio Maia, Hélio Guimarães, João
Jaques e Artur Gomes, os três primeiros tendo também
se tornado políticos. Muito sabidos todos. Além
de poderem estar completamente à vontade, a república
era para eles um jeito de ter na capital uma extensão
familiar e de não perder as raízes e as boas tradições
da terra natal. Conta-se até que na despensa da casa
nunca faltavam guloseimas enviadas pelas saudosas mães,
menos ainda a boa cachaça do norte de Minas, para isso
estando ali Péricles dos Anjos, providencial representante
da cidade de Salinas. A consequência da fraternal e não
raro etílica convivência foi que aqueles “republicanos
inocentes” nunca mais deixaram de ser amigos.
Mesmo respirando ares metropolitanos, Lô não se
desligava de seus afetos e terra de origem. O chamego com sua
mãe sempre foi forte e seu compromisso familiar nunca
deixou de existir. Assim que podia, pegava o trem para Montes
Claros, onde sua chegada era esperada com ansiedade, sendo motivo
de grande alegria. Também porque sempre trazia presentes
e agrados de coisas que, à época, só existiam
na capital mineira, como maçãs importadas da Argentina,
bombons das Lojas Americanas, eletrodomésticos, sendo
a mãe a primeira a ser presenteada. A casa ficava ainda
mais alegre quando chegavam os primos e amigos para matar as
saudades. Com estes ele então, não perdendo o
costume, combinava as próximas pescarias.
Em Belo Horizonte, chegaria para ele o tempo de amar de verdade!
Só lhe restou então assumir com seriedade o namoro
com a... filha da dona da pensão. Sim, a Dirce, filha
da Dona Coty, senhora muito severa que tinha duas filhas e que
com toda a sua autoridade não permitia que nenhum rapaz
na pensão ousasse bulir com elas. Por isso, ele só
se revelou e pediu a Dirce em namoro quando saiu da pensão.
Para Lô, segundo suas próprias revelações,
Beagá foi o portal onde seu futuro se descortinou. Ali,
com a luta por se fazer a si mesmo e se tornar independente,
custasse quanto custasse (custando-lhe a meu ver um amadurecimento
precipitado), foi onde ele achou seus meios, criou suas defesas,
ampliou suas aspirações e se descobriu em suas
potencialidades. Foi também onde encontrou sua futura
esposa e mãe de seus filhos – filhos que ele faria
questão que nascessem em Belo Horizonte, mesmo quando
ele e a Dirce já não moravam mais lá.
PULSANDO
NO PLANALTO CENTRAL, BRASÍLIA ATRAÍA...
Não
sem esforço, já que também trabalhava em
tempo integral, o diploma do ensino médio havia sido
conquistado, mas... e agora? Continuar crescendo e galgando
postos no trabalho, ou partir com força e vontade para
um curso superior? Nas universidades públicas, e em Belo
Horizonte havia a UFMG, os cursos bem que eram gratuitos, só
que tinha um porém: eram diurnos, e de dia ele trabalhava.
Largar então o emprego? Complicado... Os pais não
tinham como sustentálo e, mesmo que tivessem, ele não
permitiria. Afinal, aprendera a se virar por conta própria
e isso, por uma questão de honra pessoal sua, não
tinha mais volta. Contudo, como não seguir adiante com
os estudos, se neles estava a chave para um futuro melhor? Cérebro
ele tinha! (De fato, “descerebrado”, uma metáfora
que o Lô gostava muito de usar, ele não era.) E,
já que tinha cérebro, o jeito era dar um jeito
de continuar estudando. Em Belo Horizonte, onde seria mais fácil
e cômodo, por ali já contar com toda uma rede de
amigos e contatos, sem falar no emprego e no namoro, o qual
já estava virando coisa séria? Ou, quem sabe,
tomar outro rumo?... E que carreira escolher? Aquelas mais tradicionais
e ao gosto dos pais, como Medicina, Direito, Odontologia, Engenharia?
Não, essas não, nenhuma delas condizia com suas
aptidões.
E foi, não só na depuração do provável
com o viável, mas também nas suas visões
futurísticas, que lhe veio à mente uma carreira
até então pouco conhecida e procurada: de Economista.
À época, o Brasil passava por uma efervescência
de ideias políticoeconômicas e, no processo de
reforma, buscavam-se estratégias mais desenvolvimentistas
para tirar o país do atraso. Precisava-se trabalhar com
política de resultados, e a Economia, como ciência,
já era reconhecida como apta a fornecer os conhecimentos
necessários para a formulação de planos
de ação e adoção de medidas, assim
como para o controle e avaliação de resultados.
Sem
vacilar, Lô vislumbrou a carreira a abraçar e convidou
o mano Zé. Zezinho, para quem ele já havia arrumado
emprego na Mascarenhas (de escriturário), havia se mudado
para Belo Horizonte em setembro de 1964, em busca de um novo
rumo para sua vida, após ter passado quase oito anos
em seminários, em Montes Claros e Diamantina, estudando
para padre. Os dois então descobriram que na nova capital
federal a recém-implantada Universidade de Brasília
não só oferecia o curso de Economia (Ciências
Econômicas), como o mesmo era pontuado com cinco estrelas,
a pontuação máxima. Pois em dezembro de
64 lá estavam, prestando o vestibular. Passaram de primeira,
com o Zezinho, numa proeza de que até hoje ele se gaba,
por ser à época fraco em Matemática, se
classificando em terceiro lugar – uma vez que ia virar
economista, o ex-seminarista tratou então de sanar sua
deficiência em Matemática tornando-se professor
de... Matemática! Com eles estava o conterrâneo
Luiz Fernando Sarmento, amigo muito querido do Lô e em
quem ele reconhecia uma grande inteligência.
Lô mudou-se para Brasília no início de 1965,
após demitir-se do emprego e pedir tempo e paciência
à namorada para o amor à distância. Naqueles
idos, recém-inaugurada e ainda em construção,
Brasília apresentava-se inóspita e distante. Denominada
de cidade do cimento armado, difícil mesmo era alguém
declarar amor por ela. “Candango”, uma palavra que
se usava muito ali em referência aos trabalhadores da
construção da nova capital, não deixava
também de significar “pioneiro”, “desbravador”,
“pessoa confiante no progresso”. E o novo candango
Lô tinha muito a ver com este perfil! De imediato ingressou
na Universidade de Brasília, com moradia em seu alojamento
de estudantes, e, por um período significativo, a universidade
foi o seu
mundo. Ali fez morada, estudou, trabalhou, se politizou, fez
amigos e virou economista, sua profissão até se
aposentar.
Preliminarmente, para se ter ideia de quanto o Lô foi
impactado na sua vida daí por diante, cabe uma referência
ao estilo inovador e à
ebulição política que aracterizavam a UnB
nos anos 60. Inaugurada em 1962, a Universidade de Brasília
nasceu dos planos visionários do antropólogo Darcy
Ribeiro, gênio montes-clarense que definiu as bases da
instituição, e do educador Anísio Teixeira,
que definiu seu modelo pedagógico, sem se esquecer de
Oscar Niemeyer, que traçou sua arquitetura. Fugindo das
estruturas convencionais das universidades de então,
a UnB foi concebida com o propósito de entrelaçar
as diversas formas de saber e formar profissionais engajados
na transformação do país. Por esta característica
e por sua localização nas imediações
do poder, foi uma das universidades mais atingidas durante o
regime militar, com invasões históricas e prisões
constantes de professores e alunos acusados de subversivos.
Em termos de ensino, com bases mais flexíveis, o período
letivo era semestral com as disciplinas moldadas no sistema
de créditos, o que permitia ao aluno
programar seu próprio calendário, desde que as
matérias escolhidas atendessem os pré-requisitos
exigidos. Em termos da estrutura física, o câmpus
era uma verdadeira cidade, oferecendo amplas estruturas de ensino,
pesquisa e extensão, além de alojamentos e áreas
de lazer.
Na UnB, Lô estudou de 1965 a 1968, até graduar-se.
Iniciou o curso já como bolsista de graduação,
o que lhe assegurava a sobrevivência, cabendo-lhe em troca
prestar serviços à universidade. Passou, por exemplo,
o ano de 1967 trabalhando na elaboração de apostilas
e pesquisas dirigidas junto ao Departamento de Economia, com
carga semanal de trabalho de vinte horas. Até alcançar
os estágios remunerados, também não deixaria
de fazer “bicos” como monitor e instrutor em treinamentos
e seminários. Os anos iniciais exigiram dele grande dedicação
aos estudos, para nivelamento de conhecimentos, domínio
de Matemática, Estatística, familiarização
com matérias até então desconhecidas, como
Metodologia Científica, Sociologia. Um privilégio,
que não deixava de ser também um desafio, era
poder ali ser aluno de mestres de renome, como um Lauro Campos,
Aliomar Baleeiro, Bento Bulgarin, Dércio Munhoz, entre
outros.
Todavia,
conforme já se fez menção, aqueles definitivamente
não eram tempos de normalidade, com a UnB, desde que
os militares haviam tomado o poder em abril de 1964, estando
sujeita a invasões de seu câmpus por tropas policiais
militares. Em outubro de 1965, com o Lô ali presente,
isso voltaria a acontecer, mais uma vez causando grandes transtornos
e agravando um quadro que já não era de pleno
funcionamento da universidade. Então, docentes e estudantes
estavam em greve em protesto contra a demissão de três
professores acusados de subversivos. Sob a invasão, a
UnB ficou interditada, não se podia entrar nem sair,
qualquer aglomeração de pessoas era logo dispersada.
Com a ocorrência de novas demissões por suspeitas
de subversão, 73% dos docentes pediram demissão,
inconformados com as arbitrariedades que se vinham cometendo.
Este clima de instabilidade, que seriamente prejudicava a vida
acadêmica, se manteve por todo o tempo em que o Lô
estudou e morou na UnB e, segundo ele, era comum os estudantes
acordarem nas madrugadas com baioneta na cabeça e ordens
de desocupar o recinto. Vivenciou também a violenta invasão
ocorrida em agosto de 1968, em que mais de quinhentas pessoas
foram detidas e um estudante foi baleado. Então, mesmo
sem ser militante estudantil, Lô teve que entrar no camburão
e provar sua inocência, sorte diversa tendo o Zezinho,
que, por presidir o Diretório Acadêmico de Ciências
Jurídicas e Sociais da UnB, ficou preso até averiguação.
Em outubro de 1967, Lô já começava a fazer
estágio supervisionado como estudante de Economia, iniciando-se
na carreira desde aí. O estágio era no Ministério
da Agricultura, onde permaneceria como estagiário até
o fim do curso, passando por áreas importantes, como
administração orçamentária e financeira
e estruturas de planejamento agrícola.
Paralelamente às aulas e ao estágio, não
perdia os programas de extensão universitária,
por meio dos quais tinha acesso a seminários e cursos
importantes nas áreas de economia, brasileira e internacional,
e agronegócio.
Foi então que surgiu uma oportunidade de ouro, a qual
ele não deixou passar. Primeiro foi preciso enfrentar
uma concorrida seleção. Ao ser bem-sucedido, integrou
um grupo de representantes da UnB que, no primeiro trimestre
de 1968, foi a Washington, capital dos Estados Unidos, para
participar de um seminário patrocinado pelo Departamento
de Estado daquele país. Durante dois meses, representantes
de universidades de vários países debateram sobre
programas acadêmicos na American University, Catholic
University e Howard University, ocorrendo também debates
com oficiais do governo e líderes da sociedade americana.
Ao ficar bem impressionado com tudo o que viu e ouviu, Lô
firmou propósito de retornar aos EUA para aperfeiçoamento
dos estudos de Economia.
Lô
(primeiro à esq.) e colegas da UnB em Washington (1968)
A
viagem, que teve passagem pelo México, foi a primeira
experiência internacional de um membro da família
e, em nossa casa em Montes Claros, nós todos estávamos
muito orgulhosos, e mais ainda ansiosos para que ele aparecesse,
nos contando tudo sobre o “fantástico” país
do Tio Sam, conforme por fotos o mesmo nos parecia
ser. Claro que ele não demorou a dar as caras e óbvio
que não chegou sem estar trazendo presentes e lembranças
dos dois países. Pelo que ainda me lembro, eram coisas
como um par de sombreros ornamentais, um cinzeiro de bronze
enorme, do tamanho de um
prato de comida (à época fumar era charmoso),
camisas, perfumes e até um secador de cabelo para as
mulheres. Sim, também aquilo que no Brasil do interior
estava ainda no começo, estando em minoria as casas que
já a possuíam: uma televisão! A marca era
Mitsubishi e foi preciso usar um transformador de voltagem.
Por
falar em energia, a daquele dinâmico universitário
era tal, que ele ainda achava tempo e gás para se meter
em aventuras empresariais. De fato, na certa se valendo da experiência
interrompida na Fabril Mascarenhas, entre 1965 e 1968 Lô
esteve associado a dois colegas, um dos quais o Luiz Sarmento,
numa pequena fábrica de camisas de malha, que se chamou
Incomalhas Indústria e Comércio de Malhas. Mediante
financiamento, os três sócios adquiriram e instalaram
os equipamentos de fiação e começaram a
confeccionar camisas masculinas de cores vivas e de alto padrão
de qualidade. Não se sabe bem por quê, o negócio
não vingou, mas, enquanto houve produção,
as camisas chegaram a ser vendidas inclusive em Belo Horizonte
e Montes Claros, contando nessas praças com amigos e
irmãos (como eu em Moc) como representantes comerciais
e vendedores.
Por
essa época, quando Lô, Zezinho e Carlinhos vinham
para casa, onde se juntavam ao Tuca e amigos, a farra parecia
que não teria mais fim. Tuca, o mais velho, figura conhecida
na cidade, como goleiro do time do Cassimiro de Abreu e gerente
da Brahma, tinha um senso de humor que era simplesmente genial.
Dele ninguém ficava perto que não fosse rindo.
Os irmãos pequenos participavam da farra fazendo o papel
de garçons. Eles que iam à cozinha buscar a cerveja
e os tira-gostos que a mãe e as irmãs preparavam.
Em troca, pediam aos irmãos mais velhos que fizessem
o “muque”, pois tinham curiosidade em saber qual
era o mais forte, mesmo que fosse só na aparência.
Aí o Lô
gostava, pois tinha o bíceps bem desenvolvido desde o
tempo em que, por correspondência, praticou halterofilismo
em Beagá.
Após
intensos quatro anos, o curso na UnB se aproximava do fim. Então
chegou o dia 13 de dezembro de 1968, uma data histórica
para Lô e Zezinho, sem falar que também para o
Brasil. Era o dia da cerimônia de formatura dos dois,
o Zezinho, orador da turma, com o discurso já pronto.
Azar que também foi o dia em que se baixou o AI-5, que
entre outras infâmias proibia os estudantes de discursar
na colação de grau. Zezinho ainda manteve o discurso
no bolso, acreditando que poderia ter chance. Mas não,
o cerimonial estava irremediavelmente prejudicado. Mesmo sem
discursos, mas solenemente de toga e beca, a formatura foi emoção
para todos: para o Lô e o Zezinho, pelos obstáculos
vencidos e louros alcançados; para os pais, pelo sonho
dourado que era verem os primeiros filhos formados e inclusive
já encaminhados na carreira de economista; para os irmãos,
pelo exemplo e pelo canal aberto na capital federal; para os
amigos, por se sentirem parte integrante do processo.
Diploma
na mão, novas vontades a colidirem entre si. Vontade
de fazer especialização em economia agrícola
nos Estados Unidos. Vontade de continuar trabalhando no Ministério
da Agricultura, onde já criara vínculo e se lhe
oferecia uma carreira promissora. Vontade de casar e formar
família. Vendo de longe o filho assaltado por dúvidas,
o pai, que tinha facilidade de expressão, mesmo tendo
estudado somente até o terceiro ano primário,
escreve-lhe uma carta em 16 de julho de 1969, aconselhando:
Lô: Conselho de pai sempre é bom. Peço não
deixar seu emprego precipitadamente, reflita bastante, hoje
há dificuldades em todos setores, ninguém vive
satisfeito com o que tem. Vamos conformar com aquilo que temos,
que a fase é de transições. Sendo que você
pretende se casar, acho difícil fazer curso no estrangeiro,
a não ser que leve a esposa também. Você
tem possibilidades de ganhar e aprender aqui mesmo no Brasil.
Não quero com isto, porém, cortar os seus planos.
Às vezes eles estão acima dos meus conhecimentos
e do que penso.1
TALENTO
NOVO NA MÁQUINA ADMINISTRATIVA FEDERAL BRASILEIRA
Seguindo
o conselho dado pelo pai, Lô resolveu ficar onde já
estava, deixando em banho-maria seus outros sonhos e projetos.
Já reconhecido como economista no Ministério da
Agricultura, foi posto agora a trabalhar como assessor econômico
na Inspetoria Geral de Finanças. Nessa qualidade, e já
que possuía visão inovadora, capacidade de organização
e domínio de redação, compôs a equipe
responsável pela reforma administrativa do MA nos anos
1968-1969, cujo propósito era a sistematização
e implementação de normas de administração
financeira, contábil, de auditoria fiscal e de auditoria
das tomadas de contas do ministério. Integrou ainda,
ora como assessor, ora como coordenador, importantes grupos
de trabalho encarregados de atender a demandas de política
pública. Veio a participar assim da fusão do então
Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) com o
Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda),
a qual deu origem ao Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra), em 1970. Pois para o novo
órgão foi cedido com a missão de contribuir
na sua viabilização, o Incra sendo até
hoje o órgão responsável pela política
agrária nacional.
Durante
o tempo em que permaneceu no Incra (1970-1973), foi Assessor
da Presidência, se ocupando mais que tudo com planejamento
estratégico. Nas décadas de 60 e 70, na esteira
de um discurso nacionalista contra a internacionalização
da Amazônia, os militares projetaram grandes obras, como
a Transamazônica, e criaram diversos programas para assegurar
a soberania brasileira na região,
encarregando-se o Incra de implantar ao longo das rodovias projetos
de colonização e consequente ocupação
do território. Nesse contexto, coube ao Lô a função
de chefe do Grupo de Trabalho e Planejamento da Colonização
da Amazônia, cumprindo-lhe deslocarse frequentemente,
para realização de pesquisas in loco e participação
em debates intergovernamentais. Grande ênfase deu-se ao
Projeto Integrado de Colonização de Altamira,
cujo modelo organizacional proposto em agrovilas, agrópolis
e rurópolis veio a ser adotado como modelo para ocupação
de grandes espaços. Também no âmbito dos
programas especiais de desenvolvimento regional criados à
época, a exemplo do PIN, Proterra, Provale, Poloamazônia,
ao Lô foi delegada a missão de articulador do Programa
de Integração Nacional (PIN) no âmbito do
Ministério da Agricultura, onde atuou na programação
e distribuição de recursos.
Ocioso dizer que para o novel economista a vida não se
resumia ao trabalho. Fatos que o afetavam diretamente, tristes
uns, alegres outros, vinham acontecendo... Assim, no dia 16
de dezembro de 1969, de infarto fulminante, morria o nosso pai
aos cinquenta e nove anos de idade, justo no dia da formatura,
em Medicina, de seu segundo filho, Carlos Patrocínio,
estudante em Uberaba. Uma cruel ironia porque, já com
dois filhos formados em Economia, o que mais desejava era ter
um filho médico. E, dali a menos de quatro meses, em
outro inesperado e terrível abalo, ocorrido a 3 de abril
de 1970, morria de acidente automobilístico com apenas
vinte e nove anos o Tuca, numa curva da estrada de Januária
a Montes Claros. Morte absurda e ironia maior ainda, pois quem
mais dominava as estradas do sertão norte-mineiro era
ele próprio, nos tempos em que optou por ser motorista
do pai caixeiro-viajante. No pesaroso abraço a mim dado,
Lô expressou a sua dor:
— Morreu a alegria da casa. Seremos nós capazes
de um dia voltar a sorrir?
Cada
um vivia ainda a sua dor e luto quando, meses depois, foi possível
voltar a sorrir de novo, graças a um acontecimento em
torno do qual, aliás, havia grande expectativa, em especial
por parte de um certo alguém. Como àquele namoro
à distância que já durava sete anos só
cabia um desfecho feliz, Lô e Dirce, em conformidade com
a tradição mineira da época da filha só
sair de casa após a jura no pé do altar, se casam
em Belo Horizonte, no dia 19 de setembro de 1970. A cerimônia
na Igreja São Pedro foi simples, mas clássica
e descontraída, iluminada com a alegria dos familiares
e amigos mais próximos. A casa própria em Brasília,
um apartamento de três quartos localizado na Quadra 404
da Asa Sul, já estava adquirida. Não era à
toa que o Lô vinha trabalhando muito e poupando, com um
detalhe importante: ele como funcionário público
sempre foi bem pago, conforme ele próprio reconhecia
e até se gabava.
O apê da 404 Sul foi, no entanto, apenas o começo.
Chegaria o tempo, e não demoraria muito, em que o funcionário
de alto nível exerceria cargos de direção
que lhe davam direito de ocupar imóvel funcional. Em
consequência, foram muitas as mudanças para lá
e para cá em Brasília, sua residência ora
sendo na Asa Norte, ora na Asa Sul, ora no Lago Sul etc. Uma
coisa, no entanto, nunca mudava. Zeloso para com os irmãos
e generoso com os parentes, especialmente os mais humildes,
Lô, aliado à hospitalidade da Dirce, sempre fez
da sua casa um espaço de acolhida em Brasília.
Espaço de acolhida e também de recepções:
almoços, jantares, lanches, comemorações,
a comida e a bebida sempre muito fartas e da melhor qualidade.
Simplesmente inesquecíveis, ainda hoje dando água
na boca, as feijoadas da Dirce e os churrascos do Lô.
O mano adorava a comida caseira, mas era exigente, tudo tinha
de estar perfeito, senão reclamava.
Quando é fevereiro de 1972, seu primeiro filho nasce:
Marco Antônio, sendo o “Antônio” uma
homenagem a Tuca, cujo nome era Patrocínio Antônio.
Sua filha Ludimila nasce em setembro do ano seguinte.
Mesmo
tendo-se feito chefe de família e não obstante
as responsabilidades do trabalho, Lô não se desligava
de sua mãe e irmãos mais novos, crescendo em Montes
Claros órfãos de pai. Apesar da assistência
que eles, filhos mais velhos, davam à distância,
inquietavam-no as dificuldades e agruras que a mãe, sem
o marido, vinha enfrentando para criar seus cinco filhos menores,
um dos quais, o Tião, já se encontrava em Brasília.
Inquietava-o também o futuro dos irmãos, que precisavam
de oportunidades de estudo e trabalho – como eu mesma,
que, apesar de já estar no exercício do magistério
primário, finalizava o curso de Pedagogia na Fafil sem
perspectiva de ascensão funcional no limitado mercado
de trabalho da Montes Claros de então. Articulado com
o Zezinho, Lô criou os meios de moradia e de acesso escolar,
convenceu mãe, que resistia a sair de seu canto e se
mudar, e viabilizou a mudança de todos para Brasília.
Já com emprego no Incra como Técnica em Educação,
articulado por ele, eu parti na frente, e, dois meses depois,
em fevereiro de 1972, foi mãe com o restante da prole.
Graças ao solidário gesto, novos e amplos horizontes
se abriam para todos nós.
MESTRE
EM ECONOMIA AGRÍCOLA
Em
janeiro de 1974, o sonho do seu mestrado nos Estados Unidos
se pôs em marcha. O Ministério da Agricultura o
liberou pagando-lhe os salários e o governo americano
lhe concedeu uma bolsa de estudos pelo Usaid. Com a esposa,
os dois primeiros filhos ainda bebês e a mana Graça,
que tinha completado dezoito anos e arranhava um inglês,
Lô partiu para Stillwater, em Oklahoma.
A Oklahoma State University podia não ser uma Harvard
ou uma Yale, mas foi a oportunidade surgida e ele a agarrou,
mostrando bravura e competência, pois o domínio
da língua ainda era limitado e o curso, falado e escrito,
seria integralmente em inglês. Talvez ali tenha sido onde
o Lô mais foi posto à prova em toda sua vida. Em
ao menos
uma carta da época, ele deixa transparecer o esforço
imenso que precisou fazer e o quanto aquilo o exauriu. Também
pudera: ele encasquetou que só poderia tirar nota A,
isto quando os professores eram muito rigorosos, especialmente
seu orientador, figura a respeito de quem por muitos anos ouviríamos
ele falar. Nessas ocasiões, dava para notar que ele falava
com um misto de raiva e gratidão pelo mesmo. Chegava
a dizer que o sujeito só poderia ser sádico, pois
questionava até mesmo as vírgulas dos papers que
ele, dando tudo de si, produzia. Mas aí na mesma hora
seu semblante desanuviava, dando a ver seu orgulho e satisfação
por ter ido, se virado e vencido, realizando seu sonho.
Por extensão do curso na Universidade Estadual de Oklahoma,
durante três meses estudou também na Universidade
da Flórida, em Gainesville. Para conclusão do
mestrado, defendeu dissertação com o título
Agricultural development, resource use and the settlement of
new lands in Latin America – Policy issues (Desenvolvimento
agrícola, alocação de recursos e assentamento
de agricultores em novas terras da América Latina –
Aspectos políticos). A premissa do trabalho foi
a defesa da viabilidade econômica das áreas reformadas
mediante a existência nelas de empresas agropecuárias
asseguradoras e promotoras de todo um sistema integrado de produção
(não só plantar e colher, mas também beneficiar
e comercializar), e a proposta de uma política de melhor
distribuição dos recursos provenientes dos programas
internacionais de desenvolvimento. A dissertação
foi aprovada e, em janeiro de 1976, foi-lhe outorgado o diploma
de Master of Science in Agricultural Economics, com nota final
96,7.
Nos Estados Unidos, pilotando um carrão no melhor estilo
americano, com a família a bordo, Lô também
andou viajando e curtindo. Grand Canyon, Las Vegas, Disneylândia...
Ao regressar a Brasília, o diploma ele guardou num baú
em sua casa e, após passados muitos anos, teve um dia
em que pensou em tirá-lo de lá e se apresentar
numa faculdade ou universidade, propondo-se a dar aula. Contudo,
foi
só uma ideia passageira, não chegando a se tornar
um projeto ou real desejo, de forma que ele deixou para lá.
DIRETOR
DA SUDEPE, FESTEIRO EM SERRA NOVA, FAZENDEIRO...
De
volta ao Brasil, o Lô, sem sair do Ministério da
Agricultura, onde se reapresentara ao chegar, assumiria nova
missão a partir de abril de 1976, agora no setor pesqueiro,
como Diretor do Departamento de Aplicação de Incentivos,
da Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (Sudepe).
Na época, de olho no grande potencial da faixa costeira
do país, o governo estava empenhado em modernizar a atividade
pesqueira, encontrando-se em implementação o III
Plano Nacional de Desenvolvimento da Pesca (1975-1979), com
metas ousadas de crescimento do setor, acima de 7% ao ano, e
com diretrizes mais voltadas para o estímulo ao setor
privado, mediante incentivos financeiros e fiscais. Precisamente
neste “mediante incentivos financeiros e fiscais”
é
que entrava o Lô, e já se defrontando com um grande
desafio. Ocorria então o seguinte: embora os objetivos
e as metas do plano já estivessem estabelecidos, faltava
ainda definir os critérios de julgamento a adotar, ficando
a análise e o acompanhamento dos projetos até
então mais no âmbito jurídico do que técnico
e econômico. Por isso, além dos trabalhos de coordenação
de crédito e incentivos inerentes à área,
também se exigiu dele todo um trabalho de sistematização
e normatização dos parâmetros técnicos
e financeiros da viabilidade econômica dos projetos pesqueiros,
do controle e acompanhamento da sua implantação
e da análise dos seus resultados. Permaneceu no referido
cargo de diretor até 1978, vindo por um tempo ainda,
mesmo quando já não estava mais na Sudepe, a manter-se
vinculado ao setor pesqueiro, como representante do Ministério
da Agricultura na Cocif (Comissão Coordenadora de Incentivos
Fiscais) e no Grupo Permanente de Trabalho do Fiset (Fundo de
Investimentos Setoriais/ Pesca), e como coordenador do Grupo
de Trabalho Permanente de Coordenação de Crédito
e Incentivos para o Setor Pesqueiro.
Luiz
Fernando, terceiro e último filho, nasce em agosto de
1976. Em dezembro, quem chega para também morar naquela
casa e compor a família, vinda de Porteirinha, é
a Leila, filha de sua querida tia e madrinha Lia. Quando a Leila
era ainda pré-adolescente, o Lô havia prometido
levá-la para Brasília para melhores oportunidades
de vida, e agora, estando ela com dezoito anos e o 1° grau
concluído, era chegado o momento. Desde logo, o Lô
passaria a reconhecê-la como sua “filha mais velha”,
estabelecendo-se entre os dois, ou melhor, entre todos uma relação
de grande e duradouro afeto, vindo a Leila a se tornar uma irmã
dos irmãos Patrocínio. E, antes que fosse passado
um ano, o Lô “assinaria” outro grande feito
envolvendo toda a família.
Apegado
à mãe mas nem por isso menos filho do pai, Lô
sabia por experiência própria que Seu Dário
tinha uma mística e uma paixão. Nas palavras do
próprio Lô: “A maior paixão de meu
pai era poder estar presente, ao lado da sua querida mãe
– Dona Dadinha –, nas festas da padroeira de Serra
Nova, onde participava com grande destaque. Sempre se deliciava
com a presença de seus filhos e esposa naquele distrito”.2
Porém, desde seu falecimento em 1969 nada daquilo era
mais verdade. Por seu lado o Tuca, o primogênito nascido
em Rio Pardo e o filho que mais tempo e mais de perto tinha
convivido com o pai, e que por isso, naturalmente, poderia ter
dado continuidade àquela tradição, também
havia morrido. Já quanto ao Carlinhos, segundo mais velho,
ele, desde que se formara médico, tinha ido para bem
longe, Araguaína, uma “fronteira avançada”
no que era então norte de Goiás, atual Tocantins,
onde vivia bastante ocupado, já que por ali havia bem
poucos médicos, enquanto sobravam pacientes, muitos em
situação de emergência. Foi então
que o terceiro mais velho, apesar de ele também ser muito
ocupado, tomou a si o desafio de articular, organizar e dirigir
a Festa de Nossa Senhora do Patrocínio de Serra Nova,
festa que, diga-se, se estende por uma semana inteira, culminando
no dia 15 de agosto.
Tudo
ocorreu como o mano Beto relata no livro Histórias de
Serra
Nova:
Na certeza de que pai continuaria marcando presença ativa
na festa da Padroeira se não houvesse falecido, Lourival,
mesmo morando em Brasília (DF), tomou a si o encargo
de promover a festa de 1977. Faria assim as vezes dele, suprindo
a sua ausência, ao tempo em que lhe rendendo amorosa e
leal homenagem. Tendo a Dirce, sua esposa, e a Tia Lia, sua
madrinha, ao lado o tempo todo, ajudando-o com extrema
dedicação, conforme ele faz questão de
ressaltar, o apaixonado irmão se revelou um dos festeiros
mais bem-sucedidos que Serra Nova já viu. Simplesmente
fez valer a sua marca registrada: programação
completa lastreada na prodigalidade e respaldada por logística
irrepreensível. Sob seu império, a festividade
seguiu à risca a boa tradição. Teve leilões,
alvoradas, foguetório, missas, batizados, casamentos.
Teve desfile de biscoitos divinos que não paravam de
sair de fornos a lenha capitaneados por biscoiteiras fabulosas,
sendo servidos com cafezinho quente e bom. Teve passeios pelos
arredores [...].
[...]
Em suma, mais marcante e gratificante seria impossível.
Sentimo-nos orgulhosos e engrandecidos em honrar a memória
do nosso pai, pagando aquele mais que devido tributo a sua santa
padroeira, a seu berço natal e sem dúvida nenhuma
que também a nós mesmos, já que a Silveirada
é um povo festeiro. Isso tudo graças principalmente
ao mano Lourival, conforme é de justiça reconhecer.3
Realmente, o sucesso da festa deu o que falar porque, de forma
organizada e participativa com os familiares e a população
local, o Lô conseguiu aliar a religiosidade à cultura
e a diversão ao sentimento fraterno. Inclusive, ele deixou
o Gugu, seu filho mais novo, sem batizar por quase um ano para
que o batizado ocorresse na festa da qual ele seria
o festeiro, sob as bênçãos de Nossa Senhora
do Patrocínio, a madrinha dos filhos de Dário
Silveira.
Vale registrar num parêntese que depois daquela inesquecível
festa o mundo daria muitas voltas até que o festeiro
voltasse a ser um filho de Dário, a façanha dessa
feita cabendo ao Zezinho, que em 2010 não deixou passar
em branco o ano do centenário de nascimento do pai. Sob
a sua batuta, numa Serra Nova agora mais crescida e desenvolvida
e onde a tradicional festividade religiosa se encontrava desvirtuada,
estando mais para a bebedeira e a balbúrdia de automóveis
com potentes caixas de som ligadas no mais alto volume, a Festa
da Padroeira não só recuperou sua aura de religiosidade,
como alcançou grande participação e envolvimento
da comunidade, de que resultou a edição do livro
que venho citando, o qual foi escrito a muitas mãos,
estas tanto de professores e alunos da escola local, como de
membros
da extensa família Silveira, que voltava a se reencontrar
após décadas. Foi interessante também porque
o reavivamento do vínculo dos irmãos Patrocínio
com o torrão ancestral motivou a instalação
pelos mesmos de um busto de bronze do pai ao lado da igreja
onde Nossa Senhora do Patrocínio é louvada, ensejando
também que uma bisneta de Dário, nascida em abril
daquele ano, recebesse “Patrocínio” em seu
sobrenome.
Lô, Dirce e filhos (jun. 2011)
Por
anos sonhando virar fazendeiro, mas sem dinheiro sobrando, Lô
precisou passar um bom tempo procurando ao redor de Brasília
até encontrar, em agosto de 1979, uma propriedade à
venda que coubesse em seu orçamento. Localizada numa
região de relevo ondulado no município de Planaltina
de Goiás e distante cerca de oitenta quilômetros
de Brasília, a Fazenda Coqueiro, a bem da verdade, estava
ainda quase toda por se fazer na extensão de seus quarenta
alqueires. De benfeitoria, com tudo já velho e gasto,
possuía apenas um cercado que servia de curral, cerca
de arame farpado separando uns dois pastos e uma casa de adobe,
onde o caseiro morava com a família. A terra era flagrantemente
fraca. Um morro alto, um riacho e uma nesga de mata à
beira do mesmo garantiam ali refrigério para a alma,
beleza natural e diversão, esta por conta principalmente
de uma pequena cachoeira e seu poço. Para o sonhador,
não precisava mais que isso.
Como
passava a semana ocupado em Brasília, ele foi formando-a
aos poucos. Se no início tudo era só despesa,
dali a pouco o caseiro estava tirando leite das vaquinhas compradas
e fazendo queijo, que o Lô tratava de vender em seu trabalho.
O queijo era pouco, idem o quanto se auferia com sua venda,
mas já ajudava a pagar o salário do caseiro. Dali
mais um pouco, em parceria com o mano Tião, foi a vez
de tentar a suinocultura, adotando-se uma raça, landrace,
até então desconhecida na região. A começar
pela construção da pocilga, em regime de mutirão
de camaradas bons de copo, não faltando quem se acidentasse
com uma alebanca de puro ferro caindo-lhe na cabeça,
a trabalheira foi grande – há quem diga que a diversão
também –, mas, como tudo era feito amadoramente,
como no caso dos queijos, o retorno financeiro foi pífio.
Segundo o Tião, a lida era mais intensa que o lucro,
pois trabalheira geral era saciar os leitões sempre famintos
e manter os boxes limpos.
Nesta
experiência, segundo acredito, o desejo mineiro de se
ter um leitãozinho à mão, para assá-lo
na hora da vontade e degustá lo
com uma pinguinha, falava mais alto que qualquer intenção
de lucro. E mesmo ali, onde só se tinha a casa do caseiro
e a pocilga, não faltaram festas animadíssimas
e divertidíssimas. Numa até houve pau de sebo
com uma nota de mil cruzeiros presa ao topo, num tempo em que
a nota com a efígie do Barão do Rio Branco era
famosa e valia um bom dinheiro. Na maior das algazarras, todo
mundo tentou escalar o pau, porém somente o Valdemar,
um trabalhador rural que de vez em quando fazia capina na fazenda,
conseguiu alcançar o topo e pegar o dinheiro. A proeza
lhe valeu um apelido que não seria mais esquecido:
Barão. Nas festas, os convidados que vinham de Brasília
passavam a noite em barracas que cada qual trazia. Não
foi senão no outro lado da fazenda, de frente para a
mata e próximo à cachoeira e à estrada,
onde o Lô construiu a sede, o curral e uma nova casa de
caseiro. Para não gastar mais que o necessário,
fez a casa da sede em estilo rústico-campestre, com paredes
de tijolo aparente, um bonito telhado com madeirame de primeira
e duas varandas, a da frente mirando o pomar e a do lado contemplando
a mata. Na formação do pomar, deu preferência
às frutas lá das Minas
Gerais, como jabuticaba, manga-ubá, pitomba, cajá-manga,
banana, etc., a cornucópia se completando com frutas
nativas do cerrado, como a mangaba (um suco inacreditável
de gostoso), o araticum (ele adorava), a cagaita, sem falar
no pequi, o qual, embora fraquinho em comparação
ao de Montes Claros, servia de alento aos saudosos do mesmo.
Lô fez também um jardim ao redor da casa, do qual
gostava muito e o qual ele foi ampliando ao longo dos anos e
por ele se apaixonando cada vez mais. A principal atividade
econômica da fazenda foi sempre a pecuária de corte,
principiando com poucas cabeças e chegando a ter, no
melhor momento, após passados muitos anos, em torno de
cem. Como fazendeiro, Lô foi autodidata. E quem
aprendeu com ele, tornando-se depois engenheiro agrônomo
pósgraduado, foi o Gugu.
Bendita
Fazenda Coqueiro! Para nós familiares, ela foi uma bênção
pelo muito que nos proporcionava: lazer, curtição,
convivência familiar, comemorações festivas,
trabalho, passeios pelos arredores, banhos de cachoeira, sem
falar que também generosas “feirinhas”, com
o Lô nos prodigalizando com um pouco de tudo o que se
produzia na fazenda, como frutas, mandioca, etc. Representou
ademais uma oportunidade para a revelação e o
exercício de talentos, caso, entre outros, da mana caçula
Márcia, que produziu um quadro com frases criativas sobre
a fazenda, a enfeitar ali a parede da sala, e que, junto com
a Leila, sempre deu show como articuladora e animadora das festas
que rolavam.
Para
o Lô, que por um tempo andou com os ânimos exaltados
e dificuldades de relacionamento, a fazenda significou muito
mais ainda, como se uma tábua de salvação
no mar da procela. Nos momentos de maior estresse, quando estava
a ponto de explodir, era lá, às vezes já
tarde da noite e após ter tomado uns goles, que ele ia,
sozinho, refrescar a cabeça. Era incrível que
na manhã seguinte, no horário de sempre e com
a cara boa, estivesse de volta ao trabalho em Brasília.
O astral da fazenda, o cheiro do mato, a vista da mata e a visão
do que ali já construíra e do que faltava fazer
o devolviam a si e ainda o revigoravam. Admirável também
era ver o aproveitamento integral que ele fazia de tudo o que
aquela terra dava (o que escapava da voracidade das saúvas),
frutinha madura nenhuma ele deixando perder, antes a convertendo
em polpa. Era o instinto de economia da mãe a nele também
prevalecer.
UM
CURINGA NA CODEVASF
Por
tudo o que concebeu, formulou e pôs em funcionamento,
a década de 80 pode ser considerada o apogeu do Lô
como servidor público.
Em
1979, atendendo a convite de Erasmo José de Almeida,
seu amigo desde os tempos do Incra e agora Presidente da Companhia
de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (atual Companhia
de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba),
Lô se transferiu para a Codevasf, onde inicialmente atuaria
como Assessor
Especial da Presidência, exercendo depois outros cargos
e vindo a ser, naquilo que possivelmente foi, em toda sua carreira
funcional, a menina de seus olhos, arquiteto e Diretor-Superintendente
da Fundação São Francisco de Seguridade
Social. Com atuação à época restrita
ao “Velho Chico”, a Codevasf tinha como missão
promover o desenvolvimento do vale são-franciscano utilizando
os recursos hídricos com ênfase na irrigação.
Empresa pública então ainda em fase de afirmação,
a prioridade estabelecida era a execução de projetos
públicos de irrigação em áreas selecionadas
com a participação da iniciativa privada. Havia
dez áreas-polos já definidas e o desafio era desenvolver
nelas uma agricultura moderna conjugada à agroindústria,
tendo como público beneficiário os pequenos produtores
e os empresários.
Como Assessor Especial da Presidência, cargo que exerceu
de maio de 1979 a maio 1986, Lô desempenhou múltiplas
funções, que iam desde assistente técnico
e conselheiro-mor do presidente a articulador e representante
da Codevasf. Como a estrutura física e operacional a
implantar nos projetos de irrigação era bastante
onerosa, desafio maior do que comprovar a viabilidade econômica
dos projetos era demonstrar a capacidade técnica da empresa
de administrá-los e ganhar a confiança necessária
para a captação de recursos externos complementares
aos do Tesouro Nacional. Os principais financiadores eram o
Banco Interamericano de Reconstrução e Desenvolvimento
(Bird), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a
empresa estatal húngara Agrober Agroinvest. A cooperação
técnica também era articulada com organismos internacionais,
a exemplo do Instituto Interamericano de Cooperação,
do Bureau of Reclamation e da FAO. Em face disso e de tudo mais,
à Assessoria cabia exercer um papel
que se voltava tanto para dentro como para fora da Codevasf.
Para dentro, porquanto lhe cabia avaliar e fundamentar, para
tomada
de decisão superior, o que chegava à Presidência
vindo das diversas áreas da empresa, na forma de estudos
técnicos, projetos, processos, relatórios, etc.
E, para fora, porque era quem subsidiava as propostas objeto
de negociação com os agentes e parceiros públicos,
privados e financeiros. Aqui, não se pode esquecer o
apoio logístico da Assessoria na elaboração
de discursos e palestras a cargo dos dirigentes, e sua fundamental
colaboração com o setor de comunicação
social, sendo em geral de autoria do Lô os textos que
se publicavam.
Lô desempenhou também importante papel ao alinhavar
um projeto idealizado pelo presidente, que anteriormente tinha
sido Superintendente da Sudepe, e por ele, com base no conhecimento
que ambos traziam da Sudepe, que, adicionalmente à produção
agrícola irrigada, visava dotar as áreas-polos
de capacidade de produção de peixes. A ideia,
portanto, em nome de um maior aproveitamento dos recursos hídricos
disponíveis, era promover o desenvolvimento da pesca.
Nasciam desse modo os projetos de piscicultura consorciada com
a agricultura irrigada, os quais, mediante a implantação
de Estações de Piscicultura, logo se tornariam
uma realidade nas dez áreas-polos da Codevasf, quando
até então tudo o que havia de parecido era a Estação
de Hidrobiologia e Piscicultura de Três Marias, responsável
pela exploração do potencial piscícola
do lago formado pela represa de mesmo nome. Para a implantação
das referidas estações, foi necessário
firmar um acordo de cooperação técnica
com o governo da Hungria, com aquele país europeu, então
considerado uma das vitrines do socialismo, se incumbindo do
financiamento, transferência de tecnologia e assistência
técnica. A Codevasf precisou também contratar
Engenheiros de Pesca, que passaram a compor o seu quadro de
funcionários. Do lado húngaro, a execução
do acordo esteve a cargo da Agrober Agroinvest. Especializada
em reprodução artificial de espécies aquáticas,
a Agrober tanto levou pessoal especializado para treinamentos
intensivos nos principais centros de piscicultura
da Hungria, como manteve consultores húngaros nas estações
para implantação, orientação e acompanhamento
do sistema operacional e do cultivo piscícola. Lô,
um dos gestores do acordo, esteve na Hungria mais de uma vez.
Nesse meio tempo, valendo-se do prestígio e confiança
alcançados na Codevasf, o Lô sempre que possível
dava um jeito de favorecer seu estimado Norte de Minas, revelando-se
uma espécie de “embaixador” do mesmo dentro
da instituição. Gestões em prol da reabilitação
e expansão de áreas em projetos de irrigação
vitais para a região, a exemplo do Projeto Jaíba
e do Projeto Jequitaí. Intercessão para que pessoas
trabalhadoras da terra tivessem acesso a cargos e a empregos
nos projetos de irrigação e mesmo na Codevasf.
O Lô sempre foi uma pessoa muito leal a suas origens e
raízes, sem nunca deixar de ser criterioso. A Dona Edite,
que nunca esqueceu a resposta plena de sentido que o filho lhe
dera quando ainda sequer balbuciava, costumava dizer que ele
era “sistemático”.
Ainda como Assessor Especial da Presidência, Lô
foi por um ano Chefe de Gabinete. Se com o novo cargo sua responsabilidade
aumentava, o trabalho pouco ou nada diferia do que ele já
fazia, cumprindo ao Gabinete processar e traduzir em pareceres,
exposições de motivos, proposições,
expedientes administrativos, etc., toda a complexidade de projetos,
processos, relatórios, instrumentos de avaliação
e controle gerados pelas áreas técnica, administrativa
e financeira da empresa. Os requisitos necessários para
dar conta a tempo e a hora das complexas tarefas cometidas ao
Gabinete, seu eficiente chefe os reunia em si: conhecimento
polivalente, capacidade
técnica, escrita célere e ágil, perspicácia
para filtrar o essencial do acessório e o útil
do supérfluo.
Em 1985, contando com o apoio de seus superiores, Lô passou
a se dedicar a um projeto que redundaria em substantivo benefício
para a totalidade dos funcionários da Codevasf. A incumbência
era fazer acontecer o que até então existia apenas
no papel: um fundo de
pensão corporativo. Sendo o pessoal da Codevasf celetista,
e não estatutário, tudo a que tinham direito ao
se aposentarem era a remuneração da Previdência
Oficial. O fundo vindo a se concretizar, passariam a contar
também com uma aposentadoria complementar. Por ser o
projeto dos mais generosos, o Lô estava especialmente
empolgado.
O xis da questão era fundamentar e defender os meios
de aporte de recursos financeiros por parte da Codevasf e dos
funcionários para constituição do fundo.
A entidade que administraria seria a Fundação
São Francisco de Seguridade Social que, embora já
instituída e autorizada, ainda não saíra
do papel por falta do fundo inicial previsto em lei. Esforços
foram envidados no sentido de dar forma e comprovar a viabilidade
operacional e econômica da instituição para
a canalização desses recursos financeiros, o que
foi alcançado para alegria de todos os empregados.
Em fevereiro de 1986, a São Francisco iniciava suas atividades
sob a gestão do próprio Lô na condição
de seu Diretor-Superintendente. Classificada como entidade fechada
de previdência privada e tendo como patrocinadora a Codevasf,
a São Francisco tinha total autonomia administrativa,
por isso era necessário formar o seu quadro funcional
próprio, elaborar o seu estatuto e regulamentos e fazer
operar sua estrutura administrativa e financeira. Para se apresentar
ao seu público-beneficiário e ganhar a credibilidade
e confiança, foram realizados trabalhos intensos de divulgação
junto aos empregados e, já em março, começaram
a ocorrer as primeiras inscrições de participantes
fundadores do Plano de Benefícios de Suplementação
de Aposentadoria. Responsabilidade tamanha essa de assumir e
representar a São Francisco ativa, passiva, judicial
e extrajudicialmente; movimentar os seus valores e deles gerar
a rentabilidade do capital que era a sua matéria-prima,
o seu negócio e o seu produto final! Além de experiência
e capacidade técnica e administrativa, o novo cargo exigia
do Lô conhecimento do mercado financeiro,
estratégia de negócios e gestão de benefícios,
entre outros. E a entidade, nascitura, precisava dar os seus
primeiros passos, ganhar nome e se estabelecer. Mas ele arregaçou
as mangas e, contando com a colaboração de colegas
defensores da causa, se entregou de corpo e alma ao novo desafio.
Dona Edite e filhos (irmãos Patrocínio) comemorando
o Natal (Moc, 1987)
Administrou
a fundação durante seis anos, entregando-a consolidada
ao seu sucessor em abril de 1992, mas então não
se desvinculando dela ainda, já que pelos três
anos seguintes seria Presidente do seu Conselho de Curadores,
tempo durante o qual pôde ter a certeza de que o êxito
que alcançara fora cabal e sem volta atrás. Não
à toa, portanto, a Fundação São
Francisco de Seguridade Social pode ser considerada seu maior
desafio e triunfo profissional. Em maio de 2018, sua população
segurada era de cerca de quatro mil e oitocentas pessoas, entre
participantes ativos, assistidos e dependentes. E nós
beneficiários assistidos, categoria na qual eu me incluo,
estamos sempre a reconhecer que na verdade é ela que
nos mantém como aposentados e assegura nossa qualidade
de vida.
Após
ter deixado de ser o executivo da FSF, Lô permaneceu na
Codevasf por mais quatro anos, exercendo cargos nas áreas
técnica e administrativa:
foi Assessor do Diretor da Área de Produção
e Chefe da Divisão de Sistemas e Métodos. Nas
duas décadas que passou na empresa, foi na verdade muito
mais do que o descrito até aqui, pois, paralelamente
às missões e funções mencionadas,
presidiu, integrou e assessorou diversos grupos de trabalho,
comissões e estudos técnicos sobre temas variados.
Para dar um exemplo, por designação do Ministro
da Integração Regional, nos termos do artigo 5º
da Lei 8.878/94 e do Decreto 1.153/94, presidiu na Codevasf
a Subcomissão Setorial de Anistia.
Em
1998, desencantado com os novos rumos do setor público
e o apadrinhamento político posto em prática na
empresa, Lô, aos cinquenta e quatro anos de idade, novo
ainda, optou por deixar o serviço público, valendo-se
da possibilidade de aposentarse
proporcionalmente. Então, estava em vigência o
PDV (Plano de Demissão Voluntária) deslanchado
pelo governo Fernando Henrique Cardoso com o objetivo de reduzir
a máquina administrativa federal, ao qual ele aderiu,
desligando-se da Codevasf em 30 de dezembro de 1998. Foi, francamente
se falando, uma despedida melancólica para quem foi sempre
um valoroso e devotado combatente do serviço público.
Contudo, o governo do Brasil não era mais nacionalista
e desenvolvimentista como aquele em que ele se iniciara e fizera
carreira no serviço público. Por seu turno, a
Codevasf tinha deixado de ser aquela que tanto o prestigiava
e à qual, em troca, ele muito foi capaz
de dar. Em resumo, para ele os bons tempos tinham se ido e ele
não estava com muito jogo de cintura para se equilibrar
na nova situação.
DOIS ANOS POR AÍ E DOIS NO SENADO
Por
algum tempo, Lô respirou sua liberdade de aposentado.
Entregou-se a sua fazenda, que requeria maior atenção
do patrão, mas nela já rolava solidão,
uma vez que os irmãos mais novos, que dela tanto usufruíram,
haviam se espalhado por cantos diversos, a cuidarem das novas
famílias constituídas. Já seus filhos,
com um pé no mercado de trabalho ou cursando universidades,
tinham outros
interesses e afazeres que os faziam ausentes. Havia então
que entremear a obrigação com o prazer, por isso
volta e meia Lô dava suas escapadas para curtir sua saudosa
Montes Claros, a lhe redespertar doces lembranças da
infância e adolescência, com extensão às
cidades dos Silveira: Porteirinha, Rio Pardo, Serra Nova. Naquelas
paisagens, a falta da mãe querida que partira em junho
de 1992 sempre apertava o coração, mas ele compensava
a nostalgia com a alegria do encontro com a mana Dade, os tios,
madrinha, primos e outros parentes que sempre venerou e que
lhe manifestavam gratidão por tantas causas que ele abraçou.
Escapava
pra’qui também, Aracaju, em busca de praia para
desanuviar as ideias, e sempre esticava até o Rio São
Francisco, especialmente ali na foz, para nos seus mergulhos,
de preferência nu, como mais gostava, liberar os instintos
reprimidos. Também, começou a namorar com mais
emoção o norte do Tocantins, tendo como base Araguaína,
onde vivem os manos Dó e Carlinhos. O Rio Araguaia, no
qual sempre fazia acampamento com a família na temporada
de férias em julho, o atraía bastante, pois ali,
sim, se faziam verdadeiras pescarias. Em vez das traíras
e lambaris da infância, o que fisgava eram enormes tucunarés,
filhotes, fidalgos. E, para quem, sem
desmerecer o cerrado, se identificava com uma vegetação
exuberante, tipo amazônica, não havia como não
crescer o olho pelas terras de lá. E assim a semente
de um novo projeto de vida começava a germinar...
Antes,
porém, o tarimbado “assessor” teria ainda
um papel a cumprir na máquina estatal, dessa feita, para
variar, no Poder Legislativo. Em 2001, Lô foi convidado
pelo mano Carlos Patrocínio, Senador pelo Tocantins,
para compor sua equipe de assessoramento. Reeleito em 1994,
Carlinhos estava no segundo mandato e precisava
de profissionais com conhecimento e vivência em economia,
finanças, legislação agrária, agronegócio
e assuntos correlatos para subsidiá-lo nas diversas demandas
parlamentares.
Trazendo
sua respeitável bagagem e experiência, Lô
atuou no Senado Federal por dois anos. Sobre uma grande diversidade
de assuntos, eram elaborados pareceres, emendas parlamentares,
estudos e análises técnicas; os orçamentos
apresentados para diversos fins requeriam avaliação
e ajustes; os pronunciamentos e entrevistas do parlamentar também
eram preparados ou subsidiados. Criado havia pouco tempo pela
Constituição Federal de 1988, o Estado do Tocantins
se encontrava em fase de afirmação e era causa
de luta dos senadores que o representavam. Duas das bandeiras
defendidas pelo Carlinhos eram: o retorno econômico ao
Estado da energia gerada pelas usinas hidrelétricas existentes
nos seus rios; a viabilização da Hidrovia do Rio
Tocantins e outras, que necessitavam de eclusas nas represas
para se tornarem plenamente navegáveis e desse modo se
colocarem como um modal alternativo de transporte de cargas
e escoamento da produção, modal esse mais ecológico
e econômico do que o já saturado modal rodoviário.
Sem falar que nas barragens as eclusas permitem a passagem de
peixes a jusante e a montante. Até o final de janeiro
de 2003, Lô deu a sua contribuição, pesquisando,
levantando dados e realizando estudos para subsidiar emendas
e proposições.
VOANDO
EM OUTRA DIREÇÃO
Dando
sua vida pública por encerrada, dessa vez em definitivo,
Lô abraçou a sua causa própria de se afirmar
no empreendedorismo rural. Era nas proximidades de Araguaína,
dita “capital do boi gordo”, que estava o seu ideal
de fazenda: terra farta, fértil e plana. Em maio de 2002,
com o irmão Carlinhos, comprou em Wanderlândia
(TO) uma propriedade de tamanho médio para exploração
da pecuária de corte. Estimulou o filho Gugu, agrônomo
recém-formado, a gerenciála e assumiu o papel
de supervisor, pois não pretendia fazer morada permanente
ali, até porque tinha a Fazenda Coqueiro a cuidar. Na
medida
do possível procurou os meios para viabilizar o negócio,
mesmo sabendo que seria difícil alcançar a dimensão
desejada. A cria, recria e engorda de gado requerem investimentos
elevados, mas os recursos eram escassos e os financiamentos
nem sempre acessíveis. A questão da regularização
da terra, em grande parte de origem devoluta, também
se mostrava complexa, não obstante os esforços
empreendidos junto ao setor público.
Por
um período de quatro anos, o filho permaneceu na área
e foi mais fácil administrar. Mas este, tendo outros
ideais de estudo e carreira profissional, quis retornar para
Brasília, o que certamente gerou frustrações
para o Lô. Também com o mano-parceiro houve entrevero,
pois, sendo dois cabeças-duras, nem sempre conseguiam
chegar a um denominador comum. Foi ficando só... Administrar
à distância, por telefone, não era alvissareiro
e, embora amasse a estrada e a enfrentasse com prazer, o percurso
de mais de mil e trezentos quilômetros era muito longo
e também arriscado. Tinha que ficar cá e lá.
Ao tempo em que isso o aproximou mais do mano Dó, da
cunhada Rita e sobrinhos, que ali residiam, tal situação
o distanciou de sua família própria e isso o afetou,
pois era extremamente familiar. Tinha dificuldade de viver sozinho,
por isso tornou-se comum vê-lo passar horas atrás
de uma garrafa de cerveja. Embora atencioso com a saúde,
males da terceira idade já o rondavam, impondo-lhe restrições,
a que ele não necessariamente se submetia, e padecimentos,
como a tal “gota” (artrite gotosa).
Lô
em sua fazenda em sociedade no Tocantins (maio 2012)
Houve
apelos de todos para desapegar daquela paixão, mas ele
não arredava pé, nem deixava de traçar
projetos para aquela propriedade. Queria mesmo era comprar a
outra quota-parte, regularizar seus registros cadastrais, empreendê-la
e fazer dela uma fazenda-modelo. Ficou feliz em 2012 quando
levou o cunhado-amigo Dalmo para visitá-la e fazê-lo
sentir o que era terra em abundância; Dalmo, meu marido,
também é pecuarista-sonhador, além de sofredor
com as terras áridas do Nordeste. A verdade era que,
ao mesmo tempo em que exigia dele um grande esforço,
a fazenda no Tocantins era o que o acalentava com novas perspectivas
de vida.
ENTRETANTO...
Na
manhã cinzenta do dia 13 de junho de 2012, véspera
de seu aniversário, estava o Lô na cozinha de sua
casa em Brasília, organizando seu café da manhã
para em seguida pegar a estrada, quando sentiu uma súbita
perda de equilíbrio, que o forçou a apoiarse na
cadeira para não desabar no chão. Foi encontrado
contorcido e apenas balbuciava, sem condições
de expressar o que sentia. Ao ser levado para o hospital, o
diagnóstico: sofrera um AVC e seu lado esquerdo estava
sem movimento.
Quanto
infortúnio, meu Deus! Justo aquela doença que,
sem anunciar, passa a rasteira, eletrocuta e, quando não
mata, deixa sequelas irremediáveis?! Aquela doença,
que nos anos 70, também numa manhã atroz, havia
mutilado nossa mãe, voltando a infelicitar nossa família?!
Ela, sim, é o protótipo da morte zombeteira, que
com seu riso sarcástico fica a nos espionar da esquina,
mal esperando a hora de dar o bote. E, entre tantos desiludidos
do universo, veio atacar logo o Lô, que não obstante
as desilusões mostrava paixão pela vida e estava
a se preparar para uma nova temporada no Rio Araguaia, onde
seriam comemorados os setenta anos do mano Carlinhos?! Ali,
junto com ele, foi seu mundo por toda a vida livre, vasto, largo
e tremendo que ruiu, sobrando-lhe apenas restos de fiapos do
mesmo.
Por
sorte o cérebro e a fala não foram afetados, permitindolhe
comunicação normal. Com apoio de aparelhos na
perna e braço direitos, ele poderia voltar a andar sozinho,
chegaram a acreditar os médicos, a nós todos dando
esperança. A família tudo fez para proporcionar-lhe
conforto, movimentação e meios de recuperação:
adaptações em recintos da casa, atendimento fisioterapêutico
e fonoaudiológico em domicílio, acompanhamento
psicológico (sua autoestima ficou baixa), hidroginástica,
tratamento intensivo no Centro de Reabilitação
Sarah Kubitschek, etc. Carinho, presença, afeto, acompanhante
24 horas.
Todavia,
mesmo nada lhe faltando, a melhora era quase nenhuma. Estariam
os médicos realmente certos ao afirmarem que com força
de vontade ele seria capaz de se recuperar? Então, em
reforço a seus esforços físicos e mentais,
lhe faltava a obstinação, a determinação
e a força de fé demonstradas por nossa mãe,
que conseguira dar a volta por cima, recuperando seus movimentos
em grande parte e resgatando sua autonomia? Difícil,
senão estúpido, julgar...
O
fato é que seus últimos anos de vida já
não foram bem de vida, senão de purgatório.
Uma luz no fim do túnel às vezes parecia que iria
brilhar quando ele reagia, mostrando mais disposição,
querendo sair, ver gente e resolver por conta própria
suas questões. Porém, o recolhimento e a recusa
de um ombro amigo eram os mais constantes. Não gostava
de alento, porque lhe parecia manifestação de
piedade. Não aceitava cobranças, porque ninguém
parecia capaz de entender as severas, intransponíveis
limitações infligidas pelo AVC. Dormir passou
a ser a saída e a solução, por isso esperava
com ansiedade os medicamentos que o deixavam dopado ou adormecido.
Para nós seus familiares, era muito duro estar diante
desse triste quadro e nos vermos impotentes, incapazes de fazer
o que fosse para salvá-lo.
O
ano de 2016 foi o mais sofrido. Abatido volta e meia por tosses
secas e incômodas, identificadas como sintomas de pneumonia,
precisava ser internado. Contudo, as internações
eram de pouca valia, pois quando saía do hospital mostrava-se
mais debilitado. Quando em junho estive com ele, saí
do hospital e retornei de Brasília aos prantos, já
que o pressentido foi de um adeus a qualquer instante.
Bravamente,
no entanto, contra todos os diagnósticos, prognósticos
e pressentimentos, ele ainda lutava e resistia e isso lhe dava
uma sobrevida. Mas também porque, na sua longa e excruciante
batalha, ele nunca, repita-se, esteve só ou desassistido,
ao seu lado, carinhosa e expeditamente, estando sempre seus
três filhos – Marquinho, Ludmila e Gugu –,
a ponto de alguém chegar a comentar que eles eram “os
melhores filhos que um pai enfermo pode ter”. Inclusive,
uma das providências que tomaram foi instalar em casa
um home care, buscando com isso proporcionar-lhe mais conforto
e qualidade de vida, já que passar meses no ambiente
nada aconchegante de um hospital, por melhor que possa ser ali
o atendimento, é algo
que ninguém merece.
Novembro,
todavia, foi inclemente, de novo sendo preciso voltar para o
hospital. De onde não mais saiu, vindo a falecer no dia
22 de janeiro de 2017.
E assim partiu o nosso mano querido, sem dizer adeus a tantos
que amou e serviu.
Difícil é expressar em palavras a dor sentida
e a falta que ele nos faz.
O que nos resta é trazer sempre a sua presença
para perto de nós, seja no resgate das suas doces lembranças,
seja no cultivo das coisas boas que ele preconizou e amou.
É neste propósito, e por saber que ele amou a
natureza com ternura, que em sua homenagem, num cantinho especial
lá da Fazenda Ditinha (nome que homenageia nossa mãe),
foi plantada a árvore que ele dizia não ter beleza
igual: ipê roxo.
E
ao lado da mesma, com a arte da mana Dade, está afixada
uma placa que diz: “O que a memória amou fica eterno”.
Zélia e Dalmo plantando um ipê roxo em memória
do Lô (Sergipe, jan. 2018)
Placa em homenagem ao Lô (Arte: Felicidade Patrocínio)
__________________
Cf. SILVEIRA, José Patrocínio; SILVEIRA, Roberto
Patrocínio (Orgs.). Histórias de Serra
Nova – Centenário de nascimento de Dário
Dias Silveira. Montes Claros: Ed. Cotrim Ltda.,
2010. p. 110-112.
Ibidem, p. 110.
Ibidem, p. 97-98.
Impresso
na oficina da
GRÁFICA EDITORA MILLENNIUM LTDA.
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Telefone: (38) 3221-6790